1. Mistério de nossa fé
A fé é uma experiência pessoal, intransferível e fundamental no seguimento de Jesus Cristo. Todos os povos cultivaram o sentimento da fé, como um elemento constitutivo do ser humano. Sentindo o apelo divino, eram levados à contemplação, à prece e aos rituais celebrativos. Desses bens de sua religiosidade nasciam as instituições religiosas com seus ministérios e sua hierarquia de serviço e poder. Suas próprias doutrinas e concepções de Deus inspiravam seus valores e sua ética, fazendo-os buscar coerência entre suas crenças e credos e sua moral.
Em todas as práticas religiosas, os mistérios eram celebrados e vividos comunitariamente. A humanidade conheceu incontáveis experiências religiosas que constituíram tradições com grande riqueza simbólica, ritual e ética. Todos os grupos humanos sempre procuraram dar sentido à própria vida, partindo das convicções em relação ao seu destino. A certeza da presença divina na vida cotidiana assegura a felicidade eterna e compromete nossas ações. Deus está conosco, impele-nos para o seu amor e envia-nos como missionários de seus dons entre os irmãos.
O mistério constitui “a alma de nossa fé” e habita o mais íntimo de nós mesmos. Nesse espaço interior sagrado, encontramo-nos com o “Criador”, com ele nos comunicamos e sentimos a força de sua graça. Esse é um diálogo pessoal e inviolável, mediante o qual cada ser humano faz sua experiência interior, tocando o amor divino e sentindo-se tocado por ele.
Semelhante experiência pessoal exige interação. Na convivência com os outros, partilhamos essa experiência como um bem comum e comunicável. Todos os irmãos e irmãs que têm contato com o mistério na própria vida compartem esses bens espirituais, criando uma rede integradora de suas experiências. Uma vez que esse mistério é indizível, o ser humano busca estilos literários para comunicar suas verdades, originando assim as “escrituras sacras”. Esses sentimentos de fé são transmitidos por meio de mitos, parábolas, romances, sagas e outros estilos literários acessíveis à compreensão humana.
As verdades mais profundas, irretratáveis em nossos discursos comuns, são embaladas em mitos, em que grandes personagens e grandes acontecimentos revelam doutrinas fundamentais. Se a tradição judaica professa a fé num Deus criador absoluto, que traz à existência todos os seres do universo com seu poder infinito, o mito considera essa verdade, narrando uma história com personagens, eventos e diálogos que transmitam suas convicções. Podemos verificar esse estilo literário na compreensão da presença do pecado no mundo, na explicação para a inveja, na busca de entendimento sobre as diferenças raciais e sobre outras realidades humanas.
Essa experiência de fé é retratada pelo povo em seus testemunhos e testamentos. Os povos buscam a Deus, que se deixa encontrar, e realizam com ele pactos, com seus postulados, exigências e compensações. Deus é solícito e o povo precisa ser acolhedor.
2. Mistério revelado na história
Na plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho ao mundo (Gl 4,4). A experiência de fé da comunidade que seguiu seus passos e partilhou seu dia a dia foi inscrita em narrativas de testemunho. São os evangelhos, as cartas apostólicas e pastorais e alguns fatos da vida dessa comunidade. O mistério foi revelado, pois o Filho de Deus habitou entre nós (Jo 1,14), mas essas verdades foram escritas em estilos literários compreensíveis para os fiéis, numa linguagem capaz de reunir os sentimentos e refletir o mistério contemplado por eles no tempo em que conviveram com o Filho de Deus.
Tendo compreendido que a revelação definitiva de Deus se concretizou em Jesus Cristo, seus seguidores, os apóstolos, procuraram registrar suas verdades por meio de exortações, parábolas, hinos e histórias. Sobretudo, narraram sua história de vida, suas falas, gestos e atitudes. O conteúdo dessas narrativas tornou-se as expressões de nossa fé, passíveis de ser contadas e transmitidas às novas gerações. O nascimento do Filho de Deus, seus primeiros anos, sua vida pública e seus dias derradeiros foram contados sob distintas interpretações. Como se fossem diferentes ângulos de um mesmo cenário, cada uma das narrativas ressaltou detalhes particulares, apesar do núcleo comum dos acontecimentos. Não havendo uma preocupação estritamente histórica, antes um testemunho do encontro com Deus, os escritores sagrados relataram os fatos, procurando evidenciar sua importância e seus interesses para a comunidade dos fiéis. Os evangelhos sinóticos foram mais narrativos e próximos de crônicas, ao passo que o Evangelho de João revelou o sentido dos fatos, mais que os próprios acontecimentos. As cartas e todos os demais escritos procuraram responder às questões mais polêmicas e orientar os neófitos no seguimento do Cristo vivo e ressuscitado.
