Na Bíblia, no Evangelho de Mateus, em Mt 2,1-12, está a narrativa da visita de magos a Jesus, logo após seu nascimento, passagem exclusiva das comunidades de Mateus. Para Mateus foram os magos – sacerdotes de culto da natureza – os que, por primeiro, reconheceram a encarnação do divino no humano. O Evangelho de Lucas, em vez de falar de magos, fala de pastores (Lc 2,1-20) como os primeiros que reconheceram e acolheram Jesus de Nazaré, logo após seu nascimento. Óbvio que os Evangelhos de Mateus e Lucas não são crônicas jornalísticas escritas sob o calor dos fatos. Escritos na década de 80 do século I da era cristã, os Evangelhos de Mateus e Lucas são Teologia da História a partir dos oprimidos e injustiçados e da sua fé na ressurreição de Jesus Cristo.
Quem são esses magos? O texto só diz que eles vêm do Oriente, de onde o dia nasce e a vida recomeça. Os magos são pessoas sábias, porque viram a estrela que indicava o nascimento do “rei dos judeus”. Os magos têm intenções contrárias às de Herodes, rei opressor e sanguinário, que “ficou alarmado e junto com ele toda a cidade de Jerusalém” (Mt 2,3). Mesmo consultando as Escrituras, Herodes, os sumos sacerdotes e os escribas não se dispõem a reconhecer o divino no humano que acaba de nascer. Acontece, então, uma oposição muito significativa: aqueles que detêm o poder político e econômico, o conhecimento acadêmico e o poder da religião oficial ignoram Jesus, enquanto pessoas de outras culturas e práticas, que inclusive seriam condenadas pela lei judaica, como a consulta aos astros, reconhecem o nascimento e vêm ao encontro daquele que iria testemunhar um caminho de libertação para todos e tudo: “vida e liberdade para todos e tudo” (Jo 10,10).
Os magos identificam a estrela que indica Deus se humanizando em/a partir de Jesus. É interessante que depois que os magos saem de Jerusalém, a estrela reaparece e os conduz até o lugar onde estava o menino. Curioso é que a estrela desaparece quando os magos chegam a Jerusalém, a capital, o centro político, econômico e religioso! Mas não adianta buscar esta estrela no céu. O texto faz uma ligação entre as atividades dos magos e a estrela que, segundo a tradição judaica, deveria indicar o surgimento do Messias. Assim, se lia naquela época o texto de Números 24,17: “um astro se levantará de Jacó e um homem surgirá de Israel”. E ainda o texto de Isaías 9,1: “O povo que andava nas trevas viu uma grande luz, uma luz raiou para os que habitavam uma terra sombria.” Depois de reconhecerem o divino naquele menino nascendo sem-terra e sem-teto e de lhe oferecerem presentes, os magos retornam “por outro caminho” a sua terra (Mt 2,12). Diz o texto que eles foram avisados “em sonho” para que não voltassem a falar com Herodes. A missão de Jesus é testemunhar um caminho de libertação para todos, inclusive os pagãos, representados pelos magos.
O evangelho de Mt 2,1-12 se constitui de duas partes: Mt 2,1-5 e Mt 2,7-12. O versículo 6 é o elo de ligação: “É de ti Belém, a menor entre todas as cidades, que virá o Salvador”. Em Mt 2,1-12 temos várias oposições/contradições: Herodes contra Jesus, Jerusalém contra Belém. Para os magos, estrangeiros do Oriente, Jesus é “rei dos judeus” (Mt 2,2). Os magos reconhecem o poder popular nascido na periferia de Belém. Etimologicamente Betlehem, em hebraico, significa Casa do Pão. Jesus se tornou o Pão da vida (Cf. João 6,22-59). Belém é a cidade do pastor Davi, o menor entre os irmãos, aquele que organizou os injustiçados da sociedade para lutar por um governo justo. O verdadeiro “rei dos judeus” não é violento e sanguinário como Herodes, é um recém-nascido, nascido sem-terra e sem-casa e tendo que se exilar às pressas para não ser assassinado pelo poder repressor de plantão. Segundo o Evangelho de João, o nascido na “Casa do Pão” se tornou Pão da Vida para todos. Os magos intuem com sabedoria que o poder alternativo, democrático, participativo e popular vem da periferia, dos injustiçados, dos pequenos. A estrela que guia os magos representa as intuições mais puras e os anseios mais profundos da humanidade sedenta de justiça, paz e fraternidade.
