30 de julho é o Dia de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. A data foi instituída em 2013, durante uma assembleia-geral das Nações Unidas que destacou a necessidade de despertar maior consciência da situação das vítimas do tráfico de seres humanos e promover e proteger seus direitos.
Terceiro negócio ilícito mais rentável do mundo, ficando atrás somente dos tráficos de armas e de drogas, o crime acontece em todos os países, com crianças, jovens, adultos e idosos de todas as classes sociais, porém, os países mais pobres, bem como as populações mais marginalizadas, são os mais atingidos e crianças, adolescentes e mulheres são as principais vítimas.
Além da questão do comércio, escravização e exploração das vítimas, o tráfico é marcado por violência e exploração sexual, com violação de direitos humanos e privação de liberdade.
Em 29 de julho de 2021, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) lançou o Relatório nacional sobre o tráfico de pessoas. A pesquisa, elaborada pelo Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime, abrange informações do período entre 2017 e 2020.
Um dado relevante sobre esse tipo de crime no Brasil é que 37% das vítimas atendidas pelos postos e núcleos em 2020 alegaram ter algum tipo de confiança nos aliciadores. Isso significa que os criminosos estão dentro das comunidades ou que procuram obter a confiança das vítimas antes de recrutá-las.
Na maior parte dos casos, as pessoas são traficadas após aceitarem oportunidades de emprego em outra cidade ou país, vagas essas inexistentes. Então, uma série de crimes acontece, como restrição dos documentos da vítima, ameaças e violência.
O relatório aponta ainda que perto de 72% das pessoas traficadas no período eram negras, enquanto pouco mais de 25% eram brancas. Do grupo atendido exclusivamente no sistema de saúde, 58,5% eram negras e 31,7%, brancas. Dessas possíveis vítimas, 37,2% correspondem a crianças e adolescentes.
No Brasil, a Comissão Episcopal Pastoral de Enfrentamento ao Tráfico Humano da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) realiza eventos e atua, diretamente, na prevenção e denúncia de casos de tráfico de pessoas.
Dom Evaristo Spengler, bispo da prelazia de Marajó (PA) e presidente da Comissão Especial Episcopal Pastoral para ao Tráfico Humano, expôs recentemente, no último seminário que aconteceu, em maio de 2022, em Belém (PA), que o enfrentamento ao tráfico deve ser assumido como uma ação permanente da Igreja.
Na mesma ocasião, Irmã Henriqueta, religiosa que é referência no combate à exploração e à violência sexual de crianças e adolescentes no Estado do Pará e coordenadora da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, salientou que o trabalho visa a estimular ações em todas as dioceses e prelazias brasileiras. “Estamos sonhando que se possa investir na prevenção do tráfico de pessoas para que as pessoas se aproximem dessa temática, pois muitos acham que tráfico de pessoas só acontece em filmes e novelas, por isso é importante falar sobre o assunto, para que a gente possa esperançar no sentido do compromisso e da multiplicação”, disse a religiosa.
Em 2014, o Papa Francisco escreveu uma carta aos brasileiros, por ocasião da Campanha da Fraternidade, cujo tema foi “Fraternidade e tráfico humano”. Em sua mensagem, ele salientou que “Não é possível ficar impassível, sabendo que existem seres humanos tratados como mercadoria! Pense-se em adoções de criança para remoção de órgãos, em mulheres enganadas e obrigadas a prostituir-se, em trabalhadores explorados, sem direitos nem voz etc. Isso é tráfico humano! De fato, quantas vezes toleramos que um ser humano seja considerado como um objeto, exposto para vender um produto ou para satisfazer desejos imorais? A pessoa humana não se deveria vender e comprar como uma mercadoria. Quem a usa e explora, mesmo indiretamente, torna-se cúmplice desta prepotência”.
A história de Soraia (nome fictício), 39, corretora imobiliária, mostra como aliciadores recrutam as vítimas e as mantêm reféns e a importância de órgãos e instituições que atuam no resgate das pessoas traficadas e em sua reinserção na sociedade.
“Minha história não é ficção. Minha história é marcada por sofrimento, violência e meu corpo é retalhado, feito de cicatrizes. Mas a maior cicatriz que eu tenho é a dor da impunidade, do preconceito, do linchamento moral, de não conseguir ser incluída na sociedade”, disse Soraia à reportagem.
