Na peça dramática Le monde cassé (O mundo despedaçado), de Gabriel Marcel, Christiane exclama: “O mundo, o que chamamos de mundo, o mundo dos homens… devia ter outrora um coração. Mas, parece, esse coração deixou de bater”. Sim. O coração humano deixou de amar, insensível à fome e à miséria; ao desrespeito à vida humana; aos assassinatos nas grandes e pequenas cidades; à insensatez das guerras; à corrupção vergonhosa. Até mesmo, torna-se possível o suicídio da humanidade com a guerra nuclear. Porque desertaram do coração humano o amor, a fé e a esperança.
O progresso técnico-científico não foi acompanhado da civilização do amor, mas tornou possível a destruição da Terra, do ser humano. A técnica, por si mesma, não é capaz de oferecer sentido à vida nem de responder às mais profundas aspirações do coração. Urge sempre mais alimentar a civilização técnica com as virtudes teologais.
A fé — confiança no outro, não enxergado como competidor, mas como alguém de quem necessitamos para ser e crescer. A esperança, tecido da alma humana, que alimenta e revigora a vida e a faz caminhar. Virtude dos caminhantes deste mundo. O amor, que não se confunde com o egoísmo, mas é ser com os outros. É o nós da comunhão, sem a qual não há verdadeiro desenvolvimento individual e coletivo, mas só perspectiva de barbárie para a humanidade. Só o amor quebra a cadeia da violência, da exploração do outro, do egoísmo.
Por que insistir no amor? Não seria natural à criatura humana? Diante da pobreza extrema, dos sofrimentos físico e moral, seria normal voltar-se para os outros, para os mais necessitados, num gesto de amor, ajudando-os com o pão que nos sobra, com palavras de conforto ou de apoio. Mas assim não acontece. Os corações são de pedra.
Mas, “para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário revalorizar o amor na vida social, nos planos político, econômico, cultural, tornando-o norma constante do fazer e do agir” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja). Na verdade, o que enxergamos em torno de nós, na sociedade brasileira e no mundo, é o império do ter, da posse, sob qualquer de suas formas: a tirania do poder material e político ou do sexo desenfreado. Os cidadãos se tornam objeto das ambições políticas, voltadas para interesses pessoais, não da comunidade. As pessoas são reduzidas a objetos de consumo e de poder, de interesses mesquinhos.
A civilização do ter é a do atentado à vida, desde sua concepção até o ocaso: o aborto e a eutanásia. A vida da criança, do jovem, do adulto, do velho. Os sequestros, os roubos, os assassinatos, os estupros. A vida humana objeto de comércio. Dizia João Paulo II: “Não há reivindicação que justifique o comércio da vida humana. O caminho da violência é um beco sem saída”. Só há um caminho para reconstruir o tecido humano em frangalhos: a valorização das grandes dimensões da vida: a amizade e o amor, a oração e a contemplação, como falava Paulo VI em sua encíclica Populorum Progressio sobre o desenvolvimento dos povos.
A amizade e o amor conjugal. Amor que é virtude humana e graça divina. É ser com. Não enxergar no outro um ele, um objeto, mas um tu, com o qual dialogamos e do qual brota um apelo, a que devemos responder. O outro como presença que nos faz crescer. Não há sociedade verdadeiramente humana sem o nós da comunhão, do amor recíproco, da estima e da ajuda mútua. Sem a capacidade de sair de si mesmo e de ir ao encontro do outro, não seremos capazes de estimar o valor dos outros. E, por isso, não seremos capazes de ajudá-los e ampará-los.
Rezemos com as palavras do papa Francisco na encíclica Laudato Si: ‘‘Ó Deus, ensinai-nos a descobrir o valor das coisas, a contemplar com encanto, a reconhecer que estamos profundamente unidos com todas as criaturas no nosso caminho para vossa luz infinita. Obrigado porque estais conosco todos os dias. Sustentai-nos, por favor, na nossa luta pela justiça, pelo amor e pela paz”.
Por Cardeal Dom José Freire Falcão – Arcebispo emérito de Brasília
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