A mensagem sobre Jesus, assim como as pregações religiosas em geral, tem alcançado número considerável de ouvintes e adeptos, especialmente em virtude do florescimento religioso vivenciado no mundo inteiro nos últimos anos do segundo milênio, fenômeno que chega com intensidade até nós nos dias de hoje. Somam-se a isso o interesse das mídias e a importância da religião em outros campos. Daí o destaque, nos últimos anos, de livros como O Código Da Vinci, de Dan Brown, incluindo a versão cinematográfica de Ron Howard, de filmes como A paixão de Cristo, de Mel Gibson, e de famosos documentários sobre Jesus do Discovery Channel, cada vez mais populares no Brasil.
Assim como os demais aspectos religiosos, as interpretações acerca de Jesus e as percepções sobre a importância delas para a vida em geral são diversas e, em boa parte das vezes, contraditórias. Isso reforça e motiva ainda mais os estudos teológicos e as ações pastorais e missionárias.
Para esta reflexão, propomos abordar dois aspectos. O primeiro apresenta marcos para o estudo inicial da cristologia, e o segundo polo de reflexões analisa um pouco mais detidamente aspectos da vida de Jesus: sua espiritualidade, concepção escatológica e os conflitos por ele vividos.
1. O estudo da cristologia hoje
No contexto atual, diferentes grupos de cristãos têm se preocupado com a autenticidade da mensagem evangélica e com a respectiva fidelidade dela ao núcleo central e histórico-teológico da fé cristã. Entre numerosos desafios teológicos, está a busca de uma cristologia que ofereça bases bíblicas e teológicas consistentes para o discernimento das variadas mensagens acerca de Jesus.
Nesse sentido, uma reflexão bíblico-teológica sobre Cristo é necessária para que se possa discernir, o mais adequadamente possível, qual é a vontade de Deus para a humanidade hoje. Compreendemos a cristologia como a reflexão sistemática sobre os conteúdos da fé identificados na prática de Jesus e de seus seguidores e seguidoras. Mais concretamente, diríamos que a identidade e a relevância da cristologia se fundamentam basicamente na seguinte questão: “Como reconhecer o amor de Deus por intermédio da vida de Jesus de Nazaré?”
1.1. Qual é o melhor caminho para conhecer Jesus?
A despeito da visão presente no senso comum das pessoas, “Jesus Cristo” não é nome próprio (como se Cristo fosse um sobrenome de Jesus), mas trata-se de expressão dupla que professa e proclama uma fé: Jesus de Nazaré é compreendido e aceito como o Cristo, o Messias prometido, o Ungido de Deus. Isso faz que a conhecida relação entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé” seja complexa e teologicamente desafiadora. Resumidamente, compreende-se que o “‘Jesus histórico’ é o Jesus que pode ser reconstituído pela investigação histórica, aquele homem que viveu e morreu na Palestina do século I, ocupada na época pelos romanos […] o ‘Cristo da fé’ é aquele anunciado pela Igreja depois da Páscoa, o Cristo dos símbolos de fé e das declarações dogmáticas” (GARCIA RUBIO, 1994, p. 11-12).
A abordagem que tem sido considerada como mais adequada para a cristologia (que os estudiosos denominam “baixa, ascendente”) baseia-se na afirmação histórica de Jesus, homem judeu do século I. A esse ponto seguem-se uma “ascendência”, com o significado religioso a ele atribuído – Jesus como Cristo (o Messias, o Ungido) –, e uma interpretação teológica do significado histórico-teológico de Jesus Cristo para a atualidade.
A abordagem “baixa, ascendente” se contrapõe à “alta, descendente”, cujo ponto de partida é a Palavra (divina) preexistente que encarna no humano. Esta visão é questionável, entre vários motivos, por supor como evidente a divindade de Jesus, por omitir ou esvaziar o sentido da sua vida, morte e ressurreição e por sugerir uma figura mitológica à imaginação das pessoas (cf. LOEWE, 2000, p. 5-20).
