Jesus gostava de vinho. Não só de beber, mas de mencionar a bebida em suas pregações. No Evangelho de São João, por exemplo, Ele afirma que é a verdadeira videira e os discípulos são os seus ramos: “Quem permanece em mim, e eu nele, dará muito fruto” (Jo 15,5), diz. Em Marcos, explica que o vinho novo se põe em odres novos, ou seja, em recipientes feitos de couro de cabra ou de carneiro, usados para transportar água, leite e vinho: “Ninguém põe vinho novo em odres velhos, pois o vinho arrebenta os odres, e se perdem os odres e o vinho” (Mc 2,22), adverte. Na última ceia, ao instituir a Eucaristia, oferece aos discípulos seu corpo como comida e seu sangue como bebida: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue terá a vida eterna” (Jo 6,54). Isso sem falar nas bodas de Caná. Foi lá que, a pedido de Maria, sua mãe, realizou seu primeiro milagre: transformar a água em vinho. Não um vinho qualquer, mas um vinho de boa qualidade, como diria o cerimonialista do casamento da Galileia.
Por que os noivos, na falta de vinho, simplesmente não ofereceram outra bebida aos seus convidados? Quem responde é o filósofo Fernando Altemeyer Júnior, doutor em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP): “Naquele tempo, as festas judaicas duravam sete dias. Sem vinho, não havia festa. A videira é o símbolo do povo que produz fruto e alegria. Não por acaso, as videiras eram muito bem cuidadas, podadas com regularidade e protegidas de animais e intempéries. Sem vinho, ou com vinho de baixa qualidade, o casamento seria uma tragédia. Jesus dá fim à tristeza e devolve a alegria ao povo de Deus”.
Jesus bebia moderadamente, mas, houve quem, no Antigo Testamento, chegasse a ficar embriagado de tanto beber. Noé, o homem que salvou a humanidade do dilúvio ao construir uma arca, foi um deles: “Tendo bebido vinho, embriagou-se e ficou despido no interior da tenda”, narra o livro do Gênesis no capítulo 9, versículo 21. No caso de Ló, o sobrinho de Abraão, sua bebedeira foi involuntária. Foram suas filhas que, ao cair da noite, embebedaram o pai para se deitar com ele e, assim, conseguirem engravidar. A mais velha deu à luz Moab e a mais nova pariu Ben-Ami. Altemeyer cita outros casos de beberrões bíblicos: Nabal, Amnon, Assuero…
O vinho nas Sagradas Escrituras, a propósito, é expresso por duas palavras de origem hebraica: tirosh, que designa o vinho não fermentado, e yayim, que se refere ao fermentado. Em sessenta passagens, a bebida feita à base do suco da uva é descrita como algo negativo: causa de desavença, por exemplo; em apenas dezessete é vista como algo positivo, motivo de celebração. Outra bebida alcoólica citada na Bíblia é o shekar (cerveja), 21 vezes no Antigo Testamento e apenas uma no Novo Testamento. “Adventistas, muçulmanos e budistas, entre outros grupos religiosos, proíbem o uso de todo e qualquer tipo de bebida alcoólica destilada ou fermentada. Já os cristãos prescrevem moderação e, em alguns casos, abstinência. Para os sacerdotes que são alcoólatras é possível celebrar a santa Missa com suco de uva natural”, explica o professor da PUC-SP.
“BEBER NÃO É PECADO. PECADO É BEBER EM EXCESSO”
O Catecismo da Igreja Católica (CIC) faz pelo menos duas referências ao tema. A primeira é “A vida e a saúde física são bens preciosos doados por Deus. Devemos cuidar delas com equilíbrio, levando em conta as necessidades alheias e o bem comum” (2288); a segunda; “A virtude da temperança manda evitar toda espécie de excesso, o abuso da comida, do álcool, do fumo e dos medicamentos” (2290). Ao ser indagado sobre se o alcoolismo é um pecado a ser perdoado ou uma doença a ser tratada, o Padre Robério Camilo da Silva, assessor eclesiástico da Pastoral da Sobriedade, uma das 24 ações pastorais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), responde: “Um misto dos dois”. E prossegue: “O ato de beber, em si, não é pecado. O pecado está no uso exagerado do álcool e em suas consequências. São muitas as desgraças que o uso abusivo do álcool pode trazer para o alcoólatra e sua família”.
Padre Robério, que também é pároco da Igreja Nossa Senhora da Conceição, em Natal (RN), lembra que, desde 1967, o alcoolismo é classificado como uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, por essa razão, apenas rezar, embora importante e necessário, não é suficiente para salvar a vida de um dependente químico. “Recorrer à ajuda de um profissional da área da saúde é fundamental. Não podemos esquecer que estamos lidando com uma doença. Uma doença que mata. Mas, antes de matar, humilha o doente e destrói sua família”, alerta o sacerdote.
