Paraná, 1993. A pediatra Zilda Arns (1934-2010) voltava de Florestópolis, município localizado a 453 quilômetros de Curitiba, quando desembarcou em Londrina. Foi comemorar os 10 anos de fundação da Pastoral da Criança, em 1983. No aeroporto da cidade, o mau tempo provocou o atraso de alguns voos e o cancelamento de outros. No saguão, enquanto esperava a situação voltar ao normal, a coordenadora nacional da Pastoral da Criança conheceu e fez amizade com o geriatra João Batista Lima Filho, então presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), do Paraná. Entre uma conversa e outra, Zilda Arns comentou que, durante as visitas a crianças e gestantes, os agentes pastorais eram, muitas vezes, sabatinados por idosos sobre problemas típicos da velhice, como insônia e hipertensão, mas, que, na maioria dos casos, eles não sabiam o que responder. Foi quando João Batista admitiu que, há tempos, a SBGG se perguntava sobre como poderia ajudar a tirar dúvidas da população brasileira que, já naquela época, dava sinais de que estava envelhecendo. Foi ali, no aeroporto de Londrina, que o semeador saiu a semear a semente da Pastoral da Pessoa Idosa (PPI).
Curitiba, 2024. No próximo dia 5 de novembro, a Pastoral da Pessoa Idosa completa 20 anos de existência. Apenas um ano depois de sua fundação, em 2005, a pastoral já contava com 3,6 mil líderes voluntários para atender 31,6 mil pessoas idosas. Hoje, quase duas décadas depois, são 18,7 mil agentes para 64,7 mil idosos. Esses números, porém, não estão consolidados. Muitos agentes ainda não migraram para o novo Sistema de Informação e Gerenciamento da Pastoral da Pessoa Idosa, o SIGPPI. “O número de pessoas idosas que recebem efetivamente a visita domiciliar mensal dos voluntários da pastoral é muito maior”, garante a atual coordenadora nacional, Sandra Regina Capana Michellim. Ao lado de Dom José Antônio Peruzzo, Sandra Regina compõe a atual diretoria. E um dos desafios enfrentados atualmente pela pastoral é o aumento do número de casos de violência contra pessoas idosas. “A cultura do descarte é, infelizmente, uma prática comum em nossa sociedade. O Papa Francisco aponta alternativas para mudar essa triste realidade. Uma delas é a fraternidade. Precisamos nos tornar pessoas mais fraternas, acolhedoras e disponíveis”, afirma Sandra Regina.
O aumento da violência contra pessoas idosas no Brasil pode ser traduzido em números. Segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), o país registrou, em 2022, 95,9 mil denúncias de violência contra idosos. Um ano depois, esse número saltou para 143,5 mil. Um aumento de quase 50%! Só nos primeiros quatro meses de 2024, o MDHC contabilizou 57 mil denúncias contra pessoas idosas. É um número 33% maior do que o registrado no mesmo período de 2023: 43 mil. A que o ministério atribui esse aumento de 14 mil casos? Quem responde é o secretário nacional dos Direitos da Pessoa Idosa, Alexandre da Silva. “São três fatores: a eficácia do Disque 100, a repercussão do Junho Violeta e o aumento do número de casos de violência contra a pessoa idosa propriamente dito”, detalha o doutor em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). O Disque 100 é o principal canal de denúncia de violação de Direitos Humanos existente no Brasil. O serviço funciona 24 horas, incluindo sábados, domingos e feriados, e as ligações podem ser feitas, gratuitamente, de qualquer telefone fixo ou móvel.
