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14/02/2014A casa da beleza
15/02/20141. Introdução
Ouvindo, como ouço no momento, o mundialmente famoso grupo vocal The Swingle Singers, que interpreta a música sacra, quase divina, dos nossos geniais compositores clássicos, cantando-os a oito vozes, dou-me conta, uma vez mais, de que a música é mesmo “mediadora da transcendência”, a linguagem do belo, o caminho privilegiado para chegar a Deus, Beleza infinita! Deixo-me impregnar por essa música reveladora do cantar do céu e abro o coração ao Espírito-Amor, ele que, no dizer de santo Inácio de Antioquia, é como a cítara que toca as cordas do nosso coração e nos faz vibrar em sintonia com o Divino Músico, em unidade com os irmãos. E deixo-me comover às lágrimas, como santo Agostinho, ao ouvir os cânticos da igreja de santo Ambrósio, em Milão, no início da sua conversão, “não tanto pelo canto quanto pelo que vem cantado, se a execução é feita por uma bela voz e com adequada modulação”[1].
Não, a música não é só expressão dos sentimentos nem tem como finalidade apenas o prazer estético, nosso deleite humano, ao ser concebida como o conjunto de sons ordenados entre si, arte pela arte. Para nós, cristãos, ela é, sim, linguagem do sagrado, mediação para nos abrirmos ao infinitamente Outro, um meio de comunicação que favorece nosso encontro com aquele que é o Criador de toda a beleza, com o Salvador que recriou o belo, o justo e o verdadeiro com seu mistério pascal e com o Santo Espírito, sopro de vida e unidade que habita nosso interior, fazendo-nos participar da comunhão trinitária de Deus. Assim, pela música, chegamos ao coração de Deus e Deus desce a nós, uma vez que Cristo, o divino músico, expressão do canto de Deus, pela sua encarnação, nos veio trazer o canto do céu, ensinando-nos a fazer da vida e do mundo a grande sinfonia do amor sob a sua perfeita regência.
1.1. A beleza divina
Quando falamos da beleza de Deus, logo nos vem à mente e ao coração santo Agostinho, que assim se dirige ao Amado e Belo de sua alma, quando o descobre no processo de sua conversão:
Tarde te amei, beleza sempre antiga e sempre nova, tarde te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz.[2]
Um caminho que parte da beleza das coisas criadas e chega à Beleza do Deus Trindade, origem e fonte de toda beleza, de todo bem! Uma vez que experimentamos Deus em sua beleza e verdade, deixando-nos tocar por seu amor, somos por Ele atraídos e seduzidos, aumentando sempre mais nossa fome e sede do Infinito. O encontro verdadeiro com o Belo vai além dos sentidos e da sensibilidade e abrange a totalidade do nosso ser, transformando nossa vida e fazendo-a também beleza e resplendor, iluminada pela Luz que vem do Alto! Quem contempla o Belo e fixa nele o olhar, deixando-se iluminar por ele, acaba se tornando belo também…
1.2. A beleza que salvará o mundo
À célebre e intrigante pergunta feita por Dostoievski em sua obra O idiota — “É verdade, príncipe, que um dia disseste que o mundo será salvo pela beleza?… Que beleza salvará o mundo?” —, o cardeal Carlo Maria Martini responde, escrevendo em 1999-2000, por ocasião do Grande Jubileu, importante e questionadora carta pastoral ao seu povo de Milão, chamada Qual beleza salvará o mundo? É óbvia a resposta: só quem pode nos salvar é “a beleza sempre antiga e sempre nova, a beleza de Deus; a beleza que caracteriza o belo e bom Pastor, que dá a vida por suas ovelhas”.[3] Falando da Trindade como modelo de relação e comunhão, Martini afirma mais ou menos o seguinte:
É na Trindade que se revela o mistério da salvação, cujo centro é a encarnação do Filho, Jesus Cristo. Deus se revela Pai, dando-nos seu Filho; o Filho, por sua vez, revela sua unidade com o Pai, abandonando-se a ele e à sua Vontade até a morte, e morte de cruz; o Espírito Santo nos é dado pelo Filho e continua sua presença no meio de nós. A partir do mistério pascal, Deus se mostra Pai, Filho e Espírito Santo.
