Ainda hoje, a médica Aline Rosa, de 44 anos, não se esquece do dia em que ela e o marido, o músico Augusto Cezar Cornelius, de 53, foram até um colégio para matricular o filho, João. Ao chegarem lá, os dois falaram do diagnóstico de transtorno do espectro autista (TEA). Na mesma hora, a coordenadora da instituição pegou a ficha de matrícula do garoto e rabiscou um enorme “X” sobre o nome dele. “Precisamos muito de matrículas, mas não aceitaremos o João”, decretou a gestora. “Fiquei paralisada e desabei ali mesmo”, recorda Aline. “Hoje, sei que deveria ter levado o caso ao Ministério Público, mas, na época, sofri bastante. Sofri, mas levantei a cabeça e fui procurar outra escola”, acrescenta.
O caso de Aline não é isolado. A recepcionista Adriane Amaro, de 47, também já sofreu preconceito e discriminação. Como na ocasião em que pegou um ônibus para levar o filho, Raphael, até o colégio e ouviu uma passageira resmungar “Lá vem o bicho de novo!”. A mãe respirou fundo e explicou para a tal mulher que o filho dela não era bicho – era uma criança autista com deficiência auditiva. “Sofremos preconceito e discriminação quase todos os dias”, lamenta Adriane. “Quando a diretora nega vaga para nosso filho e precisamos recorrer à justiça, quando o Raphael vai à escola e não tem aula porque o mediador faltou, quando o motorista de aplicativo pede para você sair do carro porque seu filho está fazendo muito barulho…” lista ela.
João e Raphael, hoje com 8 e 11 anos, são crianças com transtorno do espectro autista. Há no Brasil, segundo estimativas, cerca de 2 milhões de pessoas com o transtorno. Não há estatísticas oficiais. A Organização Mundial da Saúde (OMS) fala em uma criança com transtorno do espectro autista em cada cem. Já o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) calcula uma em cada 36 na casa dos 8 anos. A proporção é de quatro meninos para uma menina. Por que algumas crianças nascem com transtorno do espectro autista e saúde outras, não? Não há uma única causa. Por essa razão, o distúrbio é considerado multifatorial. A causa pode ser tanto genética quanto ambiental.
Para uma pessoa ser diagnosticada dentro do espectro autista, ela precisa apresentar dois traços característicos. O primeiro é a dificuldade persistente na comunicação e na interação social em diferentes contextos, como casa, escola e sociedade, em outras palavras: a criança (ou adolescente) não consegue puxar conversa, fazer amigos ou entender piadas. O segundo traço é apresentar padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesse ou atividades que prejudicam seu convívio familiar, escolar ou social. Exemplos: rigidez de comportamento (só comem determinados alimentos ou sentam nos mesmos lugares), interesses restritos (são obcecados por baleias ou dinossauros, entre outros assuntos) e hipersensibilidade sensorial (umas não gostam de pisar areia ou manusear massa de modelar; outras não suportam fogos de artifício ou têm aversão a abraços).
“Os sintomas variam muito”, afirma o neurologista pediátrico Carlos Takeuchi, assessor científico do Instituto Pesquisa e Ensino em Saúde Infantil (PENSI). “Uma das situações que mais leva as famílias ao consultório é o atraso na fala. No entanto, os pais quase nunca reparam que a criança não olha nos olhos, tem comportamento repetitivo e não pede as coisas”, explica ele. João tinha 3 anos e 8 meses quando os médicos chegaram ao diagnóstico de transtorno do espectro autista. Meses antes, porém, seus pais o levaram a uma neurologista que, depois de examinar o garoto, declarou: “Não excluo autismo”. Nessa hora, Aline sentiu como se tivesse caído em um buraco sem fundo e, pior, não tivesse onde se agarrar. “Ia à Missa e chorava sem parar”, lembra.
A reação de Adriane não foi diferente. Certo dia, ela e o marido, o professor Alexandre Sampaio, de 57 anos, receberam um telefonema da escola onde Raphael estudava. Era a diretora agendando uma reunião. “Como é o Raphael em casa?”, ela perguntou. “Ainda não fala, mas é muito bonzinho”, responderam os pais. “Na escola, ele não interage com as outras crianças e só gosta de ver a Galinha Pintadinha. Acho que tem algo errado”. No consultório, o neurologista confirmou a suspeita da diretora: transtorno do espectro autista. “Levamos um susto e choramos muito. Nós nos agarramos a Deus para ajudar nosso filho”, recorda Adriane, que tem um cunhado padre, o Monsenhor André Sampaio, pároco da Our Lady of Mercy (OLM), voltada para a comunidade de língua inglesa, no Rio de Janeiro (RJ).