Os magos veem o “menino com Maria, sua mãe” (Mt 2,11). O gesto de reconhecimento é acompanhado da oferta do que há de melhor em seus países: ouro, incenso e mirra. Para as pessoas cristãs da época da Patrística – primeiros séculos da era cristã –, os presentes oferecidos simbolizam a realeza (ouro), a divindade (incenso) e a paixão de Jesus (mirra). Primeira atitude dos magos foi doar-se a serviço daquele que testemunharia um caminho libertador (= prostram-se) e, em seguida, põem à disposição de Jesus o melhor do que eles possuem, seus dons (Mt 2,11).
Mais importante do que discutir se os magos eram astrólogos ou se eram astrônomos, é perceber que eram estrangeiros – “os de fora”, de outras práticas –, sábios, perspicazes e muito sensíveis para captar a divindade de Deus se revelando na humanidade frágil de um menino nascendo sem-terra, sem-teto e ameaçado de ser assassinado logo nos primeiros dias do seu nascimento. Herodes, rei sanguinário e opressor, tremendo de medo de perder o seu poder, tentou cooptar os magos secretamente, tentou obter informações que ajudassem a liquidar a vida frágil. Herodes mentiu, fez propaganda enganosa, para tentar descobrir onde estavam as forças de subversão ao seu poder tirânico. Por fim, impôs uma medida provisória, uma espécie de Ato Institucional, mandando matar a crianças com menos de dois anos do país, enquanto, decretado pelo imperador Augusto, se realizava um novo recenseamento (Lc 2,1-2) para explorar mais ainda o povo já esfolado com pesada carga tributária. Mas as forças de vida – o divino no humano – foram mais espertas, fazendo os magos voltarem “por outro caminho” e assim driblarem a armadilha de Herodes. Os magos voltam por outro caminho, com sabedoria. Atualizando uma profecia, isto é, fazendo midrash, Mt 2,12 recorda o profeta anônimo de 1Rs 13,9-10: “Porque assim me ordenou o Senhor pela sua palavra, dizendo: Não comerás pão, nem beberás água e não voltarás pelo caminho por onde foste. E foi-se por outro caminho e não voltou pelo caminho por onde viera a Betel”.
Os magos romperam de uma vez por todas com Herodes, rei opressor, e com Jerusalém, cidade tratada como se fosse uma empresa. O sonho dos magos é a inspiração de que do poder opressor só nascem espinhos para a sociedade. Os magos souberam mudar suas perspectivas e sonhar um mundo novo que só pode nascer a partir do poder popular dos injustiçados que, ao se unir e se organizar, lutam pelos seus direitos. Experimentaram que um mundo justo é necessário e possível de ser construído, não a partir de democracia formal burguesa, de eleições, mas acima de tudo, a partir das classes trabalhadora e camponesa que, injustiçadas, podem e devem se rebelar em comunhão na luta por direitos fundamentais.
A Festa da Epifania, dia 6 de janeiro, dia dos Santos Reis, nos ensina a olharmos o mundo atentamente, com benevolência, a sentir com o coração aberto e, com mãos solidárias, percebermos que Deus está fazendo brilhar sua beleza no meio dos pobres e dos superexplorados. Aliás, o que acontece não é propriamente uma Epifania (em grego, epifania significa manifestação de Deus sobre), mas uma Diafania (em grego, diafania significa o brilho de Deus que perpassa e permeia tudo, de dentro pra fora e de baixo pra cima).
Em uma perspectiva feminista, devemos perguntar: Já imaginou se os Magos fossem mulheres magas? O que teria acontecido? Elas não teriam pedido informações a Herodes, mas às crianças, prediletas de Jesus. Teriam chegado a tempo. Ajudariam no parto, cuidariam do menino, limpariam o estábulo, fariam o jantar. Além disso, teriam trazido presentes práticos e o mundo viveria em paz.
Mas ainda está em tempo de construirmos um mundo de justiça e paz para todos e tudo. Que possamos revigorar em nós o desejo e o compromisso de viver e conviver de um jeito parecido com os magos do Oriente ou como os pastores de Belém (Lc 2,1-20). Que não sejamos cúmplices dos Herodes de plantão! Que sejamos corajosos/as e sigamos por outro caminho, transformador, libertador, em direção às causas dos pobres e oprimidos! Que tenhamos o discernimento necessário para romper com as estruturas do sistema político-sócio-econômico vigente – capitalismo superexplorador –, que manipula e engana o povo, alardeando uma pseudo democracia e fortalecendo as injustiças e a desigualdade social. Sejamos como os magos e os pastores, despertadores de rebeliões coletivas, populares e massivas, contra todas as opressões que os ultracapitalistas insistem em empurrar goela abaixo do povo oprimido. Sigamos o caminho oposto ao dos “Herodes” de hoje, para que entre nós se construa com o protagonismo da classe trabalhadora e camponesa o “Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33).
Frei Gilvander Moreira, O.Carm.
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