Em 1717, há mais de trezentos anos, uma singela imagem transformou a fé de um povo. Três pescadores jogaram as redes no rio Paraíba do Sul, após horas de trabalho sem nada conseguir, até que pescaram uma imagem de barro. Primeiro apareceu o corpo e depois a cabeça de Nossa Senhora da Conceição, mais tarde chamada de Aparecida.
Minutos depois de colocarem a imagem no barco puderam experimentar a intervenção sobrenatural por meio da intercessão da divina Mãe, enchendo suas redes de peixes, que mal conseguiam carregar. Décadas depois, a escultura negra feita de barro com 36 centímetros de altura se tornaria o maior símbolo da fé católica nacional e declarada Rainha e Padroeira do Brasil. Todos os anos, ela recebe aproximadamente 12 milhões de romeiros em sua casa, a segunda maior basílica e maior santuário mariano do mundo, na cidade de Aparecida (SP).
Em 31 de maio de 2021, data em que a Igreja celebrava a festa litúrgica da visitação de Maria a sua prima Isabel, o catolicismo brasileiro fez memória dos noventa anos da proclamação de Nossa Senhora Aparecida como Padroeira do Brasil. A data foi decretada pelo Papa Pio XI no ano anterior a pedido dos bispos brasileiros junto com o reitor do Santuário Nacional.
Dizia o decreto pontifício: “Por motu proprio e por conhecimento certo e madura reflexão nossa, na plenitude do nosso poder apostólico, pelo teor das presentes letras, constituímos e declaramos a Beatíssima Virgem Maria concebida sem mancha, sob o título de Aparecida, padroeira principal de todo o Brasil diante de Deus. Concedemos isso para promover o bem espiritual dos fiéis no Brasil e para aumentar cada vez mais a sua devoção à Imaculada Mãe de Deus”.
A cerimônia solene da proclamação aconteceu no dia 31 de maio de 1931, na cidade do Rio de Janeiro (RJ), que na época era a capital da República. A imagem original, que nunca havia saído do santuário, foi levada de Aparecida para a cidade fluminense em uma viagem de trem.
“A santa foi colocada em um vagão especialmente transformado em capela e ao longo do trajeto ela foi parando em várias localidades e as multidões iam acenando, louvando e agradecendo a visita de Nossa Senhora que por ali estava passando”, rememora o Padre Helder José, missionário redentorista e prefeito de igreja do Santuário Nacional de Aparecida.
De acordo com os jornais da época, cerca de 1 milhão de pessoas recepcionaram a pequena imagem que desfilou em uma procissão pelas ruas da Cidade Maravilhosa até chegar à esplanada do Castelo, na baía de Guanabara.
Neste ano de 2021, devido às restrições da pandemia, as homenagens foram mais simples, com menor número de pessoas e seguindo os protocolos de distanciamento social e uso de máscaras e álcool em gel. As celebrações aconteceram em Aparecida e no Rio de Janeiro.
O decreto papal foi, e continua sendo, muito significativo para todos os católicos, é o reconhecimento oficial de ter uma padroeira negra, que se identifica com o povo brasileiro. Padre Helder José pontua que Nossa Senhora Aparecida nos ajuda a olhar para as minorias necessitadas, a encontrar Jesus presente na gente empobrecida.
“Vivíamos um período após a abolição da escravatura e Nossa Senhora Aparecida, pela sua cor, pela maneira e por quem foi encontrada, simboliza essa libertação dos oprimidos e da escravidão. Em busca de melhores condições de vida; de respeito; em busca de vida com dignidade para todas as pessoas, de modo especial para os negros, de uma época muito sofrida no Brasil”, comenta o missionário redentorista.
A confiança na intercessão de Maria junto ao seu filho Jesus é algo que já faz parte da identidade do católico. Quem nunca confiou um pedido a Nossa Senhora Aparecida? Ou entregou aos seus cuidados uma graça inalcançável?
Assim o fez a auxiliar de seguros Salatiane da Silva Magalhães, 43 anos, de São Paulo (SP). Devota da Virgem Mãe Aparecida desde pequena, Tiane, como é conhecida, recorreu à intercessão da santa pela primeira vez aos 4 anos de idade, quando seu pai sofreu um grave acidente e ficou entre a vida e a morte. “Pedi à minha mãe para levar uma imagem de Nossa Senhora Aparecida (que era feita de plástico com areia dentro) até o meu pai na unidade de terapia intensiva. Ao colocá-la sobre as mãos dele a tampa da imagem soltou e toda a areia caiu sobre ele; no dia seguinte, meu pai começou a melhorar até ter alta do hospital”, graça que ela atribui à Virgem Mãe Aparecida.
No fim de 2019, ao fazer exames de rotina, ela foi surpreendida com a notícia de que estava com câncer de mama. “Quando a médica me informou que eu teria que fazer sessões de quimioterapia e que isso faria meus cabelos caírem chorei muito, fiquei desesperada, mas, em seguida, dobrei meus joelhos e pedi a intercessão de Nossa Senhora Aparecida para que me desse sabedoria para aceitar aquilo que eu não poderia mudar. Mais uma vez ela me escutou, acalmou e eu não voltei mais a chorar”, recorda.
Não foi um período fácil para Tiane, ela teve de ser forte e não demonstrar fraqueza diante de seus pais, que são idosos. Enfrentou, além da cirurgia, as sessões de quimioterapia e radioterapia; muito vaidosa, viu sua aparência se transformar rapidamente com a queda dos cabelos e o inchaço no corpo.