A humanidade de Jesus é um fato concreto para o fortalecimento da fé da comunidade. Tal perspectiva ajuda a refletir sobre teologias atuais contrárias à ideia da cruz, como as teologias da prosperidade, por exemplo. Jesus não pode ser compreendido por uma nova visão docetista, que oculta a realidade da doença, do sofrimento e da morte.
A partir do momento em que o ser humano se reconhece na figura encarnada do Cristo manifestada no evento pascal e se identifica com ela, torna-se questionável a visão – fortemente difundida no meio eclesial – de que apenas a transcendência deve ser valorizada. A metodologia que parte da existência histórica de Jesus possibilita ao ser humano melhor compreensão de si mesmo, de sua fé, e melhor identificação com Deus. Com isso, as pessoas podem tornar-se mais humanas e acessíveis à pregação do reino de Deus, ensejando à Igreja uma prática libertadora.
A fé cristã deve a sua origem e vitalidade a aspectos diferentes de um mesmo evento, a saber: “Jesus ser reconhecido como Cristo de Deus, Deus ser crido como o Pai de Jesus Cristo que o ressuscitou dos mortos, e a presença de Cristo ser experimentada no Espírito que vivifica” (MOLTMANN, 1993, p. 69).
A revelação do Deus da vida (na ressurreição) é inseparável da revelação do Deus solidário (na cruz de Jesus). Cruz e ressurreição são dois momentos inseparáveis da realidade única que é o mistério pascal. O evento da morte-ressurreição de Jesus Cristo reúne e articula as dimensões próprias do “Jesus histórico” e do “Cristo da fé” ao integrar esvaziamento e glorificação, serviço e eucaristia, cruz e libertação.
1.2. A dimensão profética de Jesus
Se olharmos com atenção os evangelhos, veremos que a prática de Jesus é processual(histórica e desenvolvida com base em ações e reações concretas), situada (encarnada na realidade econômica, política e religiosa) e conflituosa (algo não desejado, mas inevitável, em razão da contradição entre o reino de Deus e a realidade social da época).
Ao rejeitar os títulos de rei, doutor e similares, Jesus direciona sua missão/vocação para o profetismo. Suas atitudes remontam ao despojamento e à visão crítica dos profetas (AT) e à postura do servo sofredor (Isaías). Há na prática libertadora de Jesus permanente chamado ao arrependimento e ao perdão. Trata-se de realidade baseada no amor, código essencial para a implantação do reino. É reflexo da espiritualidade de Jesus. Ele, na motivação do Espírito, expressa a sabedoria com base na experiência de intimidade com o Pai (Abba). Isso não se confunde com uma autocompreensão divina por parte de Jesus, mas é nessa relação afetiva e de profunda confiança que ele se esvazia de si mesmo (Kenosis) e se apresenta como anunciador do reino, sem usar como usurpação o ser igual a Deus (Filipenses 2).
Jesus confrontou as autoridades religiosas de sua época, censurando-lhes a centralização do poder, a cristalização das doutrinas, a dogmatização e absolutização das ideias teológicas (a Lei) e a supremacia da dimensão institucional em detrimento da vida humana. Em decorrência dessa postura, foi assassinado.
O fim violento de Jesus seguiu a lógica de seu posicionamento perante Deus e o ser humano. A violenta paixão foi reação dos guardas da Lei, do Templo, do direito e da moral à ação não violenta e à defesa da justiça promovidas por Jesus. Sua morte é o resultado de opção política explícita pelas pessoas pobres e marginalizadas – efetuada ao longo de seu ministério – em oposição às “elites” de seu tempo. Tal opção foi marcada por forte visão religiosa escatológica que pregava a iminente vinda do reino, a qual resultou na compreensão, sobretudo por parte do poder romano, da necessidade da eliminação de Jesus. A experiência histórica concreta do assassinato de Jesus é a base para a compreensão do martírio de Jesus – referência teológica de relevância para a comunidade primitiva e para a fé cristã hoje.
