Jesus, no Evangelho de São Lucas, ao iniciar o seu ministério público, proclama um ano de graça do Senhor (cf. Lc 4,19), citando o profeta Isaías, isto é, Jesus, como o Verbo encarnado, realiza um exercício de atualização e compreensão original da Escritura. Esse ano, o qual Jesus proclama como um ano de graça do Senhor, era bastante compreensível na mentalidade judaica, tratava-se de um tempo de abono das dívidas, libertação dos prisioneiros, descanso da terra cultivada. Tratava-se, pois, de uma atitude prática na qual é possível estabelecer os fundamentos desses anos especiais indicados pela Igreja.
Neste ano estamos no Ano da Misericórdia, desejado pelo Papa Francisco e acolhido por uma grande multidão de homens de boa vontade. Seria inclusive interessante realizar uma pesquisa sobre as atitudes que compõem o Ano da Misericórdia. O Papa, por exemplo, quis que houvesse “presbíteros da misericórdia” para absolver pecados que eram mais restritos aos epíscopos.
Devido às propostas deste ano especial, houve bastante produção, preparação, divulgação e vivência, sempre dentro do tema proposto da busca de ser misericordioso, como Deus é misericordioso. Assim, o Ano da Misericórdia conclama toda a Igreja e todos aqueles que buscam a Deus de coração sincero à vivência da misericórdia que Deus tem para com a humanidade, a busca de um olhar amplo para com o ser humano e o planeta Terra, levando cada um a se questionar e agir sobre que tipo de mundo quer e quais os meios para que efetivamente haja uma mudança significativa, profunda e alternativa ao modelo que aí está.
O contexto desse ano proposto pela Igreja sugere que existe uma vocação à misericórdia dentro desses dois movimentos de chamado e resposta, entre quem chama e aquele que responde. Verdadeiramente, a encarnação do Filho de Deus é um ato de misericórdia para com toda a humanidade e ao mesmo tempo a resposta de Deus para como seus filhos. Essa deliberação acontece dentro da graça e gratuidade própria do Coração Divino e com razão Jesus torna-se o modelo por excelência de um verdadeiro vocacionado da misericórdia. Aliás, toda a sua vida foi permeada e plasmada pela misericórdia, no sentido mesmo de colocar-se no lugar do outro.
A origem da vocação/missão está em Deus, que chama como ato primeiro; o segundo ato trata de uma resposta em consequência desse ato primeiro, e somente assim pode haver uma efetivação do chamado, um verdadeiro diálogo, fruto do ato primeiro e original da parte de Deus, sem o qual é impossível uma resposta, seja ela positiva ou negativa. O ser vocacionado da misericórdia se aproxima de um chamado maior, de um projeto existencial, que efetivamente delibera-se a uma mudança e revisão de valores e compreensões de mundo que permeiam toda uma vida, tarefa a que todos estão destinados, sem protelações, desculpas ou reservas. Dessa forma, a misericórdia vivida por Jesus se amplifica nos seus seguidores. O chamado que Ele realiza ao Grupo dos Doze é enigmático, uma vez que eles seguem o Mestre imediatamente e somente aos poucos vão tomando consciência, inclusive questionando o próprio seguimento. Diz Pedro, como representante dos Doze: “Eis que deixamos tudo para te seguir que haverá então para nós” (cf. MT 19,25). Trata-se de uma pergunta de interesse; o enigmático, portanto, está nessa construção que Cristo realiza na vida de seus seguidores! Eles estavam prontos para o seguimento, mas não para abraçar a causa de Cristo naquele momento.
Por Pe. Jorge Pinheiro, cmf
Texto adaptado da edição de novembro da Revista Ave Maria. Para ler os conteúdos na íntegra, clique aqui e assine.
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