Ao falar de uma espiritualidade inscrita no quotidiano, o frei Carlos Maria Antunes, no livro “Só o pobre se faz pão”, diz que uma das nossas dificuldades é a dispersão. O nosso coração está disperso, dividido por muitas coisas. Somos objeto de múltiplos apelos e necessidades. Um rebuliço sem fim atravessa o nosso interior. E com ele também um cansaço e uma angústia que vamos tentando compensar de várias formas.
O cansaço e a angústia são um terreno fértil para a multiplicação das falsas necessidades e falsos desejos. A dispersão provoca mais dispersão.
Neste quadro, a nossa unidade e vigilância interior, que são fundamentais no nosso interior, tornam-se frágeis. Vamo-nos tornando mais vulneráveis, e acabamos, muitas vezes, num movimento de defesa, por endurecer o nosso coração, fazendo de conta que não vejo, que não ouço. Mas esta atitude também não nos dá a verdadeira unidade de coração.
Precisamos de aprender uma arte do acolhimento da nossa própria vida. Acolhermo-nos, acolher aquilo que somos, acolher o que nos chega como uma oportunidade, mas partindo de um centro, de um núcleo vital que em nós está desperto.
O padre Carlos cita o trecho de um poeta persa, Rumi, que diz o seguinte: «O ser humano é uma casa de hóspedes; cada manhã, um novo recém-chegado, uma alegria, uma tristeza, uma maldade, que vem como um visitante inesperado. Diz-lhes que são bem-vindos, e recebe-os a todos, ainda se são um coro de penúrias que esvaziam a tua casa violentamente. Trata cada hóspede com todas as honras; ele pode estar a criar-te um espaço para uma nova delícia. O pensamento obscuro, a vergonha, a malícia, recebe-os à porta sorrindo e convida-os a entrar. Agradece a quem quer que venha, porque cada um foi enviado como um guia do Além».
Esta arte do acolhimento da vida, de saber abraçar tudo a partir de uma unidade interior, pede de nós a pobreza espiritual, a pobreza de coração.
Quando da eleição do papa Jorge Mario Bergoglio – todos nós já tivemos a oportunidade de ouvir esta história -, o cardeal Claudio Hummes, arcebispo de S. Paulo, que estava ao lado dele, abraçou-o e disse-lhe: «Não te esqueças dos pobres». Estas palavras ficaram a fazer-lhe caminho no coração, e quando se tratou de escolher o nome, ele optou por Francisco, lembrando-se de Francisco de Assis e da sua espiritualidade universal.
Falando aos jornalistas nos primeiros dias, o papa deixou os papéis e teve um suspiro, a expressão de um desejo, e disse: Quem me dera que a Igreja se tornasse pobre e fosse uma Igreja para os pobres. Uma Igreja que se torna pobre e faz do acolhimento dos pobres a sua razão de ser, a sua missão.
A pobreza espiritual aparece-nos como um conselho evangélico, isto é, como modo de vida, como uma opção que cada cristão é chamado a fazer para se configurar a Cristo, para se tornar mais próximo de Cristo. Há mais dois conselhos evangélicos: a obediência, ou seja, a capacidade de escutar e permanecer fiel à palavra que se recebe; o outro é a pureza de coração, e aí a castidade é muito mais do que uma privação, tornando-se um modo positivo de estar na vida.
Cada um destes conselhos é vivido na Igreja por todos os batizados, embora de modos diferentes. Todos somos chamados à configuração com Cristo, que é pobre, puro de coração e obediente ao Pai.
Como é que podemos concretizar a opção por uma vida pobre, por uma pobreza espiritual? A vida espiritual não é uma técnica, não é uma habilidade, não é um conjunto de ritos. A vida espiritual é um modo de ser. E quando se fala de adotar uma atitude espiritual de pobreza no coração – S. Francisco chamava-lhe a Irmã Pobreza, ou Santa Pobreza -, temos, antes de tudo, de exercitar o nosso ser.
«Numa disciplina constante procuro a lei da liberdade medindo o equilíbrio dos meus passos. Mas as coisas têm máscaras e véus com que me enganam, e, quando eu um momento espantada me esqueço, a força perversa das coisas ata-me os braços e atira-me, prisioneira de ninguém mas só de laços, para o vazio horror das voltas do caminho» (Sophia de Mello Breyner).
Há um momento da nossa vida em que deixamos de saber de nós próprios. Parece que já não há um fundo de ser a marcar aquilo que somos e que nos estrutura, uma decisão fundamental, mas, pelo contrário, somos a dispersão.
A nossa vida não é só um conjunto de inevitabilidades: ela tem de ser uma opção fundamental, isto é, tem de ser algo que eu decido, que eu quero, um caminho que escolho, em diálogo com o Espírito. A minha vida tem de ter fundamento, para não ser uma deriva, um fragmento flutuante no oceano convulso. Precisamos de um centro.
E para ter um centro, precisamos de momentos de recentramento para ouvirmos a nossa voz interior, para nos escutarmos mais profundamente, para perguntarmos: «O que é que eu vivo? O que me enlaça? O que procuro? O que sou?». Estes momentos de recentramento são revitalizadores.
A Quaresma não são 40 dias para tentarmos fazer rituais mais ou menos arcaicos. A Quaresma é um tempo de revitalização, um tempo para nos colocarmos as perguntas-chave que vão favorecer o renascimento do que somos. E Deus sabe como cada um de nós precisa de renascer. Por isso este é o tempo de voltar a si.
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