Reflexão sobre a desafeição dos jovens pela Igreja; seu relacionamento com o universo religioso; a necessidade de conhecer mais e a fundo a juventude para além do óbvio e da publicidade; comunicar-se e teologar não só para os jovens, mas com os jovens, seus anseios e necessidades sem a pretensão de simplesmente ensinar, mas também de aprender com eles.
Os resultados referentes às religiões no Brasil, coletados no Censo 2010 e divulgados em junho de 2012, trazem lições que ainda levarão algum tempo para ser digeridas. Mas, desde já, alguns dados específicos interessam à discussão que proponho aqui: o catolicismo apresentou grande perda entre os jovens; hoje, há menos católicos de até 29 anos do que em 2000; as novas gerações estão mais afastadas das igrejas tradicionais; os evangélicos apresentam maiores percentuais entre cinco e 14 anos; o segmento dos sem religião cresceu na faixa de 15 a 19 anos.
Além dos jovens, o catolicismo teve grande perda entre as mulheres, que já não são sua maioria, embora o sejam nas demais religiões pesquisadas. Considerando-se que as mães são as primeiras formadoras da religião de seus filhos, e que a população católica tem maior contingente na faixa superior aos 40 anos, é de se prever no catolicismo uma perda ainda mais acelerada nos próximos anos, em decorrência da carência de formadoras ou do falecimento natural de seus fiéis.
Embora sejam necessárias interpretações mais acuradas em demografia da religião, os dados acima suscitam a hipótese de que conhecer e trabalhar com a juventude (garotas e rapazes) é um desafio estratégico, que supera a abordagem quantitativa e também as práticas da pastoral juvenil. Torna-se urgente uma transformação radical, que exige mudança de atitude, alocação de recursos e de pessoal, produção teológica de alto nível e novas relações de poder.
Os dados do Censo sugerem que talvez o arsenal midiático montado pela Igreja Católica, à imitação das igrejas pentecostais e em concorrência com elas, não tem sido suficiente para deter a sangria jovem em seu rebanho. Não se trata, pois, de ordenar mais e melhores padres cantores, de promover missas ainda mais carismáticas, superbaladas católicas (“Com Jesus, tudo é festa”), hiper-“cristotecas” ou megatemplos ainda mais mega.
A questão de fundo é outra.
1. Comunicar, teologar
Um problema básico, parece-me, não está nos meios de comunicação, mas na qualidade dessa comunicação. Sabemos que a mensagem é construída tanto por quem a transmite como por quem a assimila e, portanto, a credibilidade e a confiança são condições sine qua non para se estabelecer uma relação comunicativa. Portanto, a credibilidade e a confiança precisam ser mútuas; no caso, entre a liderança católica e os jovens fiéis.
Com razão, o sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira aponta uma “desafeição religiosa” de jovens e adolescentes pela Igreja. Uma das fontes dessa desafeição não seria a falta de empenho, por parte da liderança eclesiástica, em perceber o que está acontecendo com a nova geração? Um possível afastamento mútuo não deixa de chamar a atenção, visto o catolicismo ter muita expertise junto à juventude, nas escolas, em grupos de catequese e de jovens e na Ação Católica. Quando e por que se teria rompido essa relação histórica?
Superar tal afastamento exige que os líderes católicos primeiro conheçam sua juventude e, a seguir, tenham nova compreensão dela. Para tanto, não lhe faltam instrumentos, intenções e documentos. Só para citar alguns: na III Conferência Geral do Celam em Puebla, em 1979, os bispos latino-americanos proclamaram sua opção preferencial pelos pobres e pelos jovens; a partir de 1985, sob o papado de João Paulo II e de Bento XVI, foi realizado um total de 26 Jornadas Mundiais da Juventude; a 45ª Assembleia Geral da CNBB, de 2007, promulgou o documento oficial “Evangelização da juventude: Desafios e perspectivas pastorais”, no qual define a juventude como um “lugar teológico” (n. 79) e se propõe a lhe oferecer “canais de participação” (n. 74).
A propósito, considerando-se que a Igreja conta com inumeráveis teólogos e teólogas dentro de um largo espectro, certamente não faltam condições para produzir uma Teologia da Juventude consistente e inspiradora. Até onde sei, falta massa crítica para tal disciplina. O que seria necessário para superar essa curiosa falta de uma teologia… sobre um “lugar teológico”?
2. Conhecer
Uma condição prévia para compreender a juventude é evitar guiar-se apenas por representações oriundas do noticiário (em geral, trágico), da publicidade (em geral, idealizada) ou da experiência pessoal de cada um (não é porque eu já fui jovem, que conheço a juventude). Cada geração é inédita e é preciso detectar seus problemas e valores.
Trata-se de acionar a “mediação socioanalítica” proposta por Clodovis Boff (Boff, 1998; p. 283). Pesquisas em grande número – de origem científica, mas também mercadológica – vêm produzindo considerável massa de informações e reflexões de boa qualidade sobre a juventude, tanto a brasileira como a de outras sociedades. Esse material está disponível para quem quiser estudá-lo. Estudar a juventude é preciso!