Jesus Cristo é a palavra viva do Pai que se deixa revelar e ilumina os caminhos da humanidade. A promessa do Paráclito (Jo 16,7-15) não foi em vão, pois os seguidores do Nazareno procuraram compreender e encarnar as verdades transmitidas pelos apóstolos de acordo com os novos paradigmas culturais e religiosos. São os passos primeiros da grande tradição, matriz absoluta de tantas tradições.
3. Cristianismo no interior da história
O cristianismo foi se expandindo e penetrando entre os povos como a chuva suave que desce sobre a terra e vai alegrando os campos. Os apóstolos saíram pregando por várias cidades. Não pelas cidades mais importantes, mas por onde “as mãos do Senhor os conduzia” (At 8,14-17). Foram pregar em cidades e grupos humanos, em bairros de periferia e mesmo em praças. A pregação fazia nascer comunidades novas, que se organizavam aos poucos, de forma espontânea e peculiar. Elas, com seus responsáveis, celebravam seus rituais. De forma germinal, encontramos aí os rituais bem sucintos do batismo e da ceia eucarística, acompanhados de jejum preparatório e orações livres.[1] Os primeiros sucessores dos apóstolos, mais tarde alcunhados de “Padres apostólicos”[2], foram grandes pastores que dirigiram comunidades e lhes deram estruturas e força para seguirem pregando o evangelho e concretizando a experiência do amor, do perdão e da partilha.
As comunidades vão elaborando sua tradição com base nas pregações dos antepassados na fé, que conviveram com o Senhor em sua vida pública e testemunharam sua morte e ressurreição. Tornam-se, com ardor e coragem, propagadoras dessas verdades. Têm total confiança em que encontraram a “verdade absoluta” e Jesus Cristo é o Messias esperado desde séculos.
Grandes Padres da Igreja passam a unir afirmações fundamentais da fé com fórmulas cristológicas — anunciando que nasceu verdadeiramente, comeu e bebeu, foi crucificado e morreu perante o céu, a terra e os infernos, e que verdadeiramente ressuscitou dentre os mortos —[3] ou trinitárias, ensinando que devemos ser firmes em nossa adesão a Jesus Cristo para sermos bem-sucedidos na fé e na caridade, com o Filho e o Pai e o Espírito Santo.[4] Cada comunidade de fiéis, em tantos lugares da Palestina e na diáspora, sobretudo no Oriente Médio, na Europa, na Ásia Menor e no norte da África, procura viver o evangelho que recebeu de seus pastores e espontaneamente traça o roteiro de seus rituais para acolher os neófitos, celebrar a fração do pão, ungir os doentes, perdoar aos pecadores e consagrar os matrimônios. A tradição dos rituais dos sacramentos, particularmente, vai assumindo elementos culturais dos povos que se convertem ao cristianismo. Acolhida a revelação cristã, aproximam-se da tradição herdada dos evangelizadores e compõem-na com seus símbolos, linguagem e ritos antigos que podem servir para celebrar os mistérios da fé em Jesus Cristo.
4. Modelo da construção da tradição
Muitos elementos da tradição foram herdados do judaísmo, na qualidade de “comunidade mãe”, como nos ensina o documento conciliar.[5] As bênçãos, os salmos, as unções e particularmente as festas pascais são integradas na vida litúrgica dos seguidores do Nazareno. Esses elementos são interpretados pelos pastores e pelas comunidades como fenômeno de continuidade, mas também há espaço para a autonomia e a descontinuidade. Basta recordarmos o sábado, que, embora seja assumido em suas principais funções, integra a páscoa cristã e é celebrado no primeiro dia da semana, dia da ressurreição do Senhor (Jo 20,1-2). Nesse dia, há a distribuição dos alimentos consagrados a todos os presentes e os diáconos se encarregam de enviá-los aos ausentes. Essa celebração ocorre no “dia do sol”, quando todos os habitantes das cidades ou dos campos se reúnem para as leituras, preces e fração do pão em nome do Senhor[6]. Ao mesmo tempo que notamos a busca de valores na tradição, percebemos a inovação suscitada pela realidade cultural do universo greco-romano.
