A misericórdia pode ser entendida como o “voltar-se” para a miséria do outro, suscitando atitudes e obras que, necessariamente, fazem a pessoa sair de si para ir ao encontro do caos no qual o outro vive. Sim, “caos”, porque é a desordem de uma situação ou de vida que coloca alguém na necessidade de uma ajuda, de uma intervenção: de alguém que se aproxime. Usar de misericórdia é praticar o amor ao próximo como se lê na parábola do Bom Samaritano. (Lc 10, 25-37).
Jesus conta a parábola no contexto do seu discurso sobre o amor ao próximo. O Mestre da Lei provoca-o com a pergunta: E quem é o meu próximo? (v. 29). Jesus narra a situação do homem ferido que é cuidado por um samaritano de passagem. Quando escutamos o relato, podemos imaginar que o próximo é aquele homem que caiu nas mãos de assaltantes e ficou ferido na beira do caminho, mas não é. Quando questionado sobre quem era o próximo do homem caído, o Mestre da Lei responde: “Aquele que usou de misericórdia.” (v. 37) – o samaritano.
A mensagem da parábola está além do ensinar um modelo para nos comportarmos e tratar dos outros. O texto revela como Cristo cuida de nós. É ele o Divino Samaritano da parábola, o qual está em viagem pelo mundo e vê os caídos no caminho. Ele é movido pelo seu coração que se volta para a miséria daquele homem ferido. São Beda, o “Venerável”, dirá que o homem caído representa Adão ferido pelo pecado, jogado para fora do Paraíso. O sacerdote e o levita que passam e não o socorrem representam a tradição e a Lei que não conseguem fazer nada por Adão. O samaritano viu o caído e se aproximou. É o olhar de Deus que vê o sofrimento de seu povo e desce para libertá-lo. Ele cuida da humanidade chagada. Pelas feridas se perde o sangue, se perde a vida. Sua proximidade e seu toque cicatrizam as feridas mortais do ser humano.
Ele conduz o caído à hospedaria. A hospedaria é a imagem da Igreja, lugar onde os irmãos se recolhem em Cristo, o escutam e aprendem a chamar Deus de Pai. Nessa Casa qualquer um recebe hospitalidade, pois a estadia foi paga antecipadamente na cruz pelo Divino Bom Samaritano. Ele dá uma missão para a hospedaria: Cuidem dos feridos no caminho! Essa é a missão da Igreja que continua a missão do Samaritano. É a ordem de Jesus. O que for gasto a mais será pago no seu retorno. O amor deve ser investido para render.
Como naquele tempo, também hoje, longe do amor de Deus, o ser humano cai entre aqueles que lhe roubam a roupa e o deixam quase morto. Depois, fica sozinho, isolado, caído na sarjeta da vida. Uns caem porque querem, outros são derrubados e há os esquecidos e excluídos. A falta de amor a Deus e ao outro leva a uma situação de quase morte, à miséria.
O mandamento do amor é traduzido aqui como misericórdia. É ela que define a verdade do ser humano na sua relação com Deus, com os outros e consigo mesmo. Na parábola do Bom Samaritano, o especialista em leis pergunta a Jesus o que fazer para herdar a vida eterna. (v. 25). Herdar não é conquistar; herança é o que o filho recebe do pai. O especialista entende o que é preciso para ter essa herança, mas não pratica. Sabe, mas não escuta. O amor ao próximo deve ser um caminho para amar a Deus plenamente. A vida está ligada ao fazer o que Jesus disse e, antes de tudo, o que praticou. Cumprir a sua Palavra é herdar a vida de Deus que é amor.
Como na Parábola do Bom Samaritano, é preciso dirigir um novo olhar sobre a realidade dos outros. Jesus pede que o Mestre da Lei esteja próximo do outro, que vá além de todo limite como faz o Pai misericordioso. Jesus conclui a parábola dizendo: “Vai e faz a mesma coisa.” (v. 37). Isto é, como Cristo cuida de nós, também nós devemos cuidar dos outros, porque só assim seremos misericordiosos como o Pai.
Por Dom Leomar Brustolin – Bispo auxiliar de Porto Alegre (RS)
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