Existe uma compreensão errônea sobre o significado de “país laico” quando muitas vezes se interpreta como um país ateu. O povo tem sua religião e os governos devem servir ao povo e não dominá-lo, nem mesmo com ideologias. O governo que governe para o ateísmo (como ocorre em muitos lugares), na verdade está fazendo um governo confessional, pois assumiu uma postura religiosa, mesmo que seja contrária. Hoje são muitas as divulgações que fazem e muitos pronunciamentos em que, mesmo grupos tidos como “esclarecidos”, que fazem coro a um “nominalismo excludente” e, com isso, exclui a maior parcela do nosso povo.
Interessante é que em grupos fanaticamente laicos é que se viu apelar para a Igreja resolver questões sociais, como vemos acontecer atualmente. Dias atrás, em nosso encontro – “diálogo com a cidade” – o renomado conferencista recordou que precisamos aprofundar as ideias, evitando as concepções “rasas”. É tempo de observarmos os caminhos de nossa cultura e sociedade hodierna e aprofundarmos no que isso significa.
Há tempos, em diversos países, incluindo o nosso, homens e mulheres que professam um credo religioso, especialmente o católico, sentem dificuldades para serem considerados cidadãos com plenos direitos de exercerem sua cidadania e mesmo de serem respeitados em seus direitos humanos. Já se cunhou o termo “anti-católico”, revelado principalmente na sociedade ocidental que, perdendo suas raízes, se vê como nau sem rumo.
Esse ódio, ora mais ora menos revelado, aparece muito contra a Igreja Católica quando ela se pronuncia, dentro de sua competência, sobre alguma questão ligada à vida política da Nação. Chega a tal ponto que seus críticos citam trechos do Evangelho que lhes convêm, a fim de justificarem que a hierarquia católica não pode – e nem deve – se envolver em assuntos temporais ou da vida social do país, pois o Estado é laico. Daí, gostam de repetir que o Senhor Jesus disse: “Meu reino não é deste mundo” (Jo 18,36) ou: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22,21), pretendendo criar, assim, uma forte oposição entre Igreja e Estado.
Reflitamos sobre essa matéria muito atual e, fundamentado em boas referências bibliográficas, demonstremos que tal modo de agir não é próprio de um Estado que se diz laico, respeitador do pluralismo religioso que o compõe, mas é, sim, forte característica do Estado laicista, logo, perseguidor da religião. Especialmente quando esta defende um só Deus que não só se revela aos homens, mas envia seu próprio Filho, Jesus Cristo, para viver a nossa realidade em tudo, menos no pecado, ensinando-nos que, longe de nos acovardarmos frente aos problemas deste mundo, somos chamados a ser sal e luz (cf. Mt 5,14) e fermento na massa (cf. Lc 13,21), expressões sabiamente retomadas por documentos do Concílio Vaticano II (1962-65) a fim de estimularem a presença da Igreja no mundo.
Importa, por delimitação do tema, de modo muito conciso, expor como se orienta a Igreja na vida pública, ou seja, quais suas principais posturas diante da totalidade das questões nacionais. Pois bem, são três os grandes tipos de temas com os quais ela se defronta, no seu dia a dia, para oferecer respostas adequadas de acordo com a sua natureza e missão.
O primeiro deles se refere a assuntos meramente temporais, de competência técnica do Estado: a construção de uma ponte, o asfaltamento de uma rua, a mudança do nome de uma praça etc. A Igreja não entra nesses temas diretamente. Embora o povo católico como cidadãos tenha direito de se manifestar e exigir seus direitos. O segundo contempla os assuntos estritamente religiosos: as reuniões dos bispos, as decisões a respeito dos horários de Missas, da transferência de padres etc. Aqui se dá o contrário do caso anterior, o Estado, separado da Igreja desde 1891, não deve se imiscuir nas decisões que competem apenas às autoridades eclesiásticas, e nem tampouco podem impedir as celebrações ou delimitar em quem ou como acreditar ou viver a fé.
Existem, todavia, os chamados assuntos mistos, ou seja, aqueles em que Igreja e Estado estão envolvidos e devem, cada um, conforme sua natureza e finalidade, colaborarem reciprocamente para o bem do ser humano, como se dá, em especial, nos campos da educação, da saúde, da caridade entre outros.