Esse exemplo pode ser paradigmático para compreender o sentido da construção da tradição, que deverá orientar a vida pastoral de nossas comunidades contemporâneas.
A jornada do sétimo dia da semana, shabath, tinha alguns objetivos importantes: prestar louvores a Javé e reconhecer seus benefícios, desde a criação até cada momento presente; conviver com os familiares, reforçando os laços de afeição; dedicar-se ao lazer e à cultura, para desenvolver-se, amenizar as fainas cotidianas e repousar de longas jornadas de trabalho. Essa tradição é acolhida pela comunidade cristã, que celebra a ceia do Senhor e a eucaristia em ação de graças pelos dons divinos, que se congrega para viver em comunidade e crescer na fé. Também é dia de descanso e de honrar “domingos e festas”, como sempre aprendemos na catequese fundamental. Toda família se reúne ao redor da mesa do Senhor, a messa, e na mesa da família, a mensa. É o dia da festa, do esporte, do passeio e da convivência familiar. Notamos que os bens da tradição antiga se unem com a nova profissão de fé e compõem uma tradição renovada. Esse itinerário ritual é, diríamos assim, espontâneo, pois “a comunidade faz caminho caminhando”, mas os teólogos meditam e fundamentam a experiência pastoral e os pastores da Igreja conduzem e orientam suas práticas, providenciando para que sejam harmoniosas com os princípios e ensinamentos cristãos. Como a identidade da comunidade é reflexo do mistério pascal de Jesus Cristo, a comemoração de sua ressurreição, no primeiro dia da semana, leva os cristãos a eleger esse dia para viver a mesma experiência que Maria, os apóstolos e os amigos de Jesus vivenciaram na manhã desse grande evento da nossa fé.
O shabath é celebrado, conforme sua importância para os seguidores de Jesus, mas a comunidade dos cristãos transfigura seu conteúdo doutrinal e, seguindo os elementos religioso-culturais da tradição, elaboram novo ritual, o qual se torna tradição cristã que perpassará os séculos. Nos séculos vindouros, os povos integram novos elementos celebrativos, conforme as culturas em que o cristianismo é semeado.
O domingo torna-se uma tradição e, como tal, um item importante da vida cristã. Os cristãos se reúnem nesse dia e celebram a “páscoa semanal”, ouvem a palavra do Senhor, partilham o pão eucarístico, confraternizam com os irmãos, comprometem-se com os pobres e abrem-se à evangelização.
Ao longo dos séculos, embora tenha conservado o essencial da tradição, esse ritual eucarístico recebeu influência em seus gestos, movimentos e símbolos e foi enriquecido pelas culturas dos povos. A bem da verdade, nem sempre a comunidade eclesiástica foi tão solícita na construção da tradição, ainda que tenha sido sempre muito cuidadosa para que a pluralidade não destruísse a unidade e a uniformidade não empobrecesse a criatividade e o dinamismo ritual.
Em nossos tempos, considerando grupos humanos que vivem em sociedades que não preservam o domingo, este preceito pode ser cumprido em dias diferentes, e em muitas profissões o encontro com o Senhor ressuscitado se realiza em horários propícios.
5. Tradição dos ensinamentos
Os escritos bíblicos foram germinados numa cultura em que o conhecimento não se processa pela lógica do pensamento e pelas definições conceituais. Isso pode ser afirmado de forma geral, pois o pensamento semita é marcado pela narrativa dos fatos e o conteúdo dos conhecimentos é determinado por meio de parábolas, mitos ou alegorias.
Podemos verificar como as respostas de Jesus às indagações tanto dos apóstolos quanto dos doutores da lei e mesmo das pessoas mais simples do meio do povo vêm na forma de breves histórias, que o próprio Jesus define como parábolas. Estas são histórias metafóricas cujos cenários são decorados com elementos da vida cotidiana, como a semente, o barco, o trigo e os rebanhos. Para compreender a tradição bíblica, precisamos conhecer o significado dessa simbologia na vida da comunidade. É necessário conhecer a diferença entre o pastor e o lobo, entre o cabrito e o cordeiro, bem como entre a primavera e o inverno. Por certo, não é tão linear a tradição bíblica em termos de epistemologia. De fato, no método de evangelização e de catequese, encontramos histórias inerentes ao estilo semita, mas também reflexões com teor filosófico — o primeiro sinal da intromissão do pensamento grego na formação da doutrina cristã. Esse processo de helenização da boa-nova se estabelecerá e permanecerá por séculos como um referencial na constituição dos símbolos apostólicos e das verdades do cristianismo.