2. Ajustar o foco: um olhar sobre Jesus de Nazaré
De posse dos pontos básicos do estudo da cristologia apresentados, muitos aspectos da discussão cristológica poderiam ser ressaltados. Três deles são privilegiados a seguir: a soberania de Deus expressa na mensagem de Jesus, a relação de Jesus com as expectativas do povo de sua época e a relação entre a mensagem e a morte de Jesus.
2.1. Jesus e a soberania de Deus
A relação entre o ser humano e Deus encontra um ponto crucial nas questões relativas à soberania divina. Esta tem sido divisor de águas de tantas correntes e perspectivas teológicas, assim como nos debates pastorais e doutrinários. A história da humanidade quase que se confunde com as tentativas humanas de chegar às dimensões do sagrado, nas diversas variações culturais e históricas dele. Em geral, o ser humano busca a possibilidade de compreender decisivamente o sagrado ou, em alguns casos, de assumir o lugar que as experiências e as doutrinas religiosas concederam a ele. No caso da tradição judaico-cristã, trata-se de “comer o fruto do conhecimento do bem e do mal” (cf. Gênesis 3), e, com essa atitude, avolumam-se consequências das mais diversas ordens.
Tais reflexões situam-se no campo do poder. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?” (Romanos 8,31), perguntam todos os cristãos, com os mais diferentes e até mesmo antagônicos propósitos. A qualidade de resposta a essa questão, associada às potencialidades históricas de cada pessoa, grupo ou nação, interfere no curso das sociedades. Isso sem considerar o plano das vivências pessoais, familiares e de pequenos grupos e instituições, com base em que a filosofia moderna consagrou o conceito de “microfísica do poder”. Essa situação, em si, exige da reflexão teológica parâmetros, critérios, formas e perspectivas de agir que possam garantir ações – gerais ou particulares, de grandiosas ou modestas consequências – coerentes com o evangelho.
Nesse sentido, há que constantemente retomar o reino de Deus como horizonte utópico dos cristãos. Trata-se da soberania de Deus, o poder que ele possui acima de toda e qualquer vontade humana. Nas palavras de Hans Küng: “Jesus não pregou uma teoria teológica, nem uma nova lei, nem a si mesmo, mas o reino de Deus: a causa de Deus (= vontade de Deus) que irá triunfar e que é idêntica à causa do ser humano (= bem do ser humano)” (KÜNG, 1979, p. 28). Jesus faz um convite para que se permita que Deus seja Deus (soberania), e isso requer abertura, despojamento e conversão humana. Trata-se de acolher o dom de Deus (graça). A cristologia, como uma das fontes sistemáticas de reflexão teológica, necessita situar decisivamente as ênfases bíblicas do reino e da soberania de Deus. Caso contrário, ela não poderá responder adequadamente às exigências da comunicação do evangelho.
Jesus viveu e morreu pela causa de Deus, que, por sua vez, estava e está em função do ser humano. Essa visão contribui para refutar as interpretações mágicas ou fundamentalistas que não consideram detidamente o propósito maior presente, como fio condutor, na mensagem do Novo Testamento – ou seja, o reino de Deus. Refuta também as mensagens, especialmente as de cunho soteriológico, que não articulam a morte de Jesus com os conflitos inevitáveis com os centros de poder, em virtude da fidelidade dele ao projeto do Pai (o reino).
Outro aspecto fundamental é que o evangelho, por ser anúncio da boa-nova salvífica, constitui instância crítica da sociedade e da história. Para Jesus, a soberania de Deus é também um juízo crítico sobre a história A pregação de Jesus, nesse sentido, está em tensão criativa e dialética com a história de Israel. Exemplar é a mensagem das “bem-aventuranças dos pobres”, que recria as expectativas do povo quanto à “terra santa”, onde abunda “leite e mel”. Trata-se, nesse caso, de novo êxodo, que se configura em uma crítica da situação concreta da vida à luz da noção da soberania de Deus.
Por outro lado, as bem-aventuranças significam que já é chegada a hora. Ou seja, a presença de Jesus no mundo cumpre as expectativas pela ansiosa espera dessa novidade de vida, da chegada do “Deus auxiliador”, que se compadece dos pobres. A importância e a fragilidade humana ganham o seu redentor.
