1. Matrimônio e família em transformação
Nem o casal nem a família vivem em um vácuo. Os membros de cada um desses pequenos núcleos, além de interagirem entre si, estão inseridos numa sociedade, que, por sua vez, se encontra em constante transformação. No intercâmbio com as estruturas socioeconômicas, culturais e religiosas, também as próprias pessoas estão sendo modificadas. E as pessoas, por sua vez, mudam a sociedade.
É à luz desse complexo contexto que a situação do casal e da família tem de ser considerada. Caso realmente queiramos achar caminhos para amenizar a atual crise do matrimônio, devemos refletir com base em concepções dinâmicas de matrimônio e família. Estas realidades se encontram hoje num processo de permanente transformação e cada vez menos se apresentam como fenômenos uniformes e imutáveis.
Ao falar da família, seria, sem dúvida, muito mais fácil recorrer ainda hoje ao modelo da “tradicional família nuclear”. Este começou no Ocidente, a partir do Iluminismo do século XVIII, e consolidou-se no século XIX. Permaneceu intato até os anos 60 do século XX e continua sendo a forma de organização familiar predileta da Igreja.
Durante as turbulências políticas e sociais dos anos 60 e 70 do século XX, porém, são questionados cada vez mais as normas e os valores tradicionais. A acelerada industrialização e a urbanização mudam a estrutura social e também a divisão do trabalho. Com a crescente profissionalização e emancipação da mulher, altera-se a sua posição na sociedade e no casamento. Começa a surgir nova compreensão do matrimônio que acentua a posição igualitária da mulher. Esta, cada vez mais, se torna parceira. Além disso, valoriza-se progressivamente o amor íntimo e pessoal entre os cônjuges. Como reflexo desses novos fenômenos, verificam-se mudanças fundamentais na convivência matrimonial e familiar. A título de exemplo, mencionamos em seguida algumas das mais significativas:
— Em média, as pessoas se casam cada vez mais tarde:
1991 Homens – 27 anos Mulheres – 24 anos
2007 Homens – 32 anos Mulheres – 28 anos (Fonte: IBGE)
— Aumentou o número das uniões consensuais (nem casamento civil nem religioso):
1998 21%
2007 31%
— Caiu a taxa de fecundidade no Brasil:
1960 6,3 filhos por mulher fértil
2004 2,3 filhos por mulher fértil
— Aumentou em média o tempo da convivência matrimonial (50 anos), em virtude da maior expectativa de vida dos cônjuges (72,7 anos em média em 2007 — IBGE).
— Ao mesmo tempo, cresceu significativamente o número das separações e divórcios entre cônjuges casados há muitos anos.
Essas mudanças não são fenômenos isolados. Fazem parte de um contexto mais amplo de transformações. Com a individualização e a pluralização dos valores, surgiram novos modelos de convivência. Estes, cada vez menos, se orientam pelos ensinamentos das autoridades estatais ou eclesiais.
Aumentou o número dos divorciados (de 2006 até 2007 em 11% — IBGE) e dos separados (de 1991 a 2007 em 12,3% — IBGE). Ao mesmo tempo, cresceu a proporção dos casamentos em que ao menos um dos cônjuges era divorciado ou viúvo (1997: 9,9%; 2007:16,1% — IBGE).
Assim surge, entre muitos outros modelos, a assim chamada “nova família”. Ela se caracteriza pelo fato de cada um dos parceiros trazer dos seus casamentos anteriores os respectivos filhos. Tal quadro familiar, que já não é simples, pode tornar-se mais complicado ainda com o nascimento de novos filhos do atual casal. Desse modo, verificam-se, dentro da mesma união, “filhos meus”, “filhos teus” e “filhos nossos”.
