Às vezes, andamos tão distraídos ou absorvidos que até esquecemos que somos filhos de Deus. Pois é, cada um de nós é fruto de um ato voluntário de amor, único e irrepetível. Esse amor criador de Deus faz de cada um de nós uma pessoa diferente de qualquer outra, com talentos próprios. E para cada um de nós Deus tem um projeto muito claro: Deus quer que sejamos felizes, já nesta vida terrena, pondo a render os talentos que nos dá!
Quem toma plena consciência deste amor pessoal, único, gratuito, de Deus, só consegue ter uma resposta: amar a Deus vivendo na descoberta e concretização desse projeto, numa entrega confiante, na certeza de que Deus só pede aquilo que somos capazes de dar. Perceber que Deus nos criou por amor e nos criou para amar, e atuar de acordo com esta certeza, é que se chama vocação. Por isso não podemos ter medo de perguntar:
Senhor, que queres que eu faça?
Quem vive nesta entrega confiante torna-se uma presença que interpela, que leva os outros a interrogar-se e a querer viver também a mesma felicidade. Somos felizes na medida em que percebemos que somos vocação e o nosso viver manifesta o amor criador de Deus. Assim uma igreja de vocacionados torna-se pró-vocação, ajudando mais pessoas a descobrir o que Deus deles espera. E a diversidade de projectos e de descobertas pessoais, ligada pela comunhão que gera a participação do mesmo e único Amor, faz a Igreja mais viva, ativa, presente no mundo, na multiplicidade de vocações que o Senhor suscita.
O matrimônio como vocação
O matrimônio não é uma vocação menor ou uma não-vocação, uma espécie de destino inexorável para aqueles a quem Deus não chama à vida consagrada. O matrimônio é uma vocação plena de dignidade – quem a acolhe é sinal do amor de Deus:
– Na diferença e na complementaridade homem-mulher, marido e esposa abrem-se um ao outro, e assim manifestam que a singularidade de cada pessoa não a isola, antes a enriquece porque o que tem para dar é único – “quanto mais te dou, tanto mais tenho”.
– Como gerador de novas vidas, o casal torna-se colaborador do amor criador de Deus; se um filho é o que há de mais profundamentenosso, é também o que há de mais recebido – dom de Deus – e, como tal, não tanto um direito ou propriedade dos pais mas sobretudo um presente que se acolhe com alegria.
– No acolhimento da identidade própria de cada filho, na sua educação – que deve ser o processo permanente de conduzir o filho para o Pai, ajudando-o a fazer render os talentos recebidos – mãe e pai fazem transparecer o caráter singular de cada homem aos olhos de Deus.
– O serviço à família e à comunidade – entre os pais e destes para os filhos, mas também numa progressiva orientação dos filhos para que cooperem na vida familiar e para que sejam atentos às necessidades da comunidade em que vivem – vai testemunhando que amar à maneira de Deus é dar sem nada esperar em troca e que no reino de Deus todos temos tarefa a desempenhar.
– O dia-a-dia da família – sucessos e desânimos, alegrias e tristezas, progressos e provações – faz perceber que a vida é caminhada, é esforço, é entrega continuada; amar não é coisa de momento, é atitude permanente.
Nestes tempos de cultura do efémero, em que se fala muito de direitos e pouco de deveres e de compromissos, importa que os casais reflitam muito na grandeza da sua vocação matrimonial: aquele que casa reconhece-se incompleto, precisa do seu cônjuge e ao mesmo tempo sabe que é também preciso, aceita ser cooperador de Deus na geração de novas vidas, percebe que é dando que se recebe, compreende o caráter permanente do amor, e assim se torna sinal visível do amor de Deus.
Cada vez menos se pode aceitar que casar na Igreja possa ser apenas uma prática social, porque “é costume”, “os meus pais também casaram aqui” ou até porque as fotografias ficam com um enquadramento mais bonito. Casar na Igreja tem de ser um ato consciente, uma afirmação de Fé e o assumir, perante a comunidade, a vocação de ser “uma só carne”.
