O Evangelho de hoje nos diz que os pagãos também foram destinatários da presença inspiradora e salvadora de Jesus: Ele saiu da região de Tiro, passou por Sidônia até o mar da Galiléia e atravessou os limites da Decápole. É uma das pouquíssimas vezes que vemos Jesus fora de seu país, na região dos pagãos, em meio às pessoas de outra religião.
Com efeito, vemos, em primeiro lugar, como Jesus não está entre os pagãos com uma atitude “apóstólica”, não o vemos preocupado em catequizá-los, nem fazer proselitismo religioso: não procura converter ninguém à sua religião, à fé israelita no Deus de Abraão. E tampouco faz discursos religiosos, nem o vemos proclamando uma doutrina, ensinando e divulgando as santas máximas de sua mensagem. Simplesmente “cura”. Em outras palavras: “faz o bem”, não fala sobre o bem; realiza atos, não ditos.
Não podemos dizer que Jesus passou pelo território pagão com indiferença, ou com os olhos fechados, pois ali também ele se encontrou com uma humanidade sofrida e excluída. Por isso, trouxeram-lhe um surdo-mudo e lhe pediram que lhe impusesse as mãos sobre ele.
O texto faz referência a um percurso corporal: de Jesus são nomeados as mãos, os dedos, a saliva, os olhos e a respiração; do surdo-mudo, os ouvidos e a língua. No começo do relato o surdo-mudo aparece fechado em seu silêncio e em sua solidão, levado diante de Jesus por outros e logo afastado deles pelo mesmo Jesus. Dir-se-ia que não só está atado e travado por seu problema de comunicação, mas também impedido para tomar iniciativas e decisões livres.
O contato com Jesus, em intensa proximidade corporal, e a força de seu imperativo “abre-te”, soltam-lhe todas suas ataduras e lhe permitem de novo pronunciar sua própria palavra. Como por um efeito contagioso, todos os presentes se põem a proclamar o ocorrido e escutamos seu rumor admirado, como um eco das palavras de Deus na criação: “Ele tem feito bem todas as coisas”.
“Abre-te”: esta é a única palavra que Jesus pronuncia em todo o relato. Expressão que desata as palavras emudecidas no interior daquele homem; expressão que desbloqueia a voz e os ouvidos, ou seja, restaura nele a capacidade da comunicação, de escutar e responder. Por isso, esse imperativo não está dirigido somente aos ouvidos do surdo mas ao seu coração.
Jesus, com sua presença terapêutica, destrava interioridades. Ele assumiu uma estratégia terapêutica de “inclusão”. Ao curar fisicamente uma pessoa, Jesus busca fazer emergir um ser humano mais sadio e inteiro, a partir de suas raízes, a partir de seu coração, centro e fonte das decisões. Jesus se compromete com a saúde radical e integral do ser humano, e devolve às pessoas a saúde de seu corpo, de suas emoções, projetos, relações e abertura ao outro.
Poderíamos dizer que Jesus ativa no surdo-mudo a dom de “empalavrar”, ou seja, “pôr em palavras” tudo o que estava oculto em seu interior. Sabemos que a palavra abarca todas as expressividades humanas; mas ela não se reduz à oralidade: a gestualidade, a linguagem corporal, a expressão dos sentimentos, as atitudes éticas… tudo isso também faz parte da palavra humana. As palavras são, ao mesmo tempo, pensamento, sentimento, ação… São humanizadoras, por excelência.
A cura do surdo-mudo nos convida a deixar que Jesus continue realizando com cada um de nós seu gesto criador, como fez Deus na primeira manhã da criação, modelando com suas mãos e insuflando seu alento, curando nossa surdez e gaguejamento.
A mesma palavra dirigida ao surdo-mudo “Abre-te”, pode ressoar hoje em nossos ouvidos e em nosso coração, convidando-nos a destravar dimensões importantes de nossa vida, para assim podermos continuar realizando pequenos gestos criadores e oferecendo sinais de vida, também entre aqueles que não compartilham nossa fé.
O quê precisa ser desbloqueado em nossa vida? Talvez alguma capacidade adormecida, ou algum recurso interior que permanece latente; talvez um novo sonho ou projeto, uma abertura para crescer em comunicação com os outros, uma “palavra” diferente que expresse o sentido de nossa existência…
O contexto pós-moderno no qual vivemos nos motiva a considerar a importância e o sentido da “palavra”, a prestar atenção ao seu dinamismo e à sua força expressiva e criativa. Sem dúvida, em nosso momento atual, a palavra cada vez tem menos relevância, cada vez é menos significativa. Banalizamos as palavras, adocicamo-las, manipulamo-las ou as submetemos a um violento esvaziamento de significados, segundo nossa conveniência.
Portanto, “cuidar a palavra é cuidar o mais específico do ser humano, enquanto que é através dela como se expressa nosso mistério” (Melloni, sj). É preciso novamente dar oportunidade às palavras, pois viver é a arte de saber lidar com as palavras.
Cada palavra tem seu impacto interior, algumas evocam e fazem presentes não só as ressonâncias imediatas, senão que nos conduzem às profundas e estremecedoras experiências. Temos a nobre tarefa de aproximar a palavra à experiência, para resgatá-la da insignificância, do anonimato, fazê-la inédita, consciente e poder assim confrontá-la com a Palavra que, feito carne, entrou em nossa experiência histórica.
“Mas você sabe que a pessoa pode encalhar numa palavra e perder anos de vida?” (Clarice Lispector).
De fato, na cena do evangelho de hoje, Jesus desencalha palavras e mobiliza o homem para ir desfrutando palavras novas, inspiradoras, que rompem a sua solidão e expandem a sua vida em direção aos outros e em direção ao grande Outro.
“Em algumas narrativas, certos vocábulos abrem grutas, cofres e corações. Sim, algumas palavras ajudam o barco a flutuar: “esperança”, “amanhã”, “utopia”. Pode-se também passar uma estação com algumas delas, como se pode passar uma temporada num determinado lugar, num certo corpo, num certo amor. Certas palavras são como hotéis: nelas fazemos pernoite, mas outras demandam moradia maior, são grutas ou catedrais que exigem contemplação” (Affonso Romano de Santana).
As palavras são feitas à nossa medida e adquirem vida quando as pronunciamos, convertendo-se assim em um prolongamento de nós mesmos, de nossos sentimentos e de nossos valores. As palavras são o reflexo de nosso viver e sentir, de nossas misérias e grandezas; são a “alma” de quem as pronuncia ou as escreve. Com elas não estamos sozinhos; com elas podemos transcender nossa pobre realidade.
As palavras se desgastam quando nos afastamos do contato originário com a realidade, quando nos distanciamos dos acontecimentos que nos alcançam, quando renunciamos a sentir e saborear as coisas internamente, quando não nos deixamos afetar pelos matizes quase infinitos da dor de nosso próximo. Por isso é importante progredir no caminho do silêncio, no qual nos educamos na escuta autêntica do nosso coração, que é a única capaz de fazer emergir palavras carregadas de vida e de sentido.
Pe. Adroaldo Palaoro sj,
Diretor do Centro de Espiritualidade Inaciana – CEI
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