A vocação básica
Geralmente, falando de vocação, muita gente pensa logo em vocação para padre, freira, diácono, ministro ou ministra, pensa na vocação à santidade ou na vocação que como cristãos recebemos no batismo. Tudo isso é correto, mas não é tudo. É apenas uma parte, e uma parte muito pequena, é olhar apenas um único tijolo e achar que já viu e conhece a casa inteira que tem muitas paredes, quartos e andares.
Existe uma vocação básica que abrange e fundamenta todas as outras vocações. Eu sou Carlos. Você é Maria, João, Raquel, Alberto. A vocação básica de cada um de nós é a gente procurar ser aquilo que a gente já é: ser Carlos, ser Maria, ser João, ser Raquel, ser Alberto. Todos nós somos Seres Humanos. Foi assim que Deus nos criou e nos quis. Graças a Deus!
A vocação básica de todos nós é: a gente ser HUMANO, ser gente. É humanizar nossa vida. É contribuir para que a vida da gente seja de fato vida de gente; para que a vida da nossa sociedade seja mais humana. Jesus disse: “Eu vim para que todos tenham vida, e vida em abundância (Jo 101,10). Quando falamos em vocação cristã, vocação religiosa ou vocação carmelita, não podemos esquecer esta vocação básica. Não se constrói um prédio começando com o terceiro andar. Não dá certo. Tem que começar da base.
Ser chamado pelo nome
Vocação é o mesmo que ser chamado pelo nome. Ora, ser chamado pelo nome é a coisa mais frequente e mais comum que acontece com cada um de nós: “João” “Raquel” “Carlos” Quando alguém chama, você para, olha e pergunta: “O que há?”
Às vezes, somos chamados por alguém, mas não escutamos. Muito barulho ao redor ou dentro de nós. Pode ser também que o chamado foi muito fraco ou vinha de uma pessoa muda que chamava com um gesto que você não entendeu. Condição para poder escutar o chamado é saber fazer silêncio. Sem silêncio não escuta nada. Hoje, o que mais nos falta é silêncio.
Alguém chama você porque está precisando de uma ajuda. Você dá a sua resposta, se compromete e vai agindo. No fundo, tudo que a gente faz na vida de cada dia é resposta a um chamado, a uma vocação: “Recebi uma chamada pelo telefone e fui!” Há chamados pequenos e chamados grandes: Chamado de criança que chora, de mendigo que pede, de amigo que convida. Às vezes acontece que alguém chama, e você responde: “Sinto muito, mas agora não posso”. É que um outro chamado o impede de responder positivamente a este novo chamado.
São muitas as palavras que usamos para expressar aquilo que escutamos dentro de nós como vocação e à qual procuramos dar uma resposta ao longo dos anos da nossa vida. São palavras comuns que indicam coisas muito comuns, muito humanas: Chamado, Pedido, Recado, Telefonema, Apelo, Convite, Vocação, Convocação, Grito, Lembrete, etc.
Como a vocação se manifesta na vida
Um chamado ou uma vocação pode vir de dentro da gente “eu me sinto chamado par isto ou para aquilo”. Também pode vir de fora. Alguém bate na porta e diz: “Maria, será que você pode vir ajudar a gente?” Geralmente, a vocação é algo que vem ao mesmo tempo, de dentro e de fora da gente. É como uma semente que está dentro da terra. Mas se não houver chuva e sol que vem de fora, a semente que está dentro da gente não cresce e não se desenvolve.
Tem semente de alface e semente de jacarandá. Semente de alface, tendo sol e chuva, cresce rápida. Semente de jacarandá cresce bem mais devagar a semente da vocação dentro da gente é de jacarandá: cresce devagar, durante tantos anos quantos anos dura nossa vida.
Vocação é como gente. Ninguém nasce sozinho, mas nasce de pai e mãe, no meio de uma família. Não cresce sozinho, mas com a ajuda de outras pessoas. Dizia o cearense filósofo lá do sertão que nunca estudou: “Eu não sou pessoa não, sou pedaço de pessoa. Pessoa é a comunidade, e quanto mais eu participo na comunidade, mais pessoa eu fico”. É assim que cresce a vocação dentro da gente: convivendo.
Vocação pode nascer de muitas maneiras. Por exemplo, quando, diante de uma injustiça, você percebe que tem a possibilidade de fazer algo para mudar a situação, então… dentro de você, nasce um sentimento de responsabilidade que a faz dizer: “Não posso ficar parada! Devo fazer alguma coisa!” Pois bem, esta consciência forte que você eu ou a comunidade às vezes sentimos de que podemos e devemos fazer algo para mudar o rumo dos acontecimentos ao nosso redor, é uma vocação. Vem de Deus através da consciência. Assim existem muitas vocações, muitos chamados.