É possível perceber, mediante um estudo mais aprofundado, como a tradição encerra na sua doutrina o sentido da ceia eucarística. A base bíblica retrata uma ceia simples, com diálogos especiais. Da expressão “este é meu corpo”, a tradição deriva o significado do pão e o valor sacramental que o ritual tem para a comunidade celebrante. Séculos mais tarde, quando João Crisóstomo descreve o significado dessa ceia, ele afirma que “Cristo nasceu de nossa própria substância (…) ele os fez renascer, alimenta-os de si mesmo, não nos abandona a outrem e, assim, nos convence, uma vez mais, que verdadeiramente tomou nossa carne”[7].
Os grandes teólogos e patriarcas dos primeiros séculos da Igreja aprofundaram o verdadeiro sentido do gesto de Jesus na última ceia. Para os primeiros narradores daquele evento (Mt 26,20s; Mc 14,17s; Lc 22,14s; 1Cor 11,23-25), bastava descrever seus principais momentos. João, no quarto evangelho, já iniciara uma compreensão mística daquela ceia quando define Jesus como “pão da vida” ou “pão que desceu do céu” e o mostra dizendo que “quem come deste pão, que é meu corpo, tem a vida e eu o ressuscitarei no último dia”. Na tradição dos primeiros séculos, muitos teólogos fundamentaram o significado daquela ceia para os fiéis. Compreenderam a dimensão da presença divina nas espécies eucarísticas e todos os rituais inerentes a essa convicção.
Em mutirão, considerando as experiências das comunidades que acreditavam, celebravam e viviam a fé, a tradição foi se compondo como um patrimônio respeitável.
Esse patrimônio se torna valioso para a comunidade, pois, além de compendiar as doutrinas cristãs, unifica os povos diferentes que seguem Jesus Cristo e o assumem como seu salvador. Mas, como ocorre desde os primórdios, os elementos culturais e religiosos das tradições antigas servem de ponte para integrar os fiéis que se convertem ao cristianismo. A tradição do povo cristão edificada em mutirão, almejada e coordenada pelos pastores das comunidades, integra valores, símbolos e rituais dos povos, inovando o seguimento na profissão de fé e na prática de seus valores.
6. Tradição dos rituais
Uma das questões mais presentes nas discussões teológicas, mesmo em nossos tempos, é a formação dos ritos relativos aos sacramentos e aos sacramentais da Igreja. Com muita frequência somos confrontados com a pergunta: onde se encontra isso na Bíblia? Ou ainda: isso está nas Sagradas Escrituras ou é invenção da Igreja? Por sua vez, na formação de sua tradição, os catequistas e pastores da Igreja insistem em afirmar que tudo está fundamentado na revelação bíblica. Essa atitude foi tão imperativa na trajetória da tradição, que não só todas as afirmações dogmáticas, sobretudo as marianas e cristológicas, mas também os fundamentos dos sacramentos encontram sua inspiração nos textos do Novo Testamento.
Atualmente a reflexão é mais do que nunca importante, embora tenham ficado no passado as concepções superficiais de que “imagem é adoração”, “santo é idolatria” e outros dilemas na interseção das várias confissões religiosas cristãs. Perdemos por séculos a beleza da Bíblia, e outras confissões cristãs não aprofundaram a riqueza da religiosidade popular e da vida sacramental, a fim de estabelecer um distanciamento mútuo. Nossas comunidades já perceberam a riqueza inesgotável das páginas bíblicas e os demais grupos redescobriram a importância dos sinais sacramentais como meios de contemplar a graça divina. Nos “novos movimentos religiosos”, a situação é um pouco diferente, pois a necessidade de autoafirmação e o natural proselitismo inicial — o pecado desses grupos — estimulam pregações apologéticas e os fazem rejeitar todo modelo de tradição diante dos fiéis.