Os padres gregos o dizem em outras palavras: “Do Pai, pelo Filho, no Espírito”[4].
A beleza que salvará o mundo é o Verbo encarnado, Jesus Cristo, beleza em pessoa, lugar e espaço onde a Verdade e a Beleza eternas irrompem na História, se realizam no coração da humanidade, daqueles que creem. Armando sua tenda entre nós, o Logos— Palavra eterna — traz a eternidade para o tempo, permitindo que os mortais participemos novamente da eternidade do Deus infinito e conduzindo-nos de novo à fonte da beleza. Em sua graça e beleza, o amor vem a nós e nos eleva à comunhão suprema do Deus Tri-unidade. Bruno Forte completa de forma admirável essa ideia:
A verdade não é algo que se possui, mas Alguém que nos possui. Não é então a presunção da posse de quem vê, mas a humildade da pobreza de quem escuta e, escutando, corresponde, que será a experiência da verdade que salva: a verdade não tranquiliza você, mas faz de você peregrino; não lhe dá respostas, mas acende em você as perguntas verdadeiras.[5]
Tanto o cardeal Martini como Bruno Forte, este citando sobretudo Evdokimov, místico da tradição cristã oriental, falam-nos da “beleza tabórica” de Cristo, que se transfigura no Tabor diante dos discípulos, revestido de glória e esplendor. Ele, a luz do primeiro dia que brilha nas trevas, revela o rosto luminoso de Deus, banhando-nos e transformando-nos também em luz. Fazer a experiência da sua presença iluminadora nos leva a exclamar: “Senhor, é bom, é belo para nós estarmos aqui!” É dessa Beleza que vem do alto que o discípulo de Jesus deve nutrir-se e sempre de novo tornar-se anunciador e testemunha. Mas a Beleza divina que salva é também a “beleza crucificada”: o “mais belo entre os filhos dos homens” (Sl 44) se fez solidário com nosso sofrimento, assumiu nossas dores, experimentando a kenosis, o esvaziamento total de si, até a morte numa cruz. Nesse sentido, a beleza é um mistério, mistério de amor e comunhão perfeita dos Três: o Amado (Filho) se abandona ao Amante (Pai), de quem procede, na unidade e na força do Amor que os une (Espírito Santo), garantindo também a nossa comunhão com o eterno Deus-Amor. Santo Tomás de Aquino, teólogo e poeta, ajuda-nos a ler e cantar a beleza desse mistério santo e pascal do Senhor nestes versos eucarísticos:
Jesus, agora oculto a meus olhos, aconteça — Te peço — o que tanto almejo: vendo-te com o rosto descoberto, eu seja feliz com a visão de tua glória![6]
Essa é a beleza da Santidade encarnada, oferecida por Deus para a salvação da humanidade!
1.3. O mistério pascal celebrado na liturgia
Na liturgia, a Igreja faz memória do mistério pascal do Senhor, celebrando e atualizando no presente a salvação trazida por Jesus Cristo, a Beleza encarnada. “Fazei isto em memória de mim!” — foi o desejo do Senhor naquela noite em que tomou o pão e o vinho nas mãos, deu graças, pronunciou a bênção e os distribuiu aos seus discípulos, antecipando sua entrega na cruz. A liturgia é o lugar privilegiado do encontro do ser humano com Deus criador e salvador, encontro que o renova interiormente pela contemplação da graça e da santidade, da glória e do esplendor do Pai no rosto de Cristo, ícone do Deus invisível, da divina beleza. Portanto, a beleza na liturgia é condição fundamental para favorecer a experiência com o mistério divino que celebramos.
Joan Maria Canals, cmf, escreveu importante artigo sobre “A beleza na liturgia”,apresentando a liturgia como “o grande tesouro sacramental da Igreja”, uma vez que chegamos ao Invisível e Transcendente por meio dos sinais litúrgicos, dos gestos e palavras, da música e do canto… Diz o autor: “A simbologia litúrgica é considerada como uma linguagem privilegiada e um meio de comunicação que favorece o encontro da criatura humana com Aquele que é a Beleza infinita. A liturgia, graças à sua riquíssima simbologia, nunca cessou de oferecer frutos de renovada beleza”[7].
