Por Pe. José Tolentino Mendonça, da Faculdade de Teologia da Universidade Católica do Porto, em Portugal.
Infelizmente ainda se insiste numa catequese muito conceitual e indiferenciada, com mais coisas para decorar do que para perceber vitalmente. As narrativas evangélicas, porém, propõem um conhecimento de Jesus em situação. De fato, damos um passo em profundidade quando reconhecemos que, nos Evangelhos, Jesus não nos é apresentado já elaborado, como se o seu retrato estivesse predeterminado e sabido. A revelação de Jesus vai-se operando progressivamente. Para cada pessoa, Jesus começa por ser uma pergunta, e é tão importante que seja assim, é tão necessário que nos interroguemos: “Quem é este?”; “Donde lhe vem esta autoridade?”; “Donde lhe vem tudo isto?”.
O conhecimento de Jesus desenha-se e consolida-se numa sucessão de encontros, que o leitor dos Evangelhos é levado a acompanhar. Para dizer: não é indiferente para a compreensão de Jesus as razões dos que se aproximaram dele, mesmo que a princípio tenham sido ambíguas e necessitadas de maturação. Como não são indiferentes os seus atores: os nomeados e os anônimos, aqueles que disseram palavras e os que nada verbalizaram, aqueles que junto a ele choraram e riram, aqueles que vieram de longe e de perto, essa rede múltipla e inumerável de humanidade que a narração coloca continuamente em redor dele e a quem, talvez, não tenhamos dado ainda a importância devida. A cristologia dos evangelhos é eminentemente narrativa. Conta e ouve histórias. Acolhe as trajetórias existenciais e potencia-as. Parte daí para a descoberta de Jesus.
Essa narratividade confere aos textos das origens cristãs uma força muito peculiar. Nos Evangelhos há personagens coletivas: os discípulos, os fariseus, os publicanos, as multidões… Mas quando se passa do plural ao singular há uma intensificação. Os verbos ganham força. Os adjetivos deixam a abstração e passam a uma concretude incisiva, a um colorido íntimo e próprio. Enquanto temos personagens coletivas a atuar, vemos tudo como que num plano geral, mas quando é aquele jovem rico que vem procurar Jesus ou aquela mulher cananéia ou Nicodemos o quadro torna-se fulgurante. O texto sobe em temperatura. Estamos diante daquela dor, daquela esperança; é aquela emoção que está em cena e não se dilui nos traços do conjunto. Por tudo isto, parece essencial tornarmo-nos sensíveis ao seguinte: a propósito de Jesus, o relevante não é apenas como o problema (que cada um traz e encena) se passa ao desfecho, como se Jesus fosse apenas revelado pelas coisas que resolve. Por exemplo, quando Jesus cura o leproso, o importante não é apenas que há um leproso e que no fim do encontro este fica curado. Fundamental é também o modo como isso acontece: o fato de Jesus correr o risco de contaminação. Jesus podia curar observando o afastamento recomendado em relação àquele tipo de doentes, mas ele escolhe tocar no leproso. E este gesto, insubmisso e fortíssimo, na direção daquela vida interditada, é tão ou mais forte que a cura em si.
Quando outro doente é descido de maneira espetacular pelo telhado, porque pelas entradas normais era impossível chegar a Jesus, temos uma imagem que vale por mil palavras. Dá a ver tudo: o desespero, mas igualmente a esperança, o esforço de ir até ao fim, de precisar de Jesus até ao fim. Aquele pai, que tem um filho epiléptico, e que nos é desenhado com realismo: o rapaz deitado por terra, a espumar em convulsão. Este pai vem ter com Jesus e diz-lhe: “Mestre, eu peço-te que venhas ver o meu filho”. Rapidamente percebemos que neste pedido se concentra um dramatismo precioso que a própria narrativa propositadamente conserva. O importante não é apenas que havia um nó que Jesus desfaz. Decisivo é também o caminho que cada personagem faz para Jesus, e esse caminho na fragilidade, esse processo de uma humanidade que se interroga, em crise, em sofrimento, ou simplesmente em curiosidade e busca – isso é matéria que nos permite uma aproximação intensa, existencial de Jesus. A Jesus nós chegamos pela exposição radical de nós mesmos. É no modo como ele cruza e se deixa cruzar pelas nossas vidas que a sua identidade (e também a nossa) se vai descobrindo. O Rosto de Jesus reconstrói-se antes de tudo pelo rasto que ele deixa nos nossos corações.
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