Esses fenômenos são típicos para a complexidade das questões matrimoniais e familiares nos dias de hoje. A Igreja se encontra assim diante do enorme desafio de enfrentar os problemas dessa nova realidade. Ela, que sempre defendeu a família como “Igreja doméstica”, como fundamento essencial para a educação e a convivência cristã, vê-se confrontada com um fato muito perturbador: a tão acentuada hegemonia do tradicional modelo matrimonial e familiar existe cada vez menos. Em vez disso, surgiram modelos alternativos, muitos dos quais em clara contradição com os ensinamentos dogmáticos da Igreja. Cresce o número dos católicos que vivem na assim chamada “situação irregular”; e os alertas do clero sobre tais problemas em geral não surtem o efeito desejado. Os fiéis se fecham aos apelos e muitas vezes até se afastam da Igreja.
O que fazer diante de tal situação?
Regras, leis, proibições e ameaça com sanções se mostraram pouco eficazes para a solução dos problemas existentes. Elas não conseguiram evitar o aumento progressivo da discrepância entre o matrimônio ideal, apresentado pela Igreja, e a realidade vivida por um número cada vez maior de pessoas. Diante desse fato, a Igreja se vê confrontada com desafios inquietantes e novos.
2. Não podemos fechar os olhos diante dos novos desafios
No atual contexto sociocultural, a convivência matrimonial tornou-se mais complexa e mais difícil. Vários fatores são responsáveis por esse fato, mas um deles é, sem dúvida, a mudança nas expectativas quanto ao próprio matrimônio. No passado, esperava-se que o casamento, além de possibilitar a construção de uma família, desse segurança econômica e social. A convivência foi regulada por meio de um contrato com direitos e deveres claramente definidos.
Hoje, porém, os casais que querem constituir família já não esperam do matrimônio primordialmente status social e segurança financeira. Além disso, já não se compreende o matrimônio como contrato pelo qual se pode garantir a estabilidade da convivência conjugal e familiar. Em vez, acentua-se a importância da realização de um relacionamento profundamente pessoal; a satisfação das mútuas necessidades afetivas e a formação de um núcleo íntimo de amparo que protege contra um mundo marcado pela competição e pelo anonimato. Compreender esse contexto se torna assim a precondição indispensável para o agir pastoral da Igreja.
Em geral, o sistema socioeconômico e o mundo do trabalho atual oferecem poucas oportunidades para a autorrealização. Muitas vezes, as pessoas fazem parte de um sistema funcional anônimo, que deixa espaço muito limitado para manifestações pessoais. Acentua-se a objetividade, a racionalidade e o intelecto dentro de um ambiente marcado pelas necessidades de agir com eficiência e competitividade total. Para ter uma compensação a esse contexto muitas vezes frustrante e totalmente racionalizado, as pessoas buscam um espaço que lhes permita a realização emocional. Elas, mais do que nunca, necessitam de um ambiente em que encontrem compreensão, proximidade afetiva e sentido da vida. Assim, esperam encontrar no matrimônio e na construção de uma família tudo que lhes falta na sociedade tecnocrata de hoje.
Contudo, construir um relacionamento profundo e uma vida familiar feliz não é fácil num contexto como o acima descrito, sobretudo quando as expectativas são exageradas. Além disso, há o problema de que, em termos de interação social, os cônjuges em geral são mal preparados para o desafio que começam a assumir.
Nas discussões sobre o papel da Igreja diante de toda essa nova situação, é essencial, primeiramente, tomar clara consciência da problemática. Só assim será possível, num segundo momento, adequar a ação às necessidades alteradas e às novas demandas dos casais de hoje e do futuro, a fim de fortalecer os laços entre os cônjuges e ajudá-los a lidar melhor com as dificuldades, que, em comparação ao passado, se tornaram muito mais complexas.
Para que tal ajuda se torne eficaz também no contexto atual, parece-nos fundamental começar com algo muito básico, que, todavia, muitas vezes foge da nossa atenção: devemos familiarizar os casais com a fascinante dinâmica da teologia matrimonial atual, que, no fundo, é muito pouco conhecida por grande parte dos que se casam ou já estão casados.
3. Familiarizar os casais com a dinâmica de uma teologia matrimonial atualizada
Um dos primeiros pressupostos para que o trabalho pastoral com casais realmente se possa tornar construtivo é conhecer a posição e as expectativas deles em relação à Igreja e aos seus representantes.