Ao falarmos de Matrimônio, falamos de um sacramento, isto é, de um sinal revelador de uma manifestação de Deus. É interessante pensar num aspecto singular do Matrimônio: quem recebe este sacramento é ao mesmo tempo seu ministro, ou seja, cada um dos noivos administra ao outro o sacramento, sendo o sacerdote ou diácono testemunha desse ato em nome da Igreja. Faz todo o sentido que assim seja, se pensarmos que pelo Matrimônio os esposos se reconhecem complementares e se assumem como testemunhas do amor de Deus, cada um para o outro e em casal para a comunidade.
O Matrimônio é também sinal do Deus Criador, fonte de toda a vida. A fecundidade conjugal, traduzida na geração de novas vidas – os filhos – é a mais evidente manifestação desse amor criador. Ser pais, de forma consciente e responsável, é colaborar na obra da Criação, é reconhecer-se como co-criadores e, ao mesmo tempo, como agraciados com um presente único por parte de Deus. Daí que não faça sequer sentido falar-se em sacramento do Matrimônio se houver da parte dos noivos vontade expressa de não ter filhos. Diferente é a situação daqueles casais que não podem ter filhos e que são igualmente fecundos, num amor generoso ao serviço da comunidade e(ou) através da adoção de uma ou mais crianças.
O Matrimônio é ainda sinal de que o amor de Deus é eterno. Deus é fiel, ama-nos sempre e em quaisquer circunstâncias, e por isso também o amor entre os esposos tem caráter permanente e exclusivo, supõe a indissolubilidade e a fidelidade. Com mais ou menos obstáculos, a vida do casal tem de ser imagem da caminhada de amor que é a relação de Deus com cada um dos Seus filhos.
A família como geradora de vocações
A vocação matrimonial é por natureza fecunda, geradora de novas vidas, e os cônjuges, ao assumirem a responsabilidade de serem pai e mãe, tornam-se colaboradores de Deus na obra da Criação. Esta responsabilidade não se esgota no momento da concepção ou do nascimento, é para toda a vida, ou seja, nunca deixamos de ser pais!
Ao aceitarmos o chamamento de Deus para sermos pais, aceitamos também ser educadores. Educar é, em primeiro lugar, conhecer bem os nossos filhos, perceber que eles são dom de Deus e que Deus deu a cada um talentos diferentes. Importa reconhecer esses talentos e pô-los a render! Educar é então acompanhar ativamente o desabrochar e o florescer dos talentos de cada filho, de forma que possamos um dia dizer: “Aqui tens, Senhor, o que me confiaste”! Isto é bem diferente de impor aos filhos as nossas opções, de forçar a que sejam o que nós mesmos ambicionamos mas não pudemos ou não conseguimos!
Educar não é fazer os filhos à nossa imagem e semelhança, é guiá-los para que sejam imagem e semelhança de Deus! Não é abrigá-los obsessivamente debaixo das nossas asas protetoras, é ensiná-los a voar em liberdade! Não é tanto mandar, é muito mais ouvir, compreender, testemunhar, orientar.
Sendo assim, importa que os pais proponham aos filhos todos os caminhos de realização vocacional: o sacerdócio, a consagração, o matrimônio ou outra vocação laical. Se a família é a primeira a excluir a possibilidade de um filho optar por uma vocação consagrada, terá de se interrogar muito a sério sobre a autenticidade da sua fé.
Onde os cristãos o são por hábito ou tradição e não por assumirem a sua vocação batismal, não é fácil que possam surgir vocações consagradas! Onde o prestígio social e a riqueza, o culto do sucesso e do imediato, são valores mais altos do que a doação desinteressada ou o espírito de missão e de entrega, não há espaço para a vocação sacerdotal. Se nas famílias não há lugar para a atenção ao outro, para a oração, para o primado de Deus, para ser “igreja doméstica”, como pode um filho sentir-se interpelado à consagração no sacerdócio ou na vida religiosa?
Na coerência de comportamentos e atitudes dos pais, no amor-doação que forem percebendo, no acolhimento que sentirem pelas opções conscientes que forem fazendo, os filhos vão sendo educados, vão tomando consciência da sua individualidade e do lugar único que Deus tem para eles.
Ser pais por vocação é guiar os filhos na descoberta e no amadurecimento da sua própria vocação!
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