“TUDO AQUILO QUE SEPARA O HOMEM DE DEUS DEVE SER EVITADO”
A Pastoral da Sobriedade, que tem atualmente Dom Nélio Domingos Zortea, bispo de Cruz Alta (RS), como bispo referencial, nasceu de um desafio proposto pelo Papa São João Paulo II (1920-2005): lutar contra o mal da dependência química que assola tantas famílias de nossa sociedade. “A droga é um mal e ao mal não se dá trégua”, declarou, à época, o Santo Padre. Em maio de 1998, durante a 36ª assembléia-geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Dom Irineu Danelon, atual bispo emérito de Lins (SP), propôs a criação da Pastoral da Sobriedade, com cinco frentes de atuação: prevenção, intervenção, reinserção familiar e social e atuação política. Atualmente, a Pastoral da Sobriedade dispõe de 48 mil agentes capacitados. Só em 2023 foram capacitados 1.660 novos agentes e realizados 6.729 atendimentos. São, ao todo, 1.452 grupos de autoajuda espalhados por paróquias e comunidades do Brasil inteiro.
Além dos grupos de autoajuda, os dependentes químicos têm à sua disposição comunidades terapêuticas como a Fazenda da Esperança, em Guaratinguetá (SP), a Comunidade Vida Nova, em Curitiba (PR), e o Instituto Padre Haroldo, em Campinas (SP), entre outras. “O ser humano deve buscar sempre a vontade de Deus. Tudo aquilo que separa o homem de Deus deve ser evitado”, afirma Padre Luiz Menezes, um dos quatro presidentes da Fazenda da Esperança. “Nosso método de acolhimento contempla três pilares: trabalho, convivência e espiritualidade. O trabalho ensina o acolhido a ser responsável, o estilo de vida na comunidade é pautado pela solidariedade e a espiritualidade ajuda o indivíduo a encontrar o sentido da vida. Em alguns casos é necessário, sim, o acompanhamento de um psicólogo para ajudar o acolhido a se conhecer melhor e, desse jeito, evoluir em sua caminhada”, explica o sacerdote.
“QUEM PAROU DE BEBER NÃO SE ATREVE A DIZER QUE ESTÁ CURADO SOB O RISCO DE REPETIR O ERRO”
O psiquiatra Jorge Jaber, diretor técnico da Clínica Jorge Jaber, no Rio de Janeiro (RJ), alerta que não existe limite seguro para o consumo de álcool. Diz mais: o consumo moderado de hoje, se não tomar cuidado, pode se transformar no consumo abusivo de amanhã. Segundo ele, há três importantes sinais de alerta: o primeiro é a quantidade. “Em vez de tomar um chope ou cerveja, o indivíduo começa a beber dois, três, quatro…”, dá um exemplo. O segundo é a frequência. “A princípio, só bebe aos sábados e domingos, mas, depois de algum tempo, passa a beber às segundas, terça, quartas…”, continua. O terceiro é a preferência. “Troca compromissos importantes, como trabalho ou lazer com a família, para beber, sozinho ou com os amigos”, adverte.
“Muitos dependentes químicos alegam que ‘só bebem socialmente’. Mas, afinal, por que eles precisam beber quando estão em eventos sociais?”, provoca o médico que, em 2004, criou o bloco carnavalesco Alegria Sem Ressaca para provar que é possível, sim, brincar a folia sem consumir álcool. “Bebedores compulsivos demoram a admitir que têm um problema. Bebem demais não porque estão doentes, mas porque perderam um grande amor, estão com problemas no trabalho ou seu time vai mal no campeonato. Desculpas não faltam”, adverte o médico.
O tratamento contra o alcoolismo concilia psicoterapia e medicação, mas, não dá para falar em cura, apenas controle dos sintomas. “Quem parou de beber não se atreve a dizer que está curado sob o risco de repetir o erro. Quem já levou mordida de cobra sabe bem do que estou falando. Não pode ver uma que sai de perto rapidinho”, explica Jaber.
“O ALCOOLISMO É UMA DOENÇA PROGRESSIVA, INCURÁVEL E FATAL”
A Comunidade Vida Nova não atende só leigos e leigas, acolhe também padres, freiras e seminaristas. Sim, isso mesmo! Padres, freiras e seminaristas não estão livres dos efeitos nefastos do álcool. “A solidão é um dos principais fatores de risco do alcoolismo. Os padres diocesanos, em geral, vivem sozinhos. Mesmo os religiosos que vivem em comunidade quase não compartilham seus problemas. O álcool é uma válvula de escape”, explica o Irmão Alberto Malheiros Júnior, coordenador da instituição. “Na maioria das vezes, eles estão tão atarefados ajudando os outros que esquecem de ajudar a si mesmos”, continua.
A Comunidade Vida Nova foi fundada em 1981 pelo Padre Guilherme Tracy (1929-2018), ele próprio uma vítima do alcoolismo. Ao longo desses 43 anos, a comunidade ajudou a recuperar mais de 1.500 religiosos. Um deles pediu para não ser identificado. “Levei dez anos para admitir meu vício. ‘Só bebo para relaxar’, dizia, ‘paro quando quiser’. Estava enganado! É uma doença progressiva, incurável e fatal”, lamenta o sacerdote. “Durante cinco anos, celebrei embriagado. Bebia para perder o medo de falar em público e bebia para esquecer das bobagens que falei na homilia. Sentia vergonha de mim mesmo”. Natural do Espírito Santo, ele nasceu no dia 12 de novembro de 1980. Quarenta anos depois, ingressou na comunidade no mesmo dia e mês: 12 de novembro de 2020. “Nasci de novo. Ser alcoólatra é um perigo para nós mesmos e para os outros. Peça ajuda quanto antes. Quanto mais cedo você procurar ajuda, mais rápido se livrará do pesadelo e voltará a sonhar”, conclui o padre.
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