Tem gente que vive procurando durante anos para saber “O que será que Deus quer de mim”. Quando depois de muitos anos de busca e de reza, finalmente, encontra a resposta que procurava a pessoa diz: “Até que enfim encontrei o que eu queria. Acho que nasci para isso” Naquele momento, tudo se encaixa e a pessoa se sente no lugar onde Deus a queria desde o momento em que nasceu.
No tempo do profeta Jeremias, as pessoas diziam a mesma coisa, mas com outras palavras. Jeremias sentia Deus dizendo a ele assim: “Jeremias, antes de formar você no ventre de sua mão, eu o conheci, antes que fosse dado à luz, eu o consagrei, para fazer de você o profeta das nações” (Jr 1,5). Hoje dizemos: “Acho que estou no lugar onde Deus me quer. Nasci para isso!”
Como a vocação aparece na Bíblia
A Bíblia é uma luz importante para nos ajudar a descobrir a vocação de Deus que está em nós. Ela nos faz saber a raiz da nossa vocação e nos orienta como acolhe-la e realiza-la.
A raiz da nossa vocação está em Deus
Diz o livro do Êxodo (Ex 2,23-25):
“Muito tempo depois, o rei do Egito morreu. Os filhos de Israel gemiam sob o peso da escravidão, e clamaram; e do fundo da escravidão, o seu clamor chegou até Deus. Deus ouviu as queixas deles e lembrou-se da aliança que fizera com Abraão, Isaac e Jacó. Deus viu a condição dos filhos de Israel e a levou em consideração”.
Mais adiante diz novamente (Ex 3,7-10):
“Javé disse a Moisés: “Eu vi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos egípcios e para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel, o território dos cananeus. O clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e eu estou vendo a opressão com que os egípcios os atormentam. Por isso, vá. Eu envio você ao Faraó para tirar do Egito o meu povo, os filhos de Israel”.
Esses textos e tantos outros mostram que a raiz da nossa vocação está em Deus. Antes de nós, Deus teve vocação, pois Deus foi chamado pelo povo sofrido. A vocação de Deus é o grito do povo oprimido” E Deus deixou que este chamado entrasse dentro dele. Ele escutou, e deu uma resposta coerente.
Para ser fiel à sua vocação, Deus chamou Moisés e chama a cada um de nós. Chamou a mim. Chama a você também” Nossa vocação tem a sua origem em Deus, na vontade que Ele tem de comprometer-se com a vocação que está recebendo do povo para libertá-lo.
Os sete passos da resposta de Deus à sua vocação
Vejamos como Deus foi chamado e como Ele respondeu à sua vocação. Isto nos ajudará para saber como responder à nossa vocação. A Bíblia anota sete passos bem precisos da maneira como Deus respondeu a sua vocação:
Os sete passos da nossa resposta à vocação
Vale a pena fazer uma análise da própria vida e vocação percorrendo estes mesmo sete passos que Deus percorreu para dar uma resposta à sua vocação: OUVIR, LEMBRAR, VER CONHECER, DESCER, DECIDIR, CHAMAR. Não são passos distintos, um depois do outro, mas são os vários aspectos da resposta que damos ao chamado que recebemos.
A gente deve aprender a escutar o grito calado do pobre, deve aprender a perceber os problemas das pessoas, dos irmãos e das irmãs, do povo; deve estar atento aos acontecimentos. Como Jesus na estrada dos Emaús, devemos aproximar-nos das pessoas, caminhar com elas, perguntar, fazer silêncio para escutar o que conversam (Lc 24,13-35); ter um desconfiômetro para perceber em nós eventuais resistências, filtros, desvios ou enganos, que nos impedem de escutar. O ponto de partida é fazer silêncio dentro de nós para poder escutar a vocação.
2. Lembrar: Deus se lembrou da aliança com Abraão
Muitas vezes, ao presenciar um fato na rua ou escutar uma notícia na televisão ou no rádio, você se lembra de alguma situação já vivida antes. Os fatos que acontecem hoje trazem de volta na memória as coisas do passado, tanto da vida pessoa, como da família, da comunidade, do Brasil ou do mundo. E esta lembrança do passado, por sua vez, ajuda a dar uma resposta mais coerente aos apelos que recebemos hoje. A memória do passado é chave para poder analisar bem a situação presente e perceber os apelos ou as vocações que aí existem para nós. Sem memória do passado, não há futuro para o povo”. Por favor de memória já erramos muito na vida.