Vale a pena transcrever o testemunho, citado por Cláudio Pastro, do pensador francês Paul Claudel, sobre quando se converteu ao cristianismo por força da liturgia, celebrando as vésperas na Catedral de Notre-Dame em Paris:
Foi então que se verificou o acontecimento que marcou toda a minha vida. Em um instante, o meu coração foi tocado e acreditei. Acreditei, com uma tal força de adesão, com uma tal elevação de todo o meu ser, com uma convicção tão forte, com uma certeza que não dava lugar a nenhuma espécie de dúvida, que, depois, nem os livros, nem raciocínios, nem as circunstâncias de uma vida agitada puderam abalar a minha fé, nem mesmo, para dizer a verdade, tocá-la.[8]
Trata-se de experiência semelhante à de santo Agostinho, já citada anteriormente, para mostrar como uma liturgia bem celebrada nos proporciona o encontro profundo com Deus na pessoa do seu Filho, Jesus, e em seu mistério pascal, de que fazemos memória na liturgia.
Uma liturgia é bela quando carrega em si harmonia e unidade, traduzidas nos gestos e nos símbolos, nas palavras e no silêncio, no canto e na música que tocam o coração. Uma liturgia é bela quando desperta em nós e nos favorece o desejo profundo do encontro com Deus na pessoa de Jesus, “o mais belo entre os filhos dos homens”. Uma liturgia é bela quando nos conduz à beleza transformadora do Senhor ressuscitado, fazendo-nos experimentar o seu inefável amor e enchendo-nos de alegria pela sua salvação. Uma liturgia é bela quando nos possibilita a experiência da fé, fazendo-nos penetrar no mistério do grande Outro, que nos supera infinitamente, sempre maior…
Adélia Prado, renomada poeta e escritora mineira, repetiu na TV Aparecida, em dezembro de 2007, por ocasião do encontro “Vozes da Igreja”, o que já dissera no Jubileu dos Artistas, em São Paulo, em 2000, sobre a importância de resgatar a beleza na liturgia por meio da linguagem poética, da dignidade dos gestos e sinais litúrgicos, da música bem elaborada e executada, do silêncio reverente diante do mistério… Em ambas as ocasiões, tive o privilégio de ouvi-la, devendo concordar com seu lamento ora sério, ora carregado de humor:
A missa é como um poema, não suporta enfeite nenhum… A palavra foi inventada para ser calada. É só depois que se cala que a gente ouve. A beleza de uma celebração, como a beleza da arte, é puro silêncio e pura audição… O mistério é tão indizível, a magnitude é tal, que não cabem palavras. E o que isto significa? Que existe algo inefável, que eu devo tratar com toda reverência… é a criatura diante do Criador…”
A esse respeito completa muito bem o autor do livro A porta da beleza: “Encontrar a Palavra é abrir-se ao Silêncio e escutá-lo no profundo; encontrar o Silêncio é acolher a Palavra e vivê-la na transparência dos gestos”[9]. Nossos grandes místicos, como são João da Cruz, compreenderam bem essa “música silenciosa” e essa “solidão sonora”, esse mistério que nos habita e não cabe em poesia ou em música…
Assim, pois, a beleza externa dos ritos — cantos, gestos, posturas, palavras e silêncios, símbolos que usamos na liturgia — deve coincidir com a beleza interna do sagrado mistério de fé que celebramos, ao mesmo tempo próximo, dentro de nós, mas sempre inacessível, fascinante, além de nós.
2. A beleza do canto litúrgico
A música e o canto litúrgico, como elementos integrantes da celebração, constituem, portanto, meios privilegiados de oração e participação, devendo ter um caráter sagrado, por estarem a serviço do divino mistério celebrado na liturgia. O documento conciliarSacrosanctum Concilium nos diz a esse respeito: “A tradição musical de toda a Igreja é um tesouro de inestimável valor, que se sobressai entre todas as outras expressões de arte, sobretudo porque o canto sagrado, intimamente unido com o texto, constitui parte necessária ou integrante da liturgia solene”[10].
