A dificuldade da moderna historiografia é a sua recusa em reconhecer a superioridade da base histórica do cristianismo, tal como o conhecemos, bem como o fundamento bíblico sobre o qual está edificada a pessoa de Jesus, em contraposição ao conjunto de informações de tantos outros personagens aceitos como históricos, apesar de pautados somente em indícios. Os escritos do Segundo Testamento são o testemunho autêntico da caminhada histórica de uma comunidade, embasada em fatos e acontecimentos vividos por um homem-Deus: Jesus Cristo.
Percebemos nos relatos dos Evangelhos que em Jesus interagem harmoniosa e, paradoxalmente, a humildade e a sublimidade, o humano e o divino. Nele, a humanidade é o portal de entrada para a divindade; o transcendente que se manifesta no meio terreno, numa integração de reconhecimento e alteridade. Envolver Jesus com auréolas ou magnanimidade celestes seria privá-Lo do mais humano, pois o divino irrompe exatamente por meio de Seus passos terrestres. Sua filiação divina não o retira do tempo e do espaço, nem o torna distante do comum dos mortais; ao contrário, solidariza-o em amorização com todos, sem exceção.
O Deus Criador se fez um ser humano, criatura: chorou, sorriu, alimentou, sofreu, amou, compartilhou de todos os sentimentos, fraquezas e grandezas humanas. Sendo homem, evidenciou Deus; sendo Deus, proclamou uma humanidade que transcende a matéria e nasce no espírito: o amor ágape da autodoação. Sua humanidade semeia a fé por Sua divindade; mais do que conflitivas, a humanidade e a divindade são completivas. O astrônomo e pensador Galileu Galilei nos deixou uma sábia reflexão sobre o desprendimento divino: “Todo homem quer ser rei; todo rei quer ser Deus; só Deus quis ser homem.”
A presença de Jesus no contexto histórico da humanidade veio mostrar que todos nós podemos nos tornar divinos. Mas o caminho de nossa divinização exige de nossa parte a mais profunda humanização. É difícil para alguém perceber que Sua proposta de amor, perdão, justiça, igualdade e fraternidade encontrou uma grande resistência, justamente por parte daqueles que falam e agem em nome de Deus. Ele fez, antes de tudo, um enfrentamento religioso com as autoridades religiosas de Sua época, mas também estremeceu os acomodados e injustos alicerces sociais e políticos instalados.
Carregar a cruz, como escolha no caminho de Jesus, é abraçar a responsabilidade da missão que ele próprio aceitou. Sua adesão ao compromisso do projeto de vida plena não o desviou das dificuldades que podiam ser modificadas, mas que não seriam extintas. Carregar a cruz foi romper com os milênios de animalidade sedimentada na estrutura da alma humana, principiando acender a luz pela fidelidade em servir e amar incondicionalmente. Não recebemos a redenção por intermédio de nossos méritos, mas em razão da pura misericórdia que Deus nos concedeu.
No empreendimento histórico que está sendo analisado, observamos que o judaísmo não era somente uma religião, mas uma estrutura sagrada com bases em ligações hierárquicas, econômicas e de direito social. Distanciando-nos do sentido moderno da religião, o judaísmo era uma estrutura de sacralidade familiar, em que os padrões existenciais de conduta formatavam as relações interpessoais na morada judia.
Assim sendo, nesse contexto, em um momento de intensa desintegração social, que se distanciava de uma economia de subsistência familiar para uma nova economia mercantil, o “evento Cristo” aconteceu para conduzir um movimento messiânico, especialmente interessado na comunhão de todos, principalmente junto aos excluídos sociais; essa movimentação implicou uma ruptura com a estrutura de sacralidade familiar judia, que assim marcou toda a Sua caminhada.
As afirmações de que os judeus eram intransigentes, defensores de um Deus caracterizado pela falta de misericórdia, são historicamente equivocadas. Os judeus daquela época, de uma maneira geral, eram partidários de uma ordem social justa e exigente, ao encontro da conformidade da lei mosaica relacionadas ao Templo e ao sagrado. Nessa perspectiva, Jesus não aceita as normas tradicionalistas promulgadas pelas autoridades religiosas, buscando inserir na comunidade os marginalizados e párias excluídos, que eram abundantes naquele momento de intensa crise econômica, cultural e familiar. Dessa maneira, Jesus desponta como um homem conflituoso e perigoso em face da ordem religiosa e social vigentes. Exatamente por isso foi rejeitado e condenado pelas autoridades como “subversivo”.
Ao refletirmos sobre as atitudes de Jesus, reconhecemos o melhor de nós mesmos enquanto criaturas criadas, sustentadas e habitadas por Deus, já que todos nós temos a nossa chance de progredir na consciência do bem, pois nascemos pelo sopro divino para progredir, para sermos melhores do que jamais fomos. Essa é a ordem natural que Jesus aponta em Sua caminhada redentora. Somos parte de Deus, temos as virtudes e as qualidades divinas em nosso interior, portanto, há que se compartilhar esses dons com todos, por todos e por nós mesmos.
Não há como se aproximar de Jesus sem sentir-se atraído e fascinado por Sua pessoa, pelo carinho, pela delicadeza e ternura com que trata os outros, independentemente de seu gênero, etnia ou religião. O que importa é o contato vivo com sua pessoa, sem cair em abstrações metafísicas ilusórias ou analgésicas, pois o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana. A transcendência e a ação caminham conectadas ao plano salvífico proclamado na encarnação.
A fé em Jesus Cristo não deveria limitar-se a uma simples confissão doutrinal da Sua divindade, muito menos o conhecimento de Jesus se limita ao conhecer exterior e racional de Sua pessoa. Crer em Cristo de maneira concreta é viver como cristão, no seu seguimento completo ao projeto de Deus para a humanidade. A fé nesse homem só pode ser entendida como vida configurada segundo o seu evangelho, numa aderência existencial à sua pessoa e ao reino por ele proclamado, como resposta ao sentido da existência humana.
Jesus foi um homem de extraordinários dons, influenciando a comunidade de Seu tempo, partindo da periferia da Galileia em direção ao centro social e religioso: Jerusalém. Os “milagres” ou “sinais” são o gérmen da Sua vida, que são reconhecidos por muitos e renegados por outros tantos, mas essencialmente compreendidos por seus discípulos como compromisso de vida e liberdade aos excluído e oprimidos, ou seja, como um sinal da chegada do Reino de Deus. A interpretação dos sinais (milagres) apontados em Jesus pode variar, mas eles são o pano de fundo de qualquer pesquisa em todos os tempos. A Palavra encarnou na história, tornando-nos assim partícipes da gloriosa caminhada salvífica.
Referências:
Por Márcio Elias
Comments0