Uma visão englobante sobre a juventude deve combinar a complexidade do real empírico (daí se falar em “juventudes”, no plural) com a generalização de molde científico. A partir daí, podem ser buscados elementos comuns a essa geração.
3. Ser
Nesse contexto, surge uma primeira pergunta: “O que, ou quem, são os jovens atuais?”. A resposta envolve tanto elementos etários (necessários para políticas públicas, por exemplo) como, e sobretudo, uma abordagem multidisciplinar e dinâmica, atenta para as diversidades e para as rápidas transformações que envolvem esse segmento.
Em estudo clássico, o historiador Eric Hobsbawm aponta três novidades na juventude atual do Ocidente (Hobsbawm, 2000, p. 292; p. 316). Primeiro, essa fase começou a ser vista como a realização do pleno desenvolvimento humano, deixando de ser encarada como um estágio preparatório para a vida adulta. Então, todo mundo passou a querer ser jovem, e para sempre (“I wanna be forever young”, diz a música).
A segunda novidade é que as corporações produtoras de bens de consumo detectaram a juventude como importante faixa de mercado e a elegeram como elemento autoconsciente de seus desejos e necessidades: basta, então, ser jovem para ter razão. Articulado à mídia, o consumo conquistou autoridade e se impôs como padrão ético e indutor de disposições estéticas. As gigantescas forças da propaganda que sedutoramente manipulam a juventude talvez entendam mais do que as religiões sobre esse grupo.
A terceira novidade é o internacionalismo da cultura juvenil. A ruptura da nova geração com as anteriores e sua aclamação pelo mercado abriram um caminho para que a juventude elaborasse uma identidade globalizada e alicerçada na indústria da diversão. Essa indústria detecta necessidades e desejos vitais dos jovens para, em seguida, processá-los e comercializar soluções pasteurizadas, em conserva.
4. Querer
Mas o que os jovens desejam, afinal?
Entre as coisas que eles mais querem está encontrar seus iguais, a “galera”. O grupo de amigos(as) ou companheiros(as) representa um primeiro passo na saída do “pequeno mundo” familiar. No grupo, cada indivíduo se espelha, imita e inaugura os mais diversos ensaios (de atitudes, roupas, valores, penteados, sentimentos, corpos, perspectivas). As formas de sociabilidade (aí incluída a sexualidade) fornecem energias que impulsionam o jovem em direção ao “grande mundo”, a sociedade. A sociabilidade também é um estágio necessário para a identidade individual, para que essa pessoa ainda em formação construa a si mesma.
Os jovens também querem experimentar. De tudo. Para eles, a vida é uma aventura. Não à toa, um dos slogans mais marcantes das revoltas de maio de 1968 era “Tomo meus desejos por realidade, pois acredito na realidade de meus desejos”. Esse é o clima em que eles empreendem a construção de sua experiência. A contradição é que, tendo percorrido curta “quilometragem existencial”, devido à pouca idade (sobretudo os jovens da classe média), esses experimentadores são inexperientes, a tal ponto que sequer se dão conta disso. Adulados pela mídia e pela mentalidade predominante, os jovens pensam que o mundo está a seus pés e mostram-se convictos de que há muito pouco a aprender com as gerações anteriores – provavelmente têm razão, pois nadam no fluxo cada vez mais acelerado do consumo de novidades.
Para poderem experimentar, os jovens querem exercer ilimitadamente sua autonomia. Estamos imersos numa cultura que valoriza a escolha que, no entanto, se choca com a baixa oferta de opções concretas: esse contraste impulsiona o desejo de transformar a sociedade e nela abrir um espaço para si.
Também os impulsiona o generoso desejo de participar das decisões envolvendo a vida social (religiões inclusive), de transformar heroicamente o mundo e de colaborar no nascimento de uma sociedade utópica, onde impere a justiça social e a ética.
5. Precisar
De que, então, a juventude precisa para realizar seus desejos?
Ela tem necessidades muito concretas que, no entanto, não são simples de atender: educação, emprego e participação política. Essas realidades variam segundo a classe social a que cada jovem pertence. A classe social é um dos elementos formadores das diversas juventudes e as distingue entre si é (Pochman, in Novaes, 2004, p. 231). Nas faixas de maior poder aquisitivo, a família atua como rede de proteção e elaboração de identidade, a escola é um eixo educativo central e o trabalho envolve vocação e projeto de vida; já as famílias de baixa renda necessitam da colaboração laboral de seus jovens, e aqui a escola é uma presença periférica ou mesmo excludente em suas vidas e trabalhar significa lutar pela sobrevivência. Enquanto a maioria pobre sofre uma adultização precoce, provocada pela inserção precária no mercado de trabalho, os jovens de famílias de maior poder aquisitivo adiam o fim da fase juvenil com o objetivo de se qualificarem para atividades de melhor remuneração, com o objetivo de se contraporem a um mercado de trabalho competitivo.