Assim, o canto e a música são também fruto da beleza, porque criam um clima de festa e esplendor, solenizando e revestindo de maior beleza os atos litúrgicos; abrem caminho para Deus, como dons do seu amor e da sua graça transformadora… Por servirem à sagrada liturgia, “devem ser dignos e belos como sinais e símbolos das realidades celestes”[11]. Citando esses dois documentos, Antonio Alcalde assim resume o canto litúrgico: “Um canto será tanto mais litúrgico e evangelizador quanto mais fiel se mantiver à sua natureza, sentido e função litúrgica, na proporção em que auxiliar a viver e expressar o mistério que se celebra”[12], segundo alguns critérios: a beleza da oração, a participação da assembleia e o caráter solene da celebração. Ainda conforme o nº 112 da SC: “A música sacra será tanto mais santa quanto mais intimamente estiver unida à ação litúrgica, quer como expressão mais suave da oração, quer favorecendo a unanimidade, quer, enfim, dando maior solenidade aos ritos sagrados”.
Prefere-se hoje o termo “música ritual” para exprimir a função ministerial do canto e da música como aquela que exerce humilde, mas nobre serviço à Palavra; música que está em função do mistério celebrado e da comunidade celebrante; música que nasce da Palavra e a ela serve; música que se transforma na própria ação ritual, devendo realizar em nós a comunhão e a conversão e levando-nos a fazer a experiência pascal do Ressuscitado. Por isso, o texto tem sempre a primazia, devendo a melodia realçar o sentido das palavras, de tal modo que a palavra se faça canto. Tendo como referência essencial Jesus Cristo, deve-se cuidar da dimensão poética e orante do canto. A música na liturgia não é algo secundário nem é realidade autônoma e independente, ornamento apenas, mas expressão humana do divino, verdadeiro sacramento do Cristo, sinal da beleza eterna; portanto, deve ser “dotada de santidade e beleza de formas”[13].
A música é bela quando exerce sua função ministerial, que é dar beleza à celebração, solenizar a liturgia e unir numa só voz o coração da assembleia, favorecendo sua participação. A música é bela quando, em sua dimensão mistagógica, sai de si, ultrapassa o sensível e nos transporta ao Invisível, fazendo-nos mergulhar em Jesus Cristo e no seu mistério salvador. A música é bela quando carrega qualidade poética e musical, quando bem elaborada e executada, quando à voz e aos instrumentos corresponde uma atitude interior, ajudando a oração e a contemplação. A música é bela quando “corresponde ao espírito da ação litúrgica” (SC 116), quando nos leva ao louvor e à adoração, à súplica e à ação de graças, fazendo-se voz sonora da Igreja para o seu Amado.
A Carta aos Artistas, do papa João Paulo II, constitui importante referência para os cristãos quem têm vocação artística, a fim de usarem o talento dado por Deus em benefício dos irmãos e a serviço do Reino, da beleza e da dignidade na liturgia. Afirma: “Um artista sabe que deve atuar sem deixar-se dominar pela busca duma glória efêmera ou pela ânsia de uma popularidade fácil, e menos ainda pelo cálculo do possível ganho pessoal. Há, portanto, uma ‘espiritualidade’ do serviço artístico…”[14]. E, citando o poeta polaco Cyprian Norwid: “A beleza é para dar entusiasmo ao trabalho, o trabalho para ressurgir… O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração”.[15] Portanto, devemos de algum modo refletir a infinita beleza e santidade de Deus em nossa arte, orientando para ele o coração, uma vez que em Deus tudo é bom e belo, verdadeiro e santo.
Se Deus assim é, “não cabem na liturgia egoísmos, divisões, banalizações e feiuras de nossa parte”[16]. Daí a necessidade do cultivo da beleza, da formação técnico-musical, litúrgica e espiritual, do conhecimento somado à vivência da fé, à experiência de Deus no mistério de seu Cristo ressuscitado e do Espírito Santo, o “sopro inspirador” e o “misterioso artista do universo”[17]. Ele nos faz mergulhar no oceano infinito de beleza, onde só cabem o amor, a admiração e o fascínio, a adoração e a alegria sem fim… Já dizia santo Tomás de Aquino que, “onde a palavra termina, ali começa o canto, a música”. Como linguagem do inexprimível, a música traduz o sentimento, a vivência, as coisas do coração e do espírito, envolvendo o ser inteiro; por isso é a mais completa, profunda e espiritual de todas as artes. À sagrada liturgia convém uma música santa e bela, digna e plena do “Belíssimo de maior beleza que todos os mortais”[18]. É para Cristo que devemos olhar. É a ele que devemos dirigir nosso canto! É com ele que cantamos ao Pai! Somente nos deixando banhar interiormente por seu brilho e beleza, iluminar-nos-emos e refletiremos sua “luz admirável” com nosso canto e nossa voz, a mente, o coração e a vida, como nos adverte santo Agostinho.
