Estimado(a) leitor(a) da Revista Ave Maria, as famílias em todo o mundo buscam o recomeço de todas as coisas; dentre essas famílias, desempregados, enlutados, empresários, isto é, todos os povos e culturas perguntam o porquê das coisas, sobretudo, do sofrimento.
Se examinarmos a doutrina tradicional da providência divina quanto à questão de saber por que Deus permite os males e os sofrimentos que nos afligem, a explicação mais comum é a que os apresenta como punição dos pecados. Essa ideia da punição dos pecados pelo sofrimento parece comum a toda a humanidade. Se existe um aparelho social para punir os maus cidadãos, a mesma exigência parece se impor para a humanidade, na ordem moral, na relação Deus-homem, com mais justeza.
Segundo a doutrina tradicional, todos os homens merecem ser castigados porque todos pecaram. Assim, o homem nasce sob o signo da punição. O amor de Deus se transforma em zelo ardente a serviço de sua maior glória e se torna, ao mesmo tempo, uma paixão do mesmo caráter daquela que anima um chefe de Estado, um chefe de partido político ou a de um fanático cuja causa e honra está em jogo. Porém, como sustentar hoje que a pandemia do novo coronavírus, que atormentou e matou milhões de seres humanos, é uma punição dos pecados? Não será por causa de tal castigo que as pessoas são conduzidas a pecar ainda mais, a fazer maior violência e a se comportar com uma rara selvageria? Em que esse gênero de punição se parece com a sabedoria da providência divina? Que glória Deus recupera por meio de tais males e sofrimentos dos humanos?
A segunda explicação que a tradição formulou como razão que justifica os sofrimentos é a de que eles são meios de educação e de conversão.
A ideia de que os sofrimentos são provas é, ela também, comum ao pensamento pagão e bíblico. Para as Escrituras, é Deus mesmo quem prova o homem pelas aflições. A figura maior, nesse assunto, é Jó. Ele foi horrivelmente provado em seus bens, em seus filhos e em sua própria carne para que fosse visível seu valor de crente íntegro e reto que temia a Deus.
Encontramos, assim, a comparação do homem provado como o ouro que passa pelo fogo. Se a ideia de prova constitui um progresso em relação à ideia de punição, contudo, ela provocou a concepção segundo a qual esta vida não é nada mais do que um estado de prova, um noviciado da eternidade, como o diz Santo Agostinho em sua obra A cidade de Deus: “A vida temporal não é senão o noviciado da eternidade. Os infortúnios constituem, para os cristãos, uma prova e um castigo”.
Assim, numa perspectiva de eternidade, todos os sofrimentos são transformados numa sinfonia cósmica, numa harmonia universal. Vemos que as injustiças são praticadas pelo mundo inteiro, que os sofrimentos afligem os homens, que as misérias não cessam de se alastrar, mas se crê que a providência do bom Deus faz da história um misterioso laboratório em que as violências, os crimes, as desgraças são transformados em méritos para os bons e em punição para os maus. Os sofrimentos dos pobres se transformam em bem-aventuranças eternas. A condição pela qual Deus tolera o mal, os sofrimentos, é o bem-recompensa que Ele pode dar aos fiéis.
Uma leitura dos males e dos sofrimentos que inundam a história, com as lentes da doutrina da providência divina, revela-se como leitura miraculosa da história, das interações sociais. A providência divina é a mão de Deus como agente exterior que toma parte ativa nos afazeres humanos. Revela-se também como a crença de que o mundo é um lugar de justiça, mas tal crença comporta alguns paradoxos: a maneira de encontrar uma justiça no sofrimento, em si mesma, torna-se legítima somente numa perspectiva meta-histórica, isto é, numa referência escatológica de vida eterna, como lugar de justiça última. Assim, todo sofrimento não explicável, todo sofrimento não merecido, será naturalmente compensado mais tarde, nos Céus. Dessa maneira, não existe nenhuma injustiça e o mundo e a história podem ser lidos de novo como uma “harmonia maravilhosa” onde tudo concorre para o bem dos fiéis.
Só que a crença num mundo justo e bom não é essencialmente a crença que pode tornar o mundo justo. E quando essa crença se projeta para além da história, para encontrar um lugar onde a justiça é feita inexoravelmente, ela se fortifica. Num mundo inteiramente governado pela providência, cada um tem aquilo que merece e não tem aquilo que não merece. Parece mesmo bem claro que as pessoas às quais acontece alguma desgraça a tenham merecido. Há, porém, circunstâncias em que, ao menos aparentemente, elas não tenham merecido, mas acontecem do mesmo modo. Então, para além das aparências, procurar-se-ão nos atributos ou nos comportamentos das pessoas as “causas” ocultas dessas desgraças ou então se transformará o infortúnio num falso infortúnio, porque o verdadeiro infortúnio é o pecado e toda desgraça se transformará em felicidade. Portanto, será um recomeço sempre para os homens e mulheres de fé, a exemplo dos povos bíblicos que sofreram inúmeras perseguições, pandemias, injustiças, guerras etc., mas, para os homens de fé, sempre é tempo de recomeço.
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