Falando mais especificamente dos ritos, por certo não os encontramos descritos nos evangelhos nem nas cartas paulinas e apostólicas. Nem mesmo os Atos dos Apóstolos os descrevem, senão em pequenos acenos. Quando lemos um texto bíblico que lhes faça alguma alusão, temos de descobrir, mediante estudos arqueológicos e exegéticos, como era a sua prática. Muitas vezes, pesquisamos na tradição judaica ou na cultura local os ritos que provavelmente a comunidade estaria praticando para celebrar determinado culto ou sacramento.
A formação da tradição ritual ocorre paulatinamente; em mutirão, procurando integrar novos elementos e com grande criatividade. Os grandes pastores e suas comunidades, inspirados na herança dos apóstolos, que construíram a primeiríssima tradição, tecem a rede dos rituais, que se assemelham na diversidade. É a grande arte ritual da unidade na diversidade.
Certamente, os primeiros tempos da comunidade assistem a rituais simples e muito sucintos: o pão e o vinho em taças e pratos de barro, em mesas improvisadas, em catacumbas e casas-igreja, expressões da simbólica domus ecclesiae. As roupas são muito simples e com poucas variações. O ritual se enriquece com o passar dos anos. O ambiente ganha novos contornos; a ambientação, elementos decorativos, assim como as alfaias e os vasos sagrados cada vez maior elaboração simbólica. O essencial é que, desde a origem, se trata sempre da atualização da “ceia do Senhor” pela comunidade. Os textos são elaborados e os ministérios delineados da mesma maneira que os rituais: ganhando contornos inculturados na vida comunitária.
Para compreender o fenômeno da compilação da tradição dos rituais, devemos considerar sua trajetória. A inspiração dos sacramentos é encontrada nas páginas bíblicas, com acenos nos ensinamentos do próprio Cristo e na vida celebrativa das comunidades iniciadas pelos seus seguidores e destinatárias de suas cartas e testemunhos.
As comunidades vivem a fé como opção fundamental de vida, ao mesmo tempo que pregam suas convicções e evangelizam. A vida interna da comunidade é cultivada por celebrações litúrgicas, que promovem uma forma de viver coerente com seus princípios. Por certo, nem sempre o magistério da Igreja, em razão de tantas circunstâncias históricas, foi efetivamente solícito em acolher novos elementos rituais na composição de sua tradição. Por causa de heresias, cismas e perda de identidade, houve em alguns períodos históricos, como nos últimos séculos, cristalização da tradição sacramental. Os novos tempos vieram com as chaves do Concílio Vaticano II, que abriu as portas da reforma litúrgica, voltando a acolher e integrar novos elementos da religiosidade popular e da linguagem contemporânea.
7. “Ecclesia semper reformanda”
O diálogo retorna à comunidade eclesial integrada no coração da história e revela seu papel de fecundação dos valores evangélicos na sociedade civil. Reaprendemos a dialogar com o mundo, como se dizia nos anos pós-conciliares.
As verdades fundamentais, definidas pelos concílios no que diz respeito às doutrinas de fé, às tradições sacramentais, aos valores ético-morais indeclináveis, permanecem como patrimônio da nossa tradição, que atravessa os séculos. A concretização desses bens se traduz em memórias vivas que interagem na vida cotidiana da comunidade cristã. Os parâmetros dessa evolução, que gera novas expressões da tradição, são de responsabilidade do magistério, cuja missão é unificar a tradição nas questões essenciais e proteger a unidade da Igreja.
Com o Concílio Vaticano II, nossas comunidades viveram algumas décadas de intensa criatividade, inculturação e renovação da vida litúrgica e sacramental. O documento da CNBB sobre a liturgia em nosso país[8] analisou esse itinerário das comunidades em nível nacional e percebeu sua enorme riqueza, apesar de constatar alguns desvios ou limites a ser corrigidos. O texto diz que, “entre nós, os vários grupos étnicos, como os índios, negros, orientais, apresentam muitos destes elementos (culturais) que já merecem ser inculturados em nossas celebrações, sobretudo nos sacramentos”. Sem perder a unidade do ritual romano,[9] foram integrados elementos culturais nas músicas, nos gestos e nos símbolos. Mesmo as alfaias e os vasos sagrados testemunharam os ares renovadores da reforma litúrgica. Têm sido décadas de grande enriquecimento, inserção e inculturação de nossas tradições.
