Desde o Vaticano II e sua releitura latino-americana na Conferência Episcopal de Medellín (1968), a opção preferencial pelos pobres tornou-se a marca característica da Igreja deste continente. Convém esclarecer que a opção pelos pobres não é meramente econômica, mas social, política, cultural, espiritual, ética, teologal. “A minha fome é um problema material; a fome dos outros, porém, é um problema espiritual” (Berdiaeff). Com o fim do “socialismo real”, não compreendendo a abrangência da opção, alguns quiseram considerá-la ultrapassada. Impossível pretensão. A opção preferencial pelos pobres é evangélica e, por isso, irrenunciável. Ademais, sob o império neoliberal tornou-se ainda mais urgente, por ter a situação dos pobres piorado.
O futuro da eucaristia na América Latina está intimamente relacionado com a opção pelos pobres. O simbolismo eucarístico do partir o pão e reparti-lo é sumamente sugestivo, quando tantos, sob vários pontos de vista, não têm lugar na mesa do banquete globalizado. Cristo quis fazer-se presente num simbolismo vital: a refeição. Não é possível partir e repartir o pão eucarístico sem um compromisso com os pobres que nos cercam. O futuro da eucaristia depende da coerência em torná-la verdade em nossa vida. E a verdade do símbolo eucarístico se expressa na partilha na vida de cada dia.
É comum referir-se à América Latina como um continente homogêneo por sua religião e cultura. Na verdade, porém, ela apresenta rica gama de culturas, a começar pelos povos autóctones e afro-americanos, sem esquecer os europeus e asiáticos de migração mais recente. O que, em tempos passados, estava oculto sob a capa de uma cultura e religião hegemônicas aparece agora com toda sua riqueza. Indígenas e negros levantam sua voz, exigindo o reconhecimento de sua idiossincrasia.
Nos sulcos do Concílio Vaticano II, a afirmação do pluralismo eclesial trouxe para a discussão teológica e a prática pastoral a temática da inculturação. A eucaristia, que está no coração da Igreja, necessariamente será atingida por ela. A inculturação significa mais do que alguns retoques rituais na venerável liturgia romana. Em regiões da América Latina com mais forte identidade indígena, será preciso levantar a questão da própria matéria do sacramento. A eucaristia foi instituída com pão e vinho em meio à cultura mediterrânea, no contexto da civilização do trigo. Entre os povos autóctones da América Latina, o milho, principalmente nas regiões do altiplano andino, e a mandioca, dos Andes ao Atlântico, desempenham a função do trigo no mundo mediterrâneo e são alimento básico sob formas similares ao pão. O pão de trigo, por familiar que seja nas mesas citadinas, é estranho em muitas regiões rurais e, em outras partes, apenas complementa o emprego tradicional de massas de milho ou mandioca.
O uso do vinho é ainda mais restrito. Sua cultura em escala comercial foi implantada apenas desde o século passado por imigrantes italianos e espanhóis, em regiões bem delimitadas. Ultimamente tem aparecido em regiões sem tradição vinícola, mas está longe de ter criado raízes na maioria da população.
Seria possível celebrar a eucaristia com beiju (torta feita de mandioca) e chicha (bebida fermentada de milho)? A inculturação não poderá passar ao largo dessa questão. O pão, na cultura mediterrânea, era o alimento básico, cotidiano; o vinho, a bebida festiva. Em outras culturas, outros são o alimento e a bebida que correspondem a esse significado. A “substância do sacramento” (cf. DS 1.728) estaria preservada só com o uso do pão e do vinho? Não bastaria o simbolismo de uma refeição?
Se a pluralidade cultural da América Latina já constitui um desafio prático e teórico, mais ainda sua pluralidade religiosa. Embora tenham aceito o cristianismo trazido pelo conquistador, os povos autóctones e os escravos africanos mantiveram na clandestinidade suas religiões de origem que hoje vêm à luz com força renovada e são aceitas também por descendentes de europeus ou os influenciam. Muitas vezes, verifica-se uma dupla pertença (ou prática) religiosa, a ponto de a participação na eucaristia ser eventualmente exigida em função do culto de outra religião.