3. Ver: Deus viu a miséria do seu povo
Todos os dias, vemos a miséria do Brasil: pobres na rua, brigas em família, desemprego, corrupção, exploração, fome, violência, etc., mas nem sempre nos damos conta do que está acontecendo. Vemos as coisas, mas não as percebemos. Nós nos acostumamos e nos tornamos insensíveis aos problemas do país e das pessoas. Muitas vezes, os meios de comunicação, a TV, os grandes jornais e as revistas determinam o nosso pensamento. Não analisamos as coisas e, para acalmar uma possível reação da nossa consciência, arrumamos motivos e pretextos para não nos envolver. Por falta de análise crítica da realidade não enxergamos o apelo de Deus na vida e, mesmo vendo, não descobrimos nossa vocação.
4. Conhecer: Deus conheceu os sofrimentos
Na Bíblia, a palavra conhecer indica não só o conhecimento teórico obtido pelo estudo. Na Bíblia, conhecer indica a experiência prática, obtida na convivência. Uma coisa é observar de longe, outra é sentir de perto. Quem vive em condomínio fechado não sabe o que sofre um favelado. Quem já esteve na casa de um desempregado sabe o que significa não ter o que comer. Quem é o dono de terras não sabe o que sofre um sem-terra. Uma vocação que não se envolve não atinge o seu objetivo. Quem não mora antes, não sabe com quem vai casar, e pode dar um passo em falso. Quem não aprofunda a vida, vive na superficialidade, sem raiz. Não resiste.
5. Descer: Deus desceu para libertar o seu povo
A situação do povo que gritava fez com que Deus saísse do lugar onde estava para colocar-se no lugar onde estava o povo. Mudou de posição. Fez opção pelos pobres e oprimidos. Descer significa mudar de posição social. Para poder assumir sua vocação é muito importante a pessoa fazer algo, por menor que seja, para descer, mudar de posição. Por exemplo, no jeito de oferecer ajuda aos outros ou de dar uma esmola, na hora de votar, nas decisões que se tomam, na maneira de fazer análise dos problemas, etc. Diz um provérbio egoísta: “A fome na China pode ser grande, mas o meu calo dói mais!” É COLOCANDO-ME NO SAPATO DO OUTRO, QUE VOU PERCEBER QUE A FOME NA CHINA DÓI BEM MAIS QUE O MEU CALO. Aí eu saio do meu egoísmo, e mudo de posição.
6. Decidir: Deus decidiu fazê-lo subir para uma terra fértil
Deus ouviu, lembrou, viu, conhecer e desceu. Agora Ele começa a agir, tomando decisões concretas a partir da posição do outro, com o enfoque do outro, e elabora um projeto para libertar o povo daquela situação. Deus percebeu que o povo não podia continuar do jeito que estava lá no Egito e que era necessário encontrar uma saída “para fazê-lo subir dessa terra para uma terra fértil e espaçosa, terra onde corre leite e mel”. O projeto de Deus levou quarenta anos de andanças no deserto para ser realizado, desde a travessia do Mar Vermelho até a entrada na Terra Prometida. Deus parece não ter pressa. Ele não planta alface. Planta é Jacarandá.
7. Chamar: Deus chamou Moisés e o enviou para libertar o povo
Para realizar seu projeto Deus chamou Moisés, Moisés chamou Aarão, Aarão chamou outros, os outros chamaram outros. Iniciou-se um processo que chegou até nós. Deus tomou iniciativas, envolveu pessoas, fez com que os outros passassem pelo mesmo processo A raiz da vocação de Moisés e da vocação de todos nós, é a preocupação de Deus em ser fiel à vocação que Ele, Deus, está recebendo do povo até hoje para libertá-lo da opressão e do sofrimento em que vive.
A única certeza que Deus nos dá quando nos chama para alguma missão é esta “Vai! Estou contigo”. Deus não dá cheque assinado nem dinheiro. Não dá diploma nem nos coloca no seguro. Não muda o nosso caráter, nem tira nossos defeitos. Não nos dá segurança psicológica, nem tira nossas dúvidas. Apenas faz saber: “Vai, estou com você” Foi o que Ele disse a Moisés (Ex 3,12), A Maria, a mão de Jesus (Lc 1,28), aos apóstolos (Mt 28,20), e a tantos outros, antes de nós. Foi também o nome que ele deu a Jesus: Emanuel, que quer dizer Deus Conosco (Mt 1,23). Ele está conosco, sempre, para que possamos realizar nossa missão, nossa vocação!
Frei Carlos Mesters, O.Carm.
Fonte: Comissão Provincial para a Ordem Terceira do Carmo (otcarmo.org)
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