Só em abril de 2024, o Disque 100 registrou 56,4 mil denúncias – 15,5 mil delas contra a pessoa idosa. Em geral, as denúncias contra a pessoa idosa ocupam sempre o segundo lugar no ranking, atrás somente das denúncias contra crianças ou adolescentes. O serviço contabiliza, ainda, denúncias contra a mulher, cidadão, família ou comunidade, pessoas com deficiência, em restrição de liberdade, população LGBTQIA+ e em situação de rua. Já o mês de junho, batizado de Junho Violeta, é considerado o mês de conscientização sobre a violência contra a pessoa idosa. O tema da campanha do ano passado foi “Assim você me vê?”. No vídeo da campanha, veiculado no rádio e na TV, são apresentados ao público alguns tipos de violência, como o abandono (“Faz anos que ninguém vem, ninguém liga, é como se eu já tivesse morrido”), a exploração financeira (“Só tenho dívidas, me aplicam golpes, minha família tira tudo de mim”) e agressões físicas (“Vivo trancada, vivo apanhando, vivo sonhando com uma vida diferente”). “O número de denúncias aumentou porque as pessoas idosas, cientes de seus direitos, estão se sentindo encorajadas a denunciar mais”, acredita Sandra Regina, da PPI.
O site do ministério lista nove tipos de violência. Abandono, violência física e patrimonial são apenas três delas. Há mais seis: violência psicológica, institucional e sexual, negligência, abuso financeiro e discriminação. “A física ainda é o tipo mais comum. Mas há outros que, muitas vezes, o próprio idoso não sabe que é. Chamá-lo por um nome de que ele não gosta é um exemplo de violência psicológica”, afirma Alexandre da Silva, do MDHC. A física é o tipo mais “visível” – deixa hematomas pelo corpo. Já a psicológica é do tipo “invisível”. Em geral, insultos como “Você não serve para nada!” ou “Você só me dá trabalho!” passam despercebidos. Outro exemplo é o abuso financeiro: não deixar que o idoso, em pleno gozo de suas faculdades mentais, administre o próprio dinheiro. “Os responsáveis pelo idoso são negligentes quando deixam de oferecer cuidados básicos, como higiene, saúde e proteção. E a forma extrema de negligência é o abandono. Acontece quando há ausência ou omissão de socorro”, explica a advogada Maria Luiza Póvoa Cruz, presidente da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM).
A coordenadora nacional da Pastoral da Pessoa Idosa (PPI) garante que os 18,7 mil agentes estão capacitados para identificar eventuais casos de violência em suas visitas pastorais. E o que fazer numa situação dessas? “Agir silenciosa e discretamente para não levantar suspeitas e garantir a segurança do idoso”, responde Sandra Regina. O Disque 100 é apenas um dos muitos canais de denúncia para a população. Há outros. Como as delegacias de polícia (e não apenas as especializadas no atendimento à pessoa da terceira idade) e os conselhos municipais de defesa dos direitos da pessoa idosa. Para identificar eventuais casos de violência, a assistente social Marisa Accioly, especialista em gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), dá algumas dicas, como escutar atentamente a pessoa idosa e prestar atenção às mudanças de comportamento. “Se o idoso antes falante agora anda meio calado, olha para baixo quando fala e quase não responde perguntas, é sinal de que algo errado pode estar acontecendo”, alerta Marisa Accioly, da SBGG. “Muitas vezes, ele se sente intimidado em fazer a denúncia porque vive no mesmo local que seu agressor”.
Sim, a situação é mais grave do que parece. Na maioria das vezes, quem comete a violência contra o idoso não é, ao contrário do que se imagina, o cuidador que a família contratou para cuidar dele. É a própria família! Essa foi a conclusão a que chegou o advogado Vicente de Paula Faleiros em 2007, por ocasião da publicação do livro Violência Contra a Pessoa Idosa. Depois de analisar 19 mil ocorrências registradas em 27 capitais, o autor chamou a atenção do leitor para um dado estarrecedor: os principais agressores eram seus filhos e filhas. “No Brasil, os idosos sofrem preconceito e discriminação de todos os lados: em casa, no trânsito e até do próprio Estado!”, lamenta Vicente Faleiros. “O pior cenário é quando o idoso é obrigado a morar com o agressor e, não bastasse, ainda precisa atender suas demandas de usuário de álcool e drogas”. Em 2019, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), coordenado pela pesquisadora Cecília Marília de Souza Minayo, revelou que seis em cada dez casos de violência contra a pessoa idosa ocorrem dentro de casa. E mais: dois em cada três agressores eram filhos e cônjuges. “Família violentas colhem violência!”, observou Minayo.
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