Em geral, esse quadro é bastante heterogêneo: as necessidades, sentimentos e atitudes dos casais variam muito. Pode ser constatado que, na sociedade contemporânea, existem claras tendências para uma volta ao sagrado. Muitas vezes, porém, trata-se de uma religiosidade que se distancia das tradicionais instituições eclesiais ou, além disso, caracteriza-se por atitudes bem críticas perante os pronunciamentos e os dogmas da instituição. No que diz respeito à questão matrimonial e familiar, isso significa que há muitas pessoas que se casam na Igreja e não obstante se opõem a certas diretrizes dessa Igreja. Elas frequentemente agem assim sem conhecer a imensa riqueza daquilo que a teologia matrimonial da Igreja elaborou nas últimas décadas. Concentram o seu enfoque em temas como a não admissão dos recasados ao sacramento da eucaristia ou nas questões da sexualidade e do controle de natalidade. Por não aceitarem a posição da Igreja nessas questões, sentem-se pouco compreendidas e tendem a reagir às propostas da instituição e dos seus representantes com preconceitos, medo e desconfiança.
Ao mesmo tempo, porém, conta-se um número crescente de pessoas que buscam na Igreja um lugar de segurança contra um mundo marcado por inseguranças. Estão à procura de diretrizes claras e verdades absolutas e prontas. Não raro, esperam dos sacramentos um poder mágico. Brigam às vésperas do casamento religioso como nunca — e pensam que, a partir da celebração do sacramento, todos os problemas se resolverão sozinhos.
Como lidar com essa diversidade de expectativas e atitudes dos casais? Como atender às necessidades dos críticos e dos revoltados? De que maneira reagir diante dos fiéis que esperam dos sacramentos soluções mágicas? E como lidar com aqueles que, nas suas expectativas em torno do matrimônio, já estão tão decepcionados, que, após pouco tempo, desistem do seu projeto de vida a dois? A consequência dessa desistência, em muitos casos, são sentimentos de culpa, raiva, fracasso e desespero, e essas emoções se tornam para muitos o motivo para afastar-se também da Igreja.
Em todos esses casos, trata-se de fenômenos, no fundo, muito trágicos. As pessoas fecham-se em si mesmas sem perceber que assim perdem uma das maiores oportunidades de sua vida. Isso porque, no seu fechamento, esqueceram-se ou talvez nunca se deram totalmente conta do profundo sentido daquilo que a Igreja acentua hoje sobre a união matrimonial: Deus chamou, e sempre de novo chama, os parceiros dessa união a realizar uma aliança toda especial com ele.
Essa aliança permite aos cônjuges construir um projeto de vida capaz de realmente dar sentido e felicidade plena à sua existência. Na teologia matrimonial contemporânea, a Igreja, no fundo, quer transmitir aos casais exatamente essa mensagem fascinante e fundamental!
Desde o Concílio Vaticano II até hoje, ela, nos seus documentos e na sua teologia matrimonial, deixa bem claro o que isso significa: é a boa-nova de que Deus acompanha o casal no seu caminho e fica junto a ele aconteça o que acontecer. No sacramento do matrimônio, Deus não estabelece apenas um contrato estático e inflexível; ele faz uma aliança com os cônjuges. Tal aliança, porém, significa que o próprio Deus se compromete com os cônjuges. Ele permanece ao lado do casal; está presente quando os cônjuges enfrentam as suas dificuldades e desafios e também quando erram e se perdem, quando se revoltam e até quando querem abandonar tudo. Ele é um Deus fiel, que ama e perdoa. Como na aliança com o povo de Israel, esse Deus não só acompanha, mas também fortalece os parceiros, para que sejam capazes de crescer por meio do processo dinâmico e evolutivo da vida em comum.
Tal processo, sem dúvida, pode ser difícil; ele permite, porém, que o ser humano desenvolva em liberdade as suas potencialidades, e isso também por meio dos próprios erros e acertos.
Mas Deus confia tanto no ser humano, que não apenas acompanha os cônjuges no seu projeto de vida. Ele, além disso, convida-os a colaborar num projeto maior: convida-os a participar na construção de um mundo melhor, denominado REINO DE DEUS.
