“Se a leitura do texto bíblico não torna a pessoa mais humana, mais fraterna,
mais capaz de construir um mundo melhor, há algo errado com o seu modo de ler.
A leitura bíblica e a leitura da vida se completam e se influenciam mutuamente”.
(CNBB. Crescer na leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003)
Amor a Bíblia, lida junto com a vida
Antes de tomar qualquer providência referente a um bom estudo bíblico, há uma atitude fundamental a ser desenvolvida: amar e ler assiduamente a Bíblia. Nenhum estudo pode começar sem isso e nem virá a substituir o texto em fase alguma da formação cristã. O primeiro mestre que explica a Bíblia é a própria Bíblia. Por ela começamos e a ela voltamos sempre. Não adianta saber coisas sobre a Bíblia quando não se tem verdadeira intimidade com o texto.
O amor e o contato assíduo com a Bíblia se constroem lendo a Bíblia junto com a vida, para mútua iluminação. A Bíblia aponta caminhos, esclarece rumos. A reflexão sobre a própria experiência existencial do(a) leitor(a) também ilumina o texto, cria intimidade com as questões bíblicas, dá vida ao texto.
Para corresponder à natureza das Escrituras, o leitor se aproximará do texto com dócil abertura à ação do Espírito Santo. Não se trata de um texto qualquer. Deus quer falar conosco através da Bíblia. Ele fala até quando alguma coisa no texto nos incomoda.
Quem se aproximar da bem humorada história sapiencial de Jonas esperando achar ali o retrato de um dócil porta voz de Deus vai ficar surpreso. Jonas é apresentado como um imenso teimoso, recusa-se a ir a Nínive como Deus pede, resmunga diante da atitude acolhedora de Deus em relação ao povo que fez penitência. Não foi uma história criada para dar exemplo edificante, a narração foi elaborada para questionar nossos preconceitos e nossa mania de ser donos de Deus.
A Bíblia é um livro surpreendente, vale a pena deixar que ela nos surpreenda.
A comunidade de fé faz parte da leitura. Mesmo sozinhos, no silêncio de uma meditação pessoal, lemos a Bíblia em comunhão com a nossa Igreja. Isso não acontece só porque seguimos as orientações do Magistério da nossa Igreja. Temos um jeito católico de ser, de sentir, que faz parte de nós e influencia a leitura. Há toda uma história por trás disso. Não é de espantar, portanto, que pessoas de Igrejas deferentes destaquem coisas diferentes na Bíblia.
O texto sagrado nasceu em experiência comunitária: foi esse o processo que o próprio Deus escolheu para se comunicar. É função do texto alicerçar e vivificar a comunidade dos que creem, fazendo crescer a unidade da Igreja, que não é uniformidade, mas deriva de um espírito básico de comunhão. O Magistério da Igreja, a serviço da Palavra, é uma ajuda preciosa também para o modo de ler a Bíblia. A orientação mais oficial da Igreja sobre a maneira de ler a Bíblia está no documento do Concílio Vaticano II – Dei Verbum (A Palavra de Deus), no Documento “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, da Pontifícia Comissão Bíblica e na Encíclica “Verbum Domini”.
Na apresentação do Documento “A interpretação da Bíblia na Igreja”, o papa João Paulo II nos lembra: “O modo de interpretar os textos bíblicos para os homens e mulheres de hoje tem consequências diretas sobre a relação pessoal e comunitária dos mesmos com Deus e está também estreitamente ligado à missão da Igreja. Trata-se de um problema vital…”
É fácil perceber que a Bíblia feita para iluminar a vida e construir um mundo melhor, pode ser lida também de modo a produzir resultados preocupantes. Com a Bíblia na mão já foram alimentadas grandes vidas generosas a serviço do próximo e da humanidade, mas também já foram justificados violências, omissões e preconceitos.
Um tipo de leitura que costuma levar a resultados indesejáveis é a chamada leitura fundamentalista. O já citado documento da Comissão Bíblica aponta como características de uma leitura fundamentalista:
-Recusa a levar em consideração o caráter histórico da revelação bíblica e a admitir as limitações da linguagem dos autores humanos do texto;
-Tendência a interpretar como histórico o que não tinha intenção de o ser;
-Desconsideração da possibilidade de um sentido simbólico ou figurativo;
-Estreiteza de visão;
-Abordagem não-crítica de certos textos, usados para alimentar preconceitos;
-Desconsideração do desenvolvimento da Tradição.
O texto do documento se expressa assim sobre a leitura fundamentalista:
“A abordagem fundamentalista é perigosa, pois ela é atraente para as pessoas que procuram respostas bíblicas para seus problemas de vida. Ela pode enganá-los, oferecendo-lhes interpretações piedosas, mas ilusórias, ao invés de lhes dizer que a Bíblia não contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas. O fundamentalismo convida, sem dizê-lo, a uma forma de suicídio do pensamento. Ele coloca na vida uma falsa certeza, pois ele confunde inconscientemente as limitações humanas da mensagem bíblica com a substância divina dessa mensagem”. (Pontifícia Comissão Bíblica: A interpretação da Bíblia na Igreja. 7 ed. São Paulo: Paulinas, 2006)
A leitura fundamentalista é a mais imediata e, aparentemente, a mais fácil. Mas o contato com a Bíblia completa trará questionamentos aos quais esse tipo de interpretação não responde bem. A mesma pessoa que a princípio achou segurança numa abordagem fundamentalista pode ficar aliviada quando é apresentada a outro caminho. Evidentemente isso deve ser feito com cuidado pedagógico e respeito pela relação emocional que cada um tem com o texto bíblico. Avanços serão feitos progressivamente, sem saltos, ouvindo os sentimentos das pessoas e dosando o que pode ser apresentado em cada etapa. O maior erro do fundamentalismo é confundir a verdade da Bíblia com verdade histórica ou científica.
*(Conf. CNBB.Crescer na Leitura da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2003).
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