3. Algumas reflexões e questionamentos
Precisamos, sim, concordando com Adélia Prado, resgatar a beleza como “necessidade vital” nas nossas celebrações litúrgicas, pois a liturgia já é, por si só, uma “obra de arte”, um poema completo, e não admite enfeites, ornamentos ou “purpurinas”, verniz de falsa beleza, no dizer de Cláudio Pastro. Segundo ele, o maior desafio para a Igreja hoje é a falta da beleza autêntica e verdadeira que nasce do mistério. A música deve ser aquela que brota da oração, da experiência de Deus, e não a encomendada, feita, barulhenta,show onde o centro é o músico, o intérprete, e não a Divina Beleza, o mistério da fé e da vida celebrado. Foi em dezembro de 2007 que, embevecidos, ouvimos Pastro no Mosteiro de São Bento, em São Paulo, quando lançou o livro Via Pulchritudinis — O caminho da beleza, por ele traduzido. Na ocasião, reforçou: “A liturgia só é bela e, portanto, verdadeira quando despojada de qualquer outro motivo que não seja a celebração de Deus, para ele, por meio dele, com ele e nele”[19].
O papa Bento XVI, de profundo conhecimento litúrgico e sensibilidade musical, escreveu, quando ainda cardeal Ratzinger, importante livro chamado O espírito da liturgia. No capítulo referente à música litúrgica, comparando a música para o culto com a música pop, assim se expressa:
A música pop, que certamente não tem nada a ver com “povo” (…) é um culto do banal (…); oposto ao culto cristão, ele liberta o homem dele próprio, devido à vivência da multidão e a vibrações de ritmo, barulho e efeitos de luzes, deixando-o no êxtase de rompimento dos seus limites, submergindo-o quase nas forças primitivas do universo. A música do “embevecimento sóbrio” do Espírito Santo, que experimentamos na liturgia, se opõe ao irracional e ao excesso, atraindo os sentidos à razão.[20]
Diante do “desaparecimento da beleza, decoro e elegância estética no culto cristão, diante da perda da sensibilidade do sagrado e da ausência do espírito de adoração e respeito”[21], ficam então algumas ponderações:
1) O canto deve ser ungido e orante e buscar nas fontes bíblicas e litúrgicas sua inspiração. Quantos cantos simplesmente fabricados, sem beleza nem poesia, dissociados da ação litúrgica, da Palavra, do tempo litúrgico, além de conter graves erros gramaticais e até teológicos, ouvimos por aí!… Falta muita qualidade musical e poética aos nossos cantos. Como comunidades de fé e não simplesmente grupos humanos e sociais, não celebramos uma festa qualquer, mas o mistério pascal da morte e ressurreição de Cristo, verdadeira fonte e centro da festa cristã e litúrgica. Nossos cantos devem expressar esse mistério divino e ser entoados como um ato de louvor e adoração!
2) Ao longo da História, sempre se preferiu ao instrumento o uso da voz, que remete ao sopro do Espírito e à Palavra — Cristo, o Logos do Pai. O que dizer do barulho estonteante, dos instrumentos ruidosos, usados de forma inadequada, dos microfones com volumes altíssimos na voz dos cantores, abafando a voz da assembleia, que deve ter a primazia?… Certamente não ajudam a rezar, mas dispersam, excitam e distraem…
3) Têm razão os que apontam a diminuição do sentido do sagrado, do respeito e veneração pela casa de Deus, casa de oração. Um elemento essencial é o chamado “silêncio sagrado”, parte integrante da celebração (SC 30) e rito simbólico que favorece a oração e a meditação, sendo também uma forma de participação. Não se trata de um silêncio vazio, mas fecundo, que abre espaço no coração para acolher o “Grande Outro”, mergulhando-nos no mistério salvador de Deus em Jesus! Já não encontramos nas nossas igrejas o espaço do silêncio, da audição do mistério, do vazio pleno.