Da mesma forma compreendemos as curas e a atitude de Jesus de libertar as pessoas dos demônios. Os consensos exegéticos indicam que a afirmação neotestamentária de que Jesus curou e expulsou demônios possui sólida base histórica. Trata-se de atitude salvífica de Jesus com relação aos que sofrem. Os evangelhos revelam, portanto, que a salvação será considerada como boa-nova somente à medida que se manifeste aqui e agora em favor de seres humanos concretos. Juízo e novidade, portanto, estão presentes no núcleo da pregação de Jesus (cf. SCHILLEBEECKX, 1981, p. 130).
Jesus vê o futuro como possibilidade exclusiva de Deus. Essa mensagem se contrapõe às formas de exercício do poder humano, mesmo aquelas imbuídas de profundo interesse pela concretização do reino de Deus. Dizer que “é de Deus” significa relativizar o poder e as ações humanas, até mesmo as bem-intencionadas, sobre as quais a sabedoria popular ousou afirmar que o “inferno está cheio”.
Essa mensagem de Jesus também fomentou tensões, em diferentes níveis, no contexto político-religioso de sua época. Diante do poderio romano, assim como de todo e qualquer poder constituído, a evocação de uma autoridade divina, soberana, autônoma e imperativa não ficaria impune. Tratou-se de ameaça frontal, com a consequente necessidade de enquadramento, o que redundou, como já referido, na morte de Jesus.
Por outro lado, o evangelho de Jesus, graças à lógica inclusiva e universal que possuía, rompeu com as perspectivas sectárias de diferentes grupos judaicos. Jesus não agiu de forma sectária nem autoritária, mas com autoridade (Mateus 7,29), ao anunciar o reino de Deus em consonância com a sua prática de vida. Ele abominou o sectarismo arrogante e prepotente dos escribas e fariseus (Mateus 23,15), relativizou o ascetismo próprio dos essênios e o imediatismo dos zelotes e questionou as formas político-religiosas, especialmente as dos saduceus, que, em vez de proclamar o amor de Deus, marginalizavam as pessoas que mantinham convicções diferentes.
A atitude de Jesus era, entre outros aspectos, um questionamento da noção, presente na maioria dos grupos, de um “resto santo”, de um “povo puro”. As análises desses códigos de pureza, invariavelmente, revelam a centralidade do esforço humano no processo salvífico, ainda que com variações de natureza e de grau. Como se sabe, há constante tensão no evangelho entre os códigos da aliança e da pureza. O primeiro retoma o Êxodo, a experiência do deserto e a corrente profética, enquanto o segundo se refere ao Templo, à perspectiva do sacerdócio real e à oposição à reforma deuteronômica. A pregação e a prática de Jesus são a personalização do código da aliança. O conhecimento e a sabedoria de Jesus vêm do deserto, não da sinagoga. Com isso, sua mensagem desvela a mentira e o ocultamento presentes na vivência religiosa (cf. 1 João 1; 2). Isso se dá em, ao menos, dois níveis: no plano da segurança pessoal, com as estruturas de autossalvação humana, e no plano das contradições, quando a condição de “ser religioso” (forte nas doutrinas dos fariseus) não corresponde ao “fazer o bem” (ênfase central do evangelho).
2.2. Jesus e as expectativas do povo
Um segundo aspecto refere-se à não sintonia da mensagem de Jesus com as expectativas populares. Havia, em Israel, significativamente maior expectativa da vinda do Messias do que do reino de Deus. O povo também esperava expressar o seu poder com a legitimação de poderes messiânicos, iminentes e humanos.
Os evangelhos – especialmente o de Marcos, pelo gênero literário e pela estrutura de redação – representam uma correção da mentalidade apocalíptica triunfalista reinante nos movimentos judeus do primeiro século. Jesus de Nazaré, verdadeiramente, é o Filho de Deus (Mc 1,1), que se distancia do Messias triunfante esperado por muitos, mas se revela como o Servo que assume o caminho que leva à cruz.