É aqui que entra a Igreja para se pronunciar sempre que estiverem em jogo pontos de fé e de moral. Sim, pois, se é lícito (e é) ao fiel católico filiar-se, votar ou apoiar partidos políticos, ou ainda defender diferentes sistemas de governos, nunca lhe é lícito, em quaisquer dessas posturas, ir contra a fé e a moral católica.
Daí escrever o Pe. Dr. J. Miguel I. Langlois, professor da Universidade Católica do Chile, que: “A Igreja afirmou sempre que a ordem social faz parte da ordem moral, em que se joga o destino último e sobrenatural do homem sobre a terra. Ela tem, pois, o direito e o dever de fazer ouvir a sua voz quando a sociedade se afasta da reta ordem natural. O Concílio Vaticano II declara que ‘é de justiça que a Igreja possa dar em qualquer momento e em toda parte o seu juízo moral, mesmo sobre matérias relativas à ordem política, quando assim o exijam os direitos fundamentais da pessoa ou a salvação das almas, utilizando todos e somente aqueles meios que sejam conformes ao Evangelho e ao bem de todos, segundo a diversidade de tempos e situações’ (Gaudium et Spes, n. 76)”.
O sacerdote-professor vai além: “Os juízos do Magistério eclesiástico sobre matérias políticas e sociais devem basear-se em verdades reveladas, isto é, devem referir-se ao fim sobrenatural do homem. Partindo desta condição, a Igreja tem pleno direito de intervir, mesmo fazendo uso da sua autoridade – dando critérios de ação uniformes aos católicos –, sempre que estejam em jogo os direitos de Deus ou da Igreja, bem como a salvação das almas. Deve rejeitar-se, portanto, o critério laicista de uma pretensa abstenção da Hierarquia em tais matérias, o que reduziria o seu âmbito ao puro e especificamente religioso, como se a religião pudesse separar-se geometricamente das demais dimensões que constituem o homem integral.” (Igreja e política. São Paulo: Quadrante, 1987, p. 31).
Aceitar e respeitar essa missão da Igreja é o que se esperaria do modernamente defendido Estado laico, pois de acordo com o Compêndio da Doutrina Social da Igreja, elaborado pelo Pontifício Conselho Justiça e Paz, em 2005: “O princípio da laicidade comporta o respeito de toda confissão religiosa por parte do Estado, que assegura o livre exercício das atividades cultuais, espirituais, culturais e caritativas das comunidades dos crentes. Numa sociedade pluralista, a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais e a nação” (n. 572).
Continua o mesmo documento a constatar que: “Infelizmente permanecem ainda, inclusive nas sociedades democráticas, expressões de laicismo intolerante, que hostilizam qualquer forma de relevância política e cultural da fé, procurando desqualificar o empenho social e político dos cristãos porque se reconhecem nas verdades ensinadas pela Igreja e obedecem ao dever moral de ser coerentes com a própria consciência; chega-se também, e mais radicalmente, a negar a própria ética natural. Esta negação, que prospecta uma condição de anarquia moral cuja consequência é a prepotência do mais forte sobre o mais fraco, não pode ser acolhida por nenhuma forma legítima de pluralismo, porque mina as próprias bases da convivência humana. À luz deste estado de coisas, a marginalização do Cristianismo não poderia ajudar ao projeto de uma sociedade futura e à concórdia entre os povos; seria, pelo contrário, uma ameaça para os próprios fundamentos espirituais e culturais da civilização” (idem).
Contudo, na concepção de muitos, hoje – e que foi condenada repetidas vezes pelo Magistério da Igreja desde o Papa Leão XIII até hoje – Estado laico é aquele que nega a existência de Deus e, consequentemente, mostra-se adverso aos que têm fé quando estes, como cidadãos, opinam em assuntos éticos. Esse estilo ditatorial de pensamento cai no absurdo laicismo constatado e denunciado pelo Padre David Francisquini ao repetir o brado dessa minoria acusadora dos cristãos, que nos diz em tom professoral: “Como você tem uma convicção religiosa, não pode impô-la a mim. Mas eu, que sou agnóstico ou ateu, posso impor a minha a você. Nós divergimos, mas quem tem razão sou eu, que tenho a mente livre e não atada por dogmas religiosos. Trata-se de um estranho Estado de Direito, dito democrático e pluralista, no qual somente os ateus e agnósticos têm o direito de falar e modelar as leis segundo seus princípios” (Catecismo contra o aborto. São Paulo: Artpress, 2009, p. 35).