4) Não bastam o louvor externo e formal, a observância de meras rubricas, os gestos e ritos bem executados e até bonitos, porém mecânicos, a celebração apenas conforme às normas litúrgicas: se falta espiritualidade, se não lhes correspondem a atitude interior, a unção e o calor do Espírito que dá vida. O importante é que ao culto corresponda a liturgia da vida, conformando-se com Cristo, pelo Espírito, para a glória do Pai. “Escuta da Palavra e fidelidade à aliança com todo o coração e com toda a alma”, segundo nos diz o Deuteronômio 10,12-13.
5) A sensibilidade para o canto gregoriano é um sinal de redescoberta e revalorização do sagrado e do divino, ajudando a oração e a contemplação. Em meio à música estridente e ruidosa, o gregoriano nos traz uma melodia suave, tranquilizadora, que eleva a alma e suscita o desejo pela beleza, pois, no dizer de alguém, os seres humanos têm direito à beleza e necessitam dela como do ar que respiram. Bento XVI, na Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis, faz-se voz não só dos padres sinodais, mas da Igreja ao longo dos séculos, pedindo “que se valorize adequadamente o canto gregoriano, como canto próprio da liturgia romana”[22]. Recentemente foi lançado o CDChant — music for paradise pelos monges cistercienses do Mosteiro de Heiligenkreuz, nos arredores de Viena. A obra alcançou sucesso mundial com o mais puro canto gregoriano, revelando que “as pessoas sentem a necessidade de ouvir músicas tranquilas”, como observou um dos monges. E é de Bento XVI o comentário na contracapa: “Onde quer que nos juntemos para cantar, louvar, exaltar e adorar a Deus, um pouco do céu se torna presente na terra”.
6) A liturgia nos precede e nos ultrapassa, é maior do que nós e, portanto, mais obra de Deus do que nossa. O Cristo ressuscitado é o único e sumo sacerdote capaz de oferecer o culto a Deus e santificar a assembleia. Quanto a nós, não somos criadores nem donos da liturgia, mas apenas humildes servos e “guardas do mistério”, conforme diz frei Alberto Beckäuser em seu artigo sobre o silêncio, na revista Grande Sinal.[23] A liturgia é de Jesus Cristo e da Igreja e por isso devemos nos submeter às suas normas, o que não nos escraviza, mas nos torna mais livres e criativos, na alegria da presença e da experiência de Deus. Como João Batista, somos “lâmpadas” que refletem e anunciam a LUZ, Jesus Cristo, o belo e bom Pastor que se faz Cordeiro para dar a vida por nós.
4. Conclusão
“Sustentai com arte a louvação!”, pede-nos o Salmo 32. Santo Agostinho, comentando-o sabiamente, assim se expressa:
Cantai-lhe, mas bem. Canta bem, irmão! Canta “com júbilo”, sem explicar com palavras o que se canta no coração… Tal júbilo só convém ao Deus inefável. Inefável é aquilo de que é impossível falar. E se não podes falar e não deves calar, o que resta senão jubilar? O coração rejubila sem palavras e a imensidão do gáudio não se limita a sílabas. Cantai-lhe bem com júbilo![24]
Eis o que se espera dos ministros da música litúrgica: sustentar com arte a louvação do povo, sem deixar que a liturgia se banalize, mas frutifique em beleza e santidade.
É importante perceber que a Igreja, como mãe e mestra, mas também como discípula de Jesus, continua aprofundando os mistérios da nossa fé, procurando compreendê-los, transmiti-los e vivê-los à luz da fé, pois, como Cristo, ela vai crescendo “em idade, graça e sabedoria”, na comparação feliz de alguém. Assim também, na liturgia, vamos formando nosso coração segundo o coração de Deus, mergulhando sempre mais na beleza da Trindade, sem a qual não podemos viver.
“Beleza”, do sânscrito, significa “a casa onde Deus brilha”. Deixemos então que, na divina liturgia, o céu se una à terra e nos abra a “porta da beleza”. Banhemo-nos no brilho e na luz de Deus, por entre as sombras do passageiro, até ultrapassar o limiar da casa terrestre e alcançar a plena luz da eterna Beleza!
Fonte: revista vida Pastoral