A expectativa (e a proibição/solicitação) de Jesus de que sua messianidade não fosse revelada representa uma das formas de conter a visão triunfalista surgida em torno dele. No Evangelho de Marcos, por exemplo, o “segredo messiânico” é revelado gradualmente, sempre em conexão com a perspectiva da paixão, e mantém-se até mesmo após a ressurreição (Mc 16,18). Trata-se, sobretudo, de referência teológica questionadora da autossuficiência excessiva da comunidade humana.
Jesus anuncia que o reino está para além da história. O futuro é sempre maior que o presente, embora ajude a instaurar na realidade atual uma vivência ético-religiosa em consonância com o reino de Deus. A vida e a pregação de Jesus demonstram que o presente e o futuro, ainda que distintos, estão essencialmente unidos. Ele prega a salvação futura, torna-a presente com a sua práxis e, com isso, indica a conexão entre a sua pessoa e o reino de Deus.
A presença de Jesus entre as pessoas requereu delas atitude de confiança fundamental. Tratava-se de uma opção a favor de Jesus e da proposta de vida por ele apresentada ou contra ele e sua proposta. Jesus revelava ao povo o sentido pleno da Lei, como signo da bondade e da misericórdia de Deus para a salvação. Todavia, perceber tal realidade salvífica requeria senso de fé, disposição para crer, abertura e acolhimento do dom salvífico.
A adesão das pessoas à proposta de Jesus gerava, para elas, outras possibilidades de convivência, alternativas ao rigor religioso de outros grupos em Israel. Paradigmático é o relato de Marcos 2,18-22, segundo o qual os discípulos de Jesus, ao contrário dos de João Batista, não jejuam, pois desfrutam da presença do Mestre. Nesse querigma se verifica uma absoluta liberdade de Jesus e de seu grupo de seguidores, diferente dos casuísmos e dos legalismos religiosos.
A convivência dos discípulos com Jesus é essencialmente fraterna, comunitária e festiva, sinal da salvação anunciada. Se o seguimento de João Batista, por exemplo, redundava em vida ascética de penitência, o de Jesus marcava-se pela novidade de vida plena de alegria e comunhão. Uma “comunidade de mesa”, onde se partilha a comida, a bebida e a solidariedade, como experiência presente da misericórdia divina, a ser revelada decisiva e definitivamente no futuro.
A possibilidade de salvação humana está relacionada, conforme os testemunhos bíblicos, ao dom gratuito de Cristo, oferecido pelo Pai e acolhido com fé pelos seres humanos, sob a ação do Espírito Santo.
A novidade do evangelho mobilizou diferentes pessoas e grupos. Ela baseava-se no fascínio e na força existencial que Jesus exercia sobre eles. Isso garantiu possibilidade histórica à fé cristã e manteve-se substancialmente relevante por meio da memória dos primeiros discípulos. A alegria da convivência fraterna com Jesus, somada ao pesar da ausência dele após a morte, formou um núcleo de lembranças fundador de uma fé ativa e solidária. Jesus revelou-se como um “homem da liberdade”, cuja soberania não esteve a favor de proveitos próprios, mas a serviço dos outros, como expressão do amor livre de Deus pelos seres humanos.
Olhar retrospectivamente essa convivência indicava para a comunidade primeira dos cristãos – assim como para as de hoje – perspectivas de uma comunhão futura com Cristo. Dessa forma, passado, presente e futuro se encontram, firmados na possibilidade do reino de Deus, como expressão salvífica concreta e escatológica para o ser humano.
O ministério de Jesus, segundo o relato do Evangelho de Marcos, inicia-se na Galileia após a experiência do deserto. Em Israel, havia se desenvolvido uma espiritualidade do deserto – lugar de solidão, oração, luta interior, tentação, purificação e encontro com Deus.
