Uma maneira “própria” de falar do humano
Corpo-alma; espírito-matéria; mundo-igreja; mente-coração; natureza-graça; céu-terra; homem-Deus. Estes binômios na cultura ocidental, quase sempre são vistos como opostos. Entretanto, segundo o testemunho que temos da Revelação, as realidades às quais se referem estão longe de constituírem entre si uma contradição. Alude, sim, cada termo a uma dimensão singular da existência humana em sua constituição firmemente transcendental, que conduz a criação e Deus mesmo para além de si.
Essa percepção pode ser conferida na própria designação do ser humano: ele é corpo. Não “possui” um corpo; Ele é alma. Não “contém” uma alma; Ele é espírito. Não “tem” um espírito. Estas três palavras estão marcadas pela compreensão grega do ser humano: soma, psique, pneuma, respectivamente. E mesmo que se mantenha a perspectiva original dessas palavras, presente na cultura e religião hebraica (de onde surge nossa fé cristã), todo o cuidado é pouco para não confundir os conceitos numa e noutra cultura.
Assim, na Sagrada Escritura, conferindo com a maneira particular do povo semita experimentar e exprimir-se sobre a vida humana em sua complexidade, esses conceitos estão atrelados à dinâmica de sua existência no mundo. Assim, para dizer “corpo” falam em “carne”; para afirmar a alma, dizem “garganta” e quando desejam abordar algo sobre o “espírito” costumam referir-se à “respiração”. Assim, para soma, temos basar; para psique, temos nefesh; para pneuma, temos ruah. Evidentemente, aqui estamos simplificando as coisas. Pois o ser humano é também coração (leb) e rins (kyliâ).
A espiritualidade
A espiritualidade não tem a ver apenas com aquilo que ‘não é material’ no ser humano, ou com realidades ditas ‘sobrenaturais’, como se houvesse uma oposição entre Deus e mundo. Antes, a palavra espiritualidade estará ligada a outros conceitos, numa perspectiva mais bíblica.
Para compreender melhor isso, é preciso dar uma olhada em alguns trechos da Sagrada Escritura em que se fala de ‘espírito’. Uma vez que o tema é bastante amplo, tomaremos por referência o texto de 1Ts 5,23. Nele encontramos a síntese da antropologia bíblica do Novo Testamento, no que se refere à ‘constituição’ do ser humano: “e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo, sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.”
Primeiramente, note-se que a estrutura da oração traz a designação ‘espírito, alma e corpo’ como aposto, no intuito de caracterizar ou explicitar o que significa ‘ser inteiro’. A pessoa humana ‘é’ espírito-alma-corpo. Para ser ‘completa’, para ser ‘pessoa’, para estar ‘intacto’ ou ‘íntegra’ do ponto de vista constitutivo, estas três dimensões precisam ser consideradas. Não são ‘partes’ ou ‘seções’ do ser humano. Mas aspectos distintos a partir dos quais a pessoa pode ser vista. Correspondem, exatamente, à perspectiva bíblico do ruah-nefesh-basar.
O segundo elemento importante se refere ao campo de atuação do Espírito de Deus. A santificação está destinada ao ser humano na perspectiva da integralidade de seu ser. Isto é, Paulo utiliza-se da terminologia grega, mas emprega a mentalidade semita em sua compreensão da ação de Deus em relação ao ser humano. Assim, abre-se o conceito cristão de espiritualidade, que não está ligada apenas ao ‘espírito’ humano, mas à ação de Deus que alcança a pessoa inteira, na completude de seu ser, conforme sua existência no mundo.
Para falar corretamente de ‘espiritualidade’ será necessário recorrer a uma outra terminologia que talvez resguarde o sentido apontado acima: vida segundo o Espírito. Ou seja, quando dizemos da ‘espiritualidade cristã’ estamos nos referindo ao modo concreto, real, histórico, existencial de viver conforme o Evangelho. Isso atinge toda a complexidade da trama de nossa existência como seres criados e postos no mundo para o diálogo com Deus.
Padre Márico Pimentel, é especialista em Liturgia pela PUC SP ,mestrando em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia(Faje / Capes), via Catequese Hoje
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