“Vencer essa doença tão terrível que afeta tantas pessoas e não escolhe classe social, que muitas vezes não tem cura, foi bem difícil. E vivi isso em plena pandemia, sem poder receber visitas nem sair de casa, espairecer. Todos os dias eu pedia forças para enfrentar a doença e clamava pelo milagre da cura para Nossa Senhora Aparecida. Ela mais uma vez intercedeu a Deus e atendeu à minha prece: após oito meses de muita luta e de tratamento fui curada do câncer de mama”, relata emocionada a devota.
Natural de Pirapora (MG), a pensionista Elza do Socorro Souza Farias, 73 anos, hoje moradora de Guarulhos (SP), aprendeu a amar Nossa Senhora Aparecida por meio do testemunho de fé de sua sogra, Maria José. Na adolescência, ela frequentava os cultos sabatinos da Igreja Adventista, junto com a sua mãe, Geralda. Na década de 1960, elas se mudaram para São Paulo e na nova cidade Elza conheceu seu esposo Orlando (in memoriam).
Ao frequentar a casa do noivo, Elza passou a acompanhar a crença da família católica: “Era costume deles rezar o Terço todos os dias, ler a Bíblia, cultuar a Mãe de Deus e eu e minha mãe os acompanhávamos. Por meio dessa fé popular nos tornamos devotas de Nossa Senhora Aparecida”. Ambas deixaram de seguir a fé protestante e se tornaram também católicas.
Foi com a filha mais velha, Valéria, que Elza sentiu a mediação da Imaculada Conceição. Aos 6 anos, a filha tinha muitas dificuldades cognitivas e apresentava muitas dores de cabeça. Ela foi diagnosticada com um problema numa veia no cérebro que a fazia tomar medicamento para evitar convulsões.
Sem muitas expectativas de melhora, a mãe, junto com a avó, começou a rezar para Nossa Senhora Aparecida pedindo que a criança fosse curada. “Nós a levamos ao Santuário Nacional, acendemos uma vela do tamanho da minha filha e rezamos com muita fé e acreditando no milagre”, descreve a mãe. Algumas semanas depois, Valéria começou a compreender melhor as lições ensinadas pela professora, não sentiu mais dores e nem precisou mais de remédios. “A cura foi tão completa que minha filha passou a ser uma das melhores da turma, sobretudo em matemática. Hoje ela é formada em duas faculdades de Exatas e nunca mais teve problema algum, graças à Virgem Maria”, concluiu.
Todos os anos, na solenidade de Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro, o rio Tietê recebe a imagem peregrina da Padroeira do Brasil. O momento faz parte do projeto “Tietê Esperança Aparecida”, que ocorre desde 2004, idealizado pelo Padre Palmiro Carlos Paes, da Arquidiocese de São Paulo.
Com uma tradicional procissão fluvial, a imagem é trazida da nascente do rio, em Salesópolis (SP), até a capital paulista. Em seguida, há a bênção aos devotos e ao rio Tietê na ponte do Piqueri, zona oeste de São Paulo, feita pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo metropolitano de São Paulo.
O projeto “Tietê Esperança Aparecida” foi criado com o objetivo de conscientizar a população e as autoridades públicas sobre a importância do trabalho de despoluição do rio aliado à manifestação pública da fé em Nossa Senhora.
“A ideia nasceu a partir da Campanha da Fraternidade de 2004, cujo tema era ‘Água, fonte de vida’. Foi o gesto concreto em resposta a esse apelo da Igreja, sensibilizando a todos sobre a importância ambiental do rio e a necessidade da despoluição”, recorda Padre Palmiro.
Em dezoito anos de existência do projeto, a imagem peregrina já alcançou muitos devotos. Pessoas vindas de diversos lugares da cidade para acompanhar a chegada da Mãe Aparecida na ponte do Piqueri, receber uma bênção e fazer suas preces e agradecimentos.
Em 2020, por razão da pandemia do novo coronavírus, não houve a procissão fluvial, mas uma carreata com a imagem em um carro aberto do Corpo de Bombeiros, escoltado pela Polícia Militar, vinda da Área Pastoral Santo Estêvão Mártir, na zona sul da cidade, local onde o presbítero atua. “Durante todo o trajeto as pessoas buzinavam, acenavam emocionadas saudando Nossa Senhora Aparecida”, conta Paes. Para 2021, a programação será a mesma do ano anterior, seguindo todos os protocolos de biossegurança.
O Documento de Aparecida fala que nas expressões populares da fé existe um lugar de encontro com Cristo e Maria, nesses momentos, faz os devotos encontrarem-se com seu filho. “A minha fé em Nossa Senhora Aparecida foi herdada da minha mãe. Sempre nos momentos de dificuldade eu a ouvia clamando à mãe de Deus, rezando diariamente o Terço. Depois, no meu ministério sacerdotal, em todos os momentos a Virgem Aparecida estava presente. Em todas as paróquias por onde passei há um altar dedicado a Nossa Senhora Aparecida”, finaliza Padre Palmiro.
O Papa Francisco já demonstrou por diversas vezes sua devoção à Padroeira do Brasil, desde o seu tempo como arcebispo de Buenos Aires, Argentina. Em sua última visita à Terra de Santa Cruz ele comentou sobre suas impressões dessa devoção brasileira: “A Igreja, quando busca Cristo, bate sempre à casa da Mãe e pede: ‘Mostrai-nos Jesus’. É de Maria que se aprende o verdadeiro discipulado. E, por isso, a Igreja sai em missão sempre na esteira de Maria.” (Homilia do Papa Francisco em Aparecida, em 24 de julho de 2013).
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