Houve, por certo, muita resistência de vários setores da Igreja: de alguns por sua própria índole e rigidez estrutural; de outros — a maioria — por se tratar de algo inusitado, uma vez que os fiéis estavam habituados à rigidez e ao formalismo dos rituais e suas tradições. As correções e a compreensão da necessidade de integrar-se no mundo contemporâneo e não se ausentar de suas estradas fizeram que houvesse maior abertura para a renovação das tradições. A máxima que influenciou essas transformações foi “ou renovar ou morrer”. A mudança de hábitos em todos os níveis da vida é trabalho sempre exigente e, por vezes, doloroso. Muito maior solicitude do espírito é exigida quando se trata de práticas rituais milenares. Como nos diz o Documento 43: “a verdadeira criatividade é orgânica: está ligada aos ritos precedentes como o celebrante de hoje aos do passado. Uma fé que não cria cultura não foi suficientemente anunciada, não foi completamente assimilada ou não foi plenamente vivida. (…) Nada disso se encontra nas rubricas: é preciso criar”.[10]
Surgiram, nestes últimos tempos, muitas inovações, algumas das quais se fixaram, enquanto outras foram mais passageiras. As missas com rituais culturais são manifestação das tradições, no plural. São obras cuidadosas e dinâmicas do “magistério comum dos fiéis”. Elas enriqueceram o rito sem tocar no seu roteiro romano, mesmo porque isso não foi solicitado à Sagrada Congregação do Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, que orienta, diante da Santa Sé, as renovações e adaptações rituais.[11]Os rituais adaptados por grupos culturais étnico-geográficos envolveram seus protagonistas e elevaram seus valores e símbolos. São citadas, entre outras, as culturas afro, indígena, camponesa, crioula e nordestina. As celebrações sacramentais, sobretudo em espaços criativos, valorizam suas músicas, ritmos, símbolos e alfaias, sem desbancar os elementos essenciais do ritual romano, o qual garante a unidade universal. Erros ou abusos constatados foram assumidos e corrigidos pelas próprias comunidades e, mesmo assim, sem grandes momentos de tensão ou divisões.
Compreendemos como a tradição patrística tornou-se um paradigma e a base fundamental para a construção de tantas tradições que se desenvolveram e embelezaram os ritos ao longo da história. Os pastores da Igreja, sensíveis às necessidades das comunidades e notando suas experiências, estarão sempre atentos para que características simbólicas e linguísticas dos ritos que se mostrem ultrapassadas possam ser renovadas e, pela força do Espírito Santo, iluminadas a fim de dinamizar e vivificar nossas celebrações.
8. Tradição-matriz e tradições históricas
A tradição-matriz é o universo místico, ritual e doutrinal que alicerça todas as práticas rituais. Nossa fé inabalável e seus símbolos imutáveis estão presentes em todas as tradições históricas. Os limites da passagem da tradição, no singular, para as tradições, no plural, são iluminados pelos teólogos e definidos pelo nosso magistério. No documento sobre a missão do teólogo, o magistério[12] delineia essas fronteiras.
Todos os valores espirituais nascidos do coração de Cristo, elaborados em doutrinas, sistematizados em normas éticas e manifestados em rituais permanecem como caminho que atravessa as experiências e as práticas das tradições. As tradições históricas buscam inspiração e conteúdos na tradição-matriz, que concentra em si os dons essenciais do cristianismo. Todas as tradições dos grupos culturais, dos períodos históricos e das comunidades humanas devem espelhar-se na unidade dos cristãos. Essa unidade nasce do coração de Jesus Cristo, donde jorraram suas palavras, gestos e atitudes, que estão na gestação da grande tradição. Esta precisa se concretizar em tradições históricas, para que não se revele alienante, sem inserções na realidade. Das tradições plurais exigem-se coerência e harmonia, para não abalar a unidade que congrega todos os povos no mesmo e único rebanho de Jesus Cristo. Como no tempo dos Padres da Igreja, desde os primeiros séculos, essas tradições não são uniformes, mas plurais; não se revelam suportáveis, no entanto, contradições que se excluam tragicamente. As diversas tradições contemplam diferentes dimensões da tradição-matriz, e nem por isso elas se mostram excludentes ou totalizantes.
É preciso harmonia e pluralidade para que a comunidade dos fiéis seguidores de Jesus Cristo, em todos os tempos e lugares, seja una e universal. Entre todos, esse é o maior desafio e o grande diferencial da tradição e das tradições de nossa Igreja.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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