À medida que os casais tomam consciência dessa sua vocação, conseguem sair de uma perspectiva puramente individualista e começam a enxergar a sua vida matrimonial num enfoque que, no fundo, abrange a história inteira do mundo. Como consequência de tal abertura, serão capazes de superar concepções estáticas que só paralisam e inspiram medo.
4. Superar concepções estáticas que paralisam e inspiram medo
É bom lembrar, nesse contexto, o que o teólogo holandês Edward Schillebeeckx já destacou desde os tempos do Concílio Vaticano II e também outros representantes da teologia atual acentuam: matrimônio é um processo que começa já bem antes de sua celebração social e que “no casamento socialmente reconhecido conhece um momento festivo de confirmação, mas depois, durante toda a vida, se deve desenvolver” (Baumann, 1988, p. 299).
É importante familiarizar os casais com o fato de que, na teologia matrimonial atual, realmente se fala do caráter processual do matrimônio. Muitos casais, porém, até hoje não se conscientizaram desse processo. Casam com expectativas enormes e muitas vezes irreais, pensando que os seus sonhos vão se realizar automaticamente por causa de seu amor. Outros, numa atitude até mágica, esperam que a celebração do sacramento realize quase por si mesma a transformação do seu relacionamento imperfeito. Uns e outros esquecem que esse matrimônio, descrito pela Igreja desde os tempos do Concílio Vaticano II em termos de “comunidade de amor” (GS 47), “comunidade profunda de vida e de amor” (GS 50) ou “comunhão de toda a vida” (GS 50), não se alcança tão facilmente. Chegar a uma convivência tão profunda e rica é resultado de uma caminhada de longos anos. É fruto de difícil alcance, realizável apenas por meio de um processo de aprendizagem. Tal processo inclui erros e acertos, avanços e recuos. Quem, no seu amor, espera o absoluto e exige a perfeição imediata se decepcionará. Sentir-se-á desiludido e talvez até culpado. A Igreja, com toda a razão, declara que o matrimônio é uma “união íntima, doação recíproca de duas pessoas” (GS 48). Mas muitos casais esquecem que aqui se fala de um ideal a ser alcançado e assim se decepcionam, porque o seu próprio casamento ainda está longe disso. Às vezes até se sentem fracassados no seu projeto de vida e desistem.
A todos eles é importante dizer que àquela situação ideal de uma “união íntima” só se consegue chegar no decorrer de longo processo de vida.
Na conscientização sobre esse fato, é importante que, nos pronunciamentos teológicos e pastorais da Igreja, se acentue o caráter evolutivo do matrimônio. Ser casado significa ser no caminho, implica aprender a conviver, a partilhar, a aceitar e a perdoar. Na paixão do amor romântico inicial, as duas pessoas vivem muitas vezes num estado de êxtase e de simbiose profunda. Idealizam a pessoa amada da mesma forma que a encontramos no livro bíblico do Cântico dos Cânticos: “Como és bela, minha amada, como és bela! (…) És toda bela, minha amada, e não tens um só defeito” (Ct 4,1.7). Semelhante declaração de amor, escrita mais de 2.400 anos atrás, em nada se distingue do estado de êxtase e transcendência detectável em declarações de amor de dois namorados de hoje. Mas tal encantamento não pode durar para sempre. No confronto com a dura realidade, ambos os parceiros, mais cedo ou mais tarde, se desiludem e se frustram.
Na primeira fase do assim chamado “amor romântico”, pensavam ter alcançado para sempre aquele estado de união profunda e absoluta. Todavia, quando o relacionamento entra em crise, os casais levam um choque que pode gerar profunda desilusão. Muitos já nem acreditam que seu amor é capaz de se transformar e se desenvolver, passando por outras fases até se aproximar realmente daquela convivência ideal, descrita pela Igreja como “íntima comunhão de vida e de amor” (GS 48). Uma comunhão profunda em que se recupera, em outro nível, o entusiasmo da paixão inicial e em que, ao mesmo tempo, se aceita e ama a outra pessoa em toda a sua imperfeição.
Como a evolução do amor passa por tais fases, o casal tem de ser preparado e assistido não apenas para a