Como se vê, nem de longe esse é o tão apregoado Estado laico, mas, ao contrário, é um Estado laicista manipulado por uma minoria fanaticamente ideologizada – portanto, escrava de seus falsos dogmas – que deseja impor a todos, por meios escusos, seu modo de ser, pensar e agir, deixando transparecer que não basta a eles cometerem atos maus, é necessário, indo muito além, levar a todos, ainda que por imposição, à prática do mesmo mal que defendem, tais como o assassinato de inocentes e indefesos no ventre materno, por meio do aborto; a aprovação da ideologia de gênero na educação a fim de que sejam corrompidas nossas crianças e adolescentes, doutrinando-os para pensarem que não há mais homem e mulher criados pela natureza, mas, sim, um andrógino ao qual, em determinado tempo, se tornará, socialmente, homem ou mulher; que o matrimônio monogâmico e estável – atestado desde povos primitivos (pigmeus da África central, aborígenes da América e da Oceania, esquimós, entre outros), segundo pesquisas de etnólogos austríacos da Associação Anthropos, registradas na obra de W. Schmidt intitulada Der Ursprung der Gottesidee, em 6 volumes – se equipara a quaisquer outros tipos de uniões instituídas por meras convenções e imposições sociais de grupos ideologizados e não pela lei natural, marca do Criador na criatura.
Ora, todos esses transtornos levantados contra os cidadãos católicos – sempre que agem a sós ou em organizações legalmente constituídas – se devem, como dito acima, à defesa do Estado laicista, que se julga um ente autônomo independe de Deus e do povo religioso que sustenta sua máquina burocrática, segundo constatou, em meados do século XX, Dom Angelo dell’Acqua, da Secretaria de Estado da Santa Sé, em carta ao cardeal D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, então Arcebispo de São Paulo, ao declarar que: “O dever de render a Deus o preito de homenagem e de gratidão pelos benefícios recebidos diz respeito não só aos indivíduos, mas também às famílias e às nações e ao Estado como tal. (…) Amortecido ou quase perdido na sociedade moderna o sentir da Igreja e vistas as consequências do agnosticismo religioso dos Estados, impõe-se a necessidade de arrepiar caminho, de modo que todas as nações, irmanadas aos pés do altar, reafirmem publicamente a sua crença em Deus e ergam o louvor devido ao Supremo Regedor dos povos. Para que surta todo o seu efeito, é necessário também que tal ato público de religião não seja puramente formal, mas seja cada vez mais sentido e vivo pela consciência do povo cristão” (O Estado de S. Paulo, 2 de junho de 1955, p. 10).
Resta, pois, a todos nós feitos filhos de Deus na Igreja, pelo Batismo, assumirmos, ordeiramente, o lugar a que temos direito na sociedade, sem nos considerarmos cidadãos de segunda ou terceira classe, como querem nos fazer crer os propugnadores do laicismo, só porque professamos, conscientemente, a nossa fé. Temos, ao contrário, direito moral garantido pelo Magistério da Igreja e também legal, albergado pela Constituição Federal, que, iniciada em nome de Deus, assegura, no seu artigo V, sermos todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. E mais: é livre a manifestação de pensamento, é inviolável a liberdade de consciência e de crença, por conseguinte, a garantia da proteção aos lugares de culto e suas liturgias, a não privação de direitos por motivos de crença religiosa ou de convicção, a liberdade de se reunir de modo livre e pacífico, de associar-se, de ter propriedade, de ser informados de seus direitos perante órgãos públicos, de votar etc.
Portanto, ante tudo isso que refletimos, serve de conclusão a advertência dos renomados advogados Dr. Ives Gandra da Silva Martins e Dr. Carlos Rodrigues do Amaral ao assegurarem que pretender calar os vários segmentos religiosos do país quando estes opinam sobre o aborto, células-tronco ou outros temas éticos relevantes, não só é um gesto inconstitucional, mas é também revelador de uma profunda intolerância que prejudica gravemente a convivência saudável e harmônica do nosso povo brasileiro (cf. Estado laico não é estado ateu e pagão, Folha de S. Paulo, 14/06/07, online).
Por Cardeal Orani João Tempesta – Arcebispo do Rio de Janeiro (RJ)
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