Resgatada da situação de tráfico em 2012, mãe e trabalhadora, Soraia tenta reinserir-se na sociedade e ter uma vida normal, sofre com depressão e preconceito. “Sofro com depressão há quinze anos, tenho estresse pós-traumático, entre outras enfermidades psíquicas e emocionais. Oscilo bastante todos os dias, às vezes é um sacrifício levantar da cama e sorrir para as pessoas, mas tenho três focos na vida: em primeiro lugar Deus, ou seja, minha fé; em segundo lugar, meu próprio foco; em terceiro, meu filho. Meu filho é minha maior motivação para continuar viva”.
Quando foi aliciada, Soraia era muito jovem, morava em Ribeirão Preto (SP) e estava no primeiro ano da faculdade de Relações Internacionais. “Fui abordada na porta da faculdade para participar de festas em chácaras. Eram festas com homens muito ricos e se tratava de uma realidade que não conhecia. Sou filha de cortadores de cana e minha infância foi muito pobre, mas meus pais sempre me trataram com muito amor e zelo e sempre estudei muito”, disse.
A jovem conta que chamava muita atenção por sua beleza e simpatia. “Na época eu era promotora de vendas e não sabia que, na história de Ribeirão Preto, muitos anos atrás, as mulheres que vinham da mesma realidade que eu pagavam a faculdade se prostituindo. Eu não, eu me matava trabalhando para ajudar minha família e pagar minha faculdade”.
A partir de então, a vida de Soraia mudaria completamente: “Fui a uma casa de massagem que era muito mal falada na cidade com uma amiga. Eu nem sabia do que se tratava e todos começaram a falar mal de mim. Foi quando uma vizinha da minha mãe me chamou para trabalhar em São Paulo (SP) falando que eu iria para a Vila Formosa. Só depois descobri que era, na verdade, uma casa de prostituição em Guarulhos (SP). A partir de então, eu não podia mais voltar para a minha cidade, pois todos falavam mal. Eles tinham fotos e imagens minhas e eu tinha muita vergonha”.
De São Paulo, Soraia foi para outros países. “Eu me prostitui de muitos modos. Por um tempo, aceitei viver com um estrangeiro que me mantinha como escrava sexual. Ele não me apresentava para ninguém, não saía comigo em público e me mantinha trancada, mas, eu aceitava, pois não sabia como sair daquela situação. Porém, depois de algum tempo, ele me trocou por outra”, conta.
Mais uma vez, Soraia foi enganada com uma proposta de trabalho. Tiraram dela o passaporte e ela foi obrigada a viver por meses num cruzeiro como prostituta: “Nessa época, comecei a usar drogas, porque eram um estimulante para mim. Eu trabalhava dezessete horas por dia, atendendo homens do cruzeiro. Eu não dormia, não comia, não conseguia nem sentar”.
Soraia prosseguiu: “Quem me ajudou a sair do Caribe foi a Polícia Federal, em 2012. Desde então, comecei a fazer vários cursos, entre eles um simpósio sobre tráfico de pessoas, no Memorial da América Latina, em São Paulo, e então me identifiquei com tudo o que estava sendo falado ali. Percebi o que tinha acontecido comigo. Comecei a procurar e a conhecer pessoas que podiam me ajudar. Hoje eu me vejo sobrevivendo. Eu, meu filho e meus pets. Não tenho rede de apoio, sou tratada com desconfiança. Fui casada, um relacionamento abusivo, fui espancada várias vezes. Hoje não consigo me relacionar com ninguém, se eu ficar sozinha num quarto com um homem tremo de medo, entro em pânico. Em geral, nos meus relacionamentos, as pessoas me adoram até saber da minha história. Quando sabem dela me ignoram, como se eu fosse um ser humano de segunda categoria. É muito difícil para mim”.
Para ela, a principal dificuldade foi e continua sendo a reinserção na vida da família, na sociedade e no mundo do trabalho: “Mas, tenho vivido um momento bom no trabalho. Meus colegas me admiram, porque acham que sou uma mulher muito forte. Lá eu coloco uma fantasia, um sorriso no rosto e ninguém sabe pelo que passei. Sou uma profissional muito disciplinada, ética e me destaco em tudo o que faço. Sou coerente e faço tudo com excelência. Faço isso porque sei que as pessoas esperam o pior de mim. Então, não posso falhar”.
Soraia é muito grata ao Projeto Resgate e à Igreja Católica, que a ajudaram a sair da situação de tráfico e prostituição: “Graças a essas pessoas que me ajudaram concretamente estou aqui para contar o que vivi e virei protagonista da minha história. Meu sonho é ter uma família. Ter mais um filho e uma empresa. Quero ter uma vida tranquila em família. Esse é o meu sonho”.
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