Para compreender a pregação de Jesus, a Galileia possui significado teológico relevante. Ali Jesus escolheu os seus discípulos (Mc 1,6-20; 2,14 e 3,13-19), deu-lhes a missão (Mc 6,6b-13) e os preparou para os enfrentamentos e para a paixão (Mc 8,31ss). A Galileia contrasta com Jerusalém – lugar de onde procedem opositores: “E os escribas que haviam descido de Jerusalém diziam: ‘Beelzebu está nele’” (Mc 3,22); “Os fariseus e alguns escribas vindos de Jerusalém reuniram-se a ele” (e discutiram sobre a tradição dos antigos) (Mc 7,1-13). A Galileia, portanto, “mais que um lugar geográfico, é um lugar teológico” e servirá posteriormente, como está redigido no final do evangelho, de referência de onde encontrar o Ressuscitado (Mc 16,7).
A ênfase do Kairos – “o tempo está realizado e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,12-13) – abre, para Jesus, longa jornada de conflito em meio à sua vida e mensagem. A Galileia é distante do Centro, mas não deixa de ser lugar privilegiado para a crítica de Jesus aos poderes constituídos, que estão em contraposição à mensagem do reino proclamada por ele.
Ao lado disso é preciso destacar que os relatos dos evangelhos, especialmente o de Marcos, priorizam a ação de Jesus, enquanto a descrição mais formal e doutrinária deensinamentos fica em segundo plano. Não se trata de separação entre ação e ensino, mas, sim, de referência teológica de destaque para a vida cristã que valoriza especialmente o agir e percebe nessa prática o autêntico ensinamento.
O dinamismo do evangelho, portanto, caracteriza-se pelo apelo ao seguimento de Jesus como motivação teológica básica; pela escolha da periferia (Galileia) como lugar social privilegiado; pela relação com os empobrecidos e oprimidos como sujeitos sociais da preferência de Deus; pela ênfase no cotidiano como o tempo e o espaço próprios do reino. Daí a importância de enfatizar que Jesus valorizou a vida. A afirmação de que ele “veio para morrer por nós”, além de ser teologicamente contraditória, reforça uma visão sacrificialista que, embora historicamente presente no cristianismo, é contrária à fé cristã (cf. BRAVO, 1996, p. 121-152).
2.3. Jesus e o exercício do poder
Para compreender melhor os conflitos vividos por Jesus, utilizaremos a palavra “Centro”. A chave interpretativa da expressão “o Centro” é a conjugação dos fatores políticos externos e internos presentes na vida do povo judeu. Os primeiros tratam de uma dominação exercida pelo império romano, de cunho político-econômico. Os fatores internos referem-se a uma supremacia político-religiosa de lideranças judaicas, que redundava em posturas de consonância e colaboração com o poder romano, não isentas de corrupção.
Esse quadro de dupla dominação produzia massas economicamente pobres, religiosamente marginalizadas e politicamente reprimidas, sobretudo por força dos mecanismos institucionais dos tributos, da Lei e do exército. Por outro lado, também gerou revoltas e movimentos de resistência, e a Galileia, lugar da infância e da juventude de Jesus, foi uma das regiões mais afetadas pelas convulsões políticas e sociais da época.
As autoridades judaicas exerciam o poder por intermédio do Sinédrio (como expressão política) e do Templo (como expressão teológica), ambos localizados em Jerusalém. O Sinédrio (conselho supremo dos judeus) era dirigido por um sumo sacerdote judeu e formado por 71 integrantes, entre fariseus e a maioria de saduceus.
O Templo, por sua vez, era de vital importância para o povo judeu e para os habitantes de Jerusalém, em especial. Tratava-se de motivo de orgulho, chave de identidade, síntese sacramental da eleição e fonte da economia judaica. Esta incluía o comércio de animais para os sacrifícios, o trabalho de construção do Templo – ainda presente na época de Jesus – e os serviços dos sacerdotes, levitas e outros.
Em torno desses dois elementos havia um sistema de ideias e de práticas que foi objeto de contestação de vários grupos, também do ministério e do seguimento de Jesus. Assim como a Galileia, o Centro, portanto, era também mais do que lugar geográfico, era a expressão ideológica de um sistema de doutrinas e de práticas político-religiosas vigentes.
Não obstante Jesus ter privilegiado a população camponesa e empobrecida da Galileia como alvo preferencial de sua pregação e ministério (ao contrário de se dirigir às autoridades e grupos sociais de destaque em Jerusalém), sua prática estabeleceu uma polêmica radical com os fariseus e com os mestres de Israel. O Evangelho de Marcos revela, com base no relato de cinco atitudes de Jesus, em sequência, esse confronto:
a. Perdoa os pecados de um paralítico e cura-o de sua enfermidade (Mc 2,1-12).
b. Convida um cobrador de impostos (Levi) para ser seu discípulo e vai à casa dele para comer em companhia de outros publicanos (Mc 2,13-17).
c. Deixa, juntamente com os seus discípulos, de observar a prática do jejum, prescrita na Lei (Mc 2,18-22).
d. Faz esforços indevidos segundo a Lei ao colher espigas pelas plantações do caminho em que andava, em dia de sábado (Mc 2,23-28).
e. Igualmente em dia de sábado, na sinagoga, cura um homem doente (Mc 3,1-5).
Tais atitudes geram, da parte de fariseus e de herodianos, a imediata intenção de conspiração contra Jesus e de planejamento de sua morte (Mc 3,6). Eles perceberam as dimensões libertadoras (e, nesse sentido, subversivas) contidas nos discursos de Jesus, as quais orientavam as práticas dele:
A morte de Jesus na cruz, fruto dos conflitos com os grupos político-religiosos, torna-se consumação da maldição, uma vez que ele se torna o representante das pessoas e grupos considerados violadores da lei ou tidos como pecadores. Ela mereceu objetiva consciência, tanto do poder romano como das autoridades judaicas. Jesus deslegitimou ambos, especialmente com o silêncio. Primeiramente no Sinédrio (Mc 14,60-61), depois perante Pilatos (Mc 15,15).
O silêncio é expressão política e teológica de relevância. Jesus falou aos pobres e calou-se diante dos poderosos. Com isso, revelam-se a atitude e a missão preferencial que marcaram o ministério de Jesus. O silêncio, quando não por conveniência própria, indica especial mística, um “para além de”, despojamento absoluto e confiança no Pai. O silêncio é sinal de libertação.
3. Uma história inconclusa…
As comunidades, quando vivem e celebram os sacramentos, atualizam a mensagem da cruz. Com isso, a ênfase recai sobre o serviço, o perdão, o esvaziamento e a disposição de caminhar em direção aos processos de humanização e libertação. O cristianismo hoje parece viver um tempo no qual uma visão triunfalista se sobrepõe ao sofrimento de Cristo e ao anúncio do reino. Mas a cruz nega o egoísmo humano, fundamenta a doação e o serviço e abre perspectivas para que haja satisfação pessoal em ver a realização do outro.
Jesus morreu por fidelidade às tradições libertadoras do Êxodo e da aliança dos profetas, expressões do reino de Deus que pregou. A cruz de Jesus, o Cristo, escândalo para os judeus e loucura para os gentios (1Cor 1,23), possibilita significado para o despojamento humano, autodoação, solidariedade e vida de serviço e de alegria.
É, sobretudo, a experiência de fé e de martírio das primeiras comunidades, registradas no Novo Testamento como “memória das memórias”, que abre a possibilidade de compreensão dos atos históricos de Jesus. Assim, encontram-se articuladas fé e vida, morte e glorificação, libertação e salvação.
É fato que, histórica e pastoralmente, os relatos bíblicos do sofrimento e da morte de Jesus, não obstante a ressurreição, conferem um medo como o que tiveram aquelas que fugiram do túmulo, assustadas (Mc 16,6). Todavia, os consensos exegéticos indicam ser uma história inconclusa… Sinal, portanto, de que o ponto final está por vir, que fidelidade e esperança se conjugam e que a realidade presente requer vigilância e novidade permanentes.
* Pastor metodista em Santo André-SP, doutor em Teologia pela PUC-Rio e professor de Teologia e Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Assessor das comunidades eclesiais de base.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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