Além disso, os jovens (sobretudo os pobres) necessitam de segurança, pois são as maiores vítimas de violência na população brasileira. A edição 2012 do Mapa da Violência mostra que, num ranking de 92 países, o Brasil é o quarto país com mais homicídios de jovens e que a taxa nesse item cresceu 375,9% nos últimos 30 anos. Segundo o levantamento, os assassinatos têm o maior peso entre os fatores externos de mortes de jovens. O sociólogo Luiz Eduardo Soares alerta que estamos diante de um “verdadeiro genocídio” (Soares, in Novaes, 2004, p. 130).
Esses dados mostram que, não obstante o jovem representar a manifestação do novo e a vitalidade/potencialidade pronta para qualquer nova oportunidade (Sofiati, 2011, p. 55), ele é também um ser dividido, vulnerável, oscilante e angustiado. Dentro desse quadro dramático de luzes e sombras, como se delineia a relação entre os jovens e as religiões? O que têm a oferecer entre si?
6. Religiões e jovens
A adesão religiosa também varia de acordo com o estrato social. De diversos modos, as religiões tentam suprir carências dos jovens. Sobretudo para os mais pobres, oferecem acolhida, ambientes de sociabilidade, vivência de emoções, respostas para questões vitais e participação em rituais. Algumas igrejas desenvolvem projetos de educação complementar e até de emprego, bem como acordos locais que resultam em segurança pessoal. É compreensível que os beneficiários desses serviços tendam a se entregar totalmente aos prestadores religiosos.
Minha pesquisa (Ribeiro, 2009) entre jovens universitários aborda sujeitos dotados de alto grau de empoderamento (escolaridade, capital cultural e renda familiar elevados, habitação numa metrópole): para estes, a religião é uma escolha entre várias outras agências elaboradoras de sentidos para sua existência. Tais condições lhes dão liberdade para cultivarem atitudes de distanciamento crítico, secularização, dúvida e bricolagem.
Assim, por um lado, nossos universitários valorizam as religiões por oferecerem sentido para a vida, conforto e elevação, fé, solidariedade e compaixão, melhoria ética das sociedades e exemplos. Por outro lado, criticam-nas por realizarem “lavagem cerebral” nos fiéis e os induzirem ao fanatismo e à irracionalidade; por tirarem dinheiro dos fiéis; ao proclamarem-se donas da verdade absoluta; por sua alienação e fuga da realidade; por manipularem os fiéis via emoção e medo.
A experiência de um segmento empoderado permite levantar possibilidades gerais na relação entre religiões e jovens. Em certa medida, todo jovem detém algum poder: o ponto de partida para dialogar com ele é identificar a fonte dessa energia. Para tanto, as religiões precisam ser capazes de se envolver na ampliação desse poder e assim contribuir para o crescimento em direção à autonomia e vida adulta.
A esse respeito, lembro a lição de Paulo Freire, nunca suficientemente repetida, de que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (Freire, 2011, p. 71). Aqui estão em jogo duas liberdades, uma a serviço da outra. Possivelmente se retirará mais aprendizado dessa situação se invertermos a tendência espontânea de considerar a religião maior do que a juventude. Mais do que perguntar sobre qual é a influência das religiões sobre os jovens atuais, cabe a indagação: “Será que, e como, as religiões se deixam influenciar pelos jovens?”.
Mas isso não deve ser entendido como “atender a clientela”, tal como faz a civilização do consumo. Sobretudo, para além dos aspectos mais óbvios e vistosos, as religiões admiram, sinceramente, a juventude? Em que aspectos? O que aprendem com ela? Como se vitalizam com a seiva jovem? Cabe aos “intelectuais orgânicos” das religiões e das juventudes, em parceria, buscar respostas multidisciplinares para essas questões – talvez aí estejam as bases para uma possível Teologia da Juventude.
Conclusão
Acolher a juventude é um desafio gigante para as religiões. Deve ser levada em conta a “juventude humana” e não apenas aquela que “frequenta o meu redil”. Para decifrar o enigma juvenil (“decifra-me ou te devoro”) e torná-lo produtivo, a religião, em especial a católica, é urgida a oferecer surpresa, compreensão da sexualidade e do feminino, espaço de autonomia para seus leigos. O jovem católico e, mais ainda, a jovem (por enquanto restrita a ser “leiga perpétua”) representam o leigo típico, atualmente reduzido a uma posição secundária. O anseio juvenil de participação pressiona as dinâmicas centralizadoras de tomada de decisões e as estruturas clericais de poder, que parecem ter sepultado as lições da Lumen Gentium. Se o catolicismo não for capaz de dar uma profunda guinada e aceitar o desafio que a juventude lhe apresenta, provavelmente os próximos censos demográficos continuarão a revelar redução de fiéis.
No entanto, e apesar de tudo, penso que o problema não é tanto a dimensão do rebanho, mas o fulgor da chama. Se deixar-se entusiasmar junto com a juventude, se estancar a desidratação da própria seiva, se não abortar o espírito livre que o insufla desde sua origem, então o catolicismo se manterá relevante – é isso que importa.
O mesmo vale para todas as religiões, no interesse da humanidade.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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