Eis um aspecto da intercomunhão dificilmente contemplado na reflexão europeia ou de antemão desprezado como uso supersticioso. Será esta a única explicação, considerando que tais pessoas são batizadas e se consideram católicas? A afirmação da especificidade eclesial da América Latina exigirá uma reflexão que aborde tais questões, até agora nunca discutidas teologicamente.
A religiosidade popular herdada da colonização ibérica se caracteriza pela centralidade do culto aos santos. Desde o século passado, porém, religiosos vindos da Europa tentaram introduzir uma piedade eucarística calcada na prática do culto aos santos que, em alguns lugares, teve êxito. A hóstia consagrada passa a ser cultuada como um “santo” a mais. Esse tipo de piedade vem sendo ultimamente reforçado pela Renovação Carismática Católica, que em muitos cultos focaliza a devoção à eucaristia não como celebração, mas como presença real. O desafio é a maneira pela qual, a partir daí, levar os fiéis à centralidade da eucaristia como celebração do mistério pascal.
Uma compreensão da Igreja como comunhão de Igrejas locais, que se visibilizam na eucaristia presidida por seu bispo (cf. LG 23 e 26), traz consigo a exigência de umanova concretização dos ministérios eclesiais.
Em nosso continente, a maior parte das comunidades está impossibilitada de celebrar cada semana a eucaristia por falta de presbítero que a presida, o que impede a maioria dos cristãos de ter experiência concreta da centralidade da eucaristia.
O problema real não é a falta de padres, mas a forma de seleção dos ministros a partir da concepção pós-tridentina de vocação ao ministério. Os presbíteros são retirados de seu meio ambiente, educados num seminário, providos de formação acadêmica, celibatários, encarregados de uma paróquia desconhecida deles. Ou vêm de fora cada domingo para celebrarem a eucaristia sem participarem da vida cotidiana das comunidades que presidem.
Ora, em todas as comunidades cristãs surgem hoje lideranças que, ocupadas profissionalmente em outras tarefas, dedicam o tempo livre a animar na gratuidade a vida da comunidade e, de fato, a presidem em lugar do padre. Muitas vezes não têm formação teológica, nem sequer acadêmica. Se essas pessoas pudessem ter o ministério que efetivamente exercem, reconhecido pela imposição das mãos do bispo, não haveria escassez de presbíteros e toda comunidade cristã poderia celebrar a páscoa dominical.
A formação teológica dos presbíteros é uma aquisição que não se deveria perder. No entanto, nas condições reais da América Latina, o analfabetismo ainda é uma realidade, o ensino público se deteriora a olhos vistos, nos ambientes pobres cada vez mais se fazem presentes “seitas” pentecostais cujos pastores são tomados do próprio povo, sem maior preparo. Uma alternativa viável seria que não fosse exclusivo o modelo de presbítero pós-tridentino. Estes continuariam a existir com a função de percorrer as comunidades, confirmando-as na fé e atualizando os presbíteros estáveis escolhidos entre o povo, com suas características culturais e o nível de estudos exigido pelas circunstâncias de cada lugar. Só assim as comunidades não se veriam privadas da celebração dominical da eucaristia. O ministério em tempo parcial não é problema na América Latina, pois a fidelidade à fé cristã e católica da grande maioria das comunidades se manteve até hoje graças à ação de leigos socorrida pela visita esporádica de padres.
Eucaristia vivida no compromisso social, inculturada até no gesto simbólico central, presidida por presbíteros tomados do meio do povo que permanecem integrados na vida da comunidade a que pertencem, eis alguns dos aspectos do futuro a ser desejado para que se possa viver a centralidade da eucaristia na América Latina.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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