Muitas vezes, os primeiros sintomas começam a se manifestar quando a criança ainda é bebê. Em geral, elas quase não sorriem, têm repulsa ao toque, não gostam de ir ao colo e raramente emitem sons. “Em caso de suspeita, os pais devem procurar um médico (pediatra, neuropediatra e psiquiatra da infância ou adolescência) para a realização do diagnóstico”, orienta o psiquiatra Fábio Sato, coordenador médico do Programa de Transtorno do Espectro Autista (PROTEA), do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). O diagnóstico é composto por duas etapas: o exame clínico, quando o profissional de saúde especializado realiza a famosa “anamnese”, ou seja, ouve a história do paciente relatada por seus pais, e o físico, quando ele observa atentamente o paciente. Exames de laboratório, como o de sangue, ou de imagem, como a tomografia, não detectam o transtorno, nem confirmam o diagnóstico.
Há três graus de transtorno do espectro autista: 1, 2 e 3, dependendo da intensidade dos sintomas e da necessidade de suporte. Segundo a mais recente edição do Manual diagnóstico e estatístico de distúrbios mentais da Associação Americana de Psiquiatria (DSM-5), publicado em 2013, a criança de nível 1 precisa de suporte, a de nível 2 precisa de suporte substancial e a de nível 3 precisa de suporte muito substancial. Embora pertença ao espectro, a pessoa de nível 1 leva uma vida praticamente autônoma e independente; já a de nível 3 necessita de supervisão 24 horas por dia.
Como o próprio nome já diz, o transtorno do espectro autista não é uma doença, é um transtorno. Como tal, não tem cura, remédio ou tratamento. O que há, explicam os médicos, é uma intervenção multidisciplinar, composta por psicólogos, psicopedagogos, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e profissionais de educação física, que ameniza os sintomas e melhora a qualidade de vida. Nem toda criança com o distúrbio precisa ser matriculada em escola especial. O ideal é que crianças de níveis 1 e 2 sejam matriculadas em escolas regulares. Nesse caso, terão que ser acompanhadas por mediadores ou acompanhantes terapêuticos. O tratamento, quando há, visa a combater comorbidades. Cerca de 70% das pessoas com transtorno do espectro autista apresentam distúrbios associados, como transtorno de ansiedade generalizada (TAG), transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), entre outros.
Para reabilitar a criança com transtorno do espectro autista, isto é, desenvolver suas habilidades sociais e de comunicação, os médicos indicam uma terapia chamada análise do comportamento aplicada, mais conhecida pela sigla ABA, do inglês applied behavior analysis. “Não há cura para o autismo”, afirma o neurologista Carlos Takeuchi, “o que acontece é que, em alguns casos, a evolução é tão grande que temos a impressão de que o transtorno sumiu”. O psiquiatra Fábio Sato concorda: “Não há cura, mas há evolução. A pessoa com transtorno do espectro autista não ‘sai’ do espectro, mas, com o diagnóstico precoce e a intervenção adequada, pode passar do nível 3 para o 2 e assim por diante”.
A cientista americana Temple Grandin, de 76 anos, é muito provavelmente a pessoa com transtorno do espectro autista mais famosa do mundo. PhD (doutorado nos países de língua inglesa) em zootecnia, ela leciona na Universidade do Colorado, nos Estados Unidos. Entre uma aula e outra, Grandin dá palestras sobre bem-estar animal, visita fazendas pelo mundo afora (já esteve no Brasil algumas vezes) e escreve livros – o mais recente deles é O cérebro autista (2017). “O autismo é parte do que eu sou, mas não deixo que ele me defina”, afirma a professora, que em 2010 teve sua vida adaptada para o cinema.
“Não romantizo o autismo. Em geral, as pessoas pensam que todo autista é inteligentíssimo. Nem sempre. O déficit intelectual é mais comum que a alta habilidade”, explica Aline, que compara a aventura de ser mãe de uma criança com transtorno do espectro autista a uma “montanha-russa de emoções”. Numa hora está tudo bem; no minuto seguinte, tudo vira um caos. Pouco depois, parece que nada aconteceu. “O João é uma criança alegre, muito ligado à família, que adora música e tem uma memória acima da média. Ter um filho autista é uma escola diária. Você jamais terá uma oportunidade igual de se tornar uma pessoa melhor. Não queria que ele fosse diferente”, emociona-se. Para Adriane, Raphael é um anjo enviado por Deus. “Lutamos todos os dias para dar o melhor para ele e comemoramos toda e qualquer conquista. A maior delas? Ele ter se desfraldado aos 8 anos. Hoje, ele abraça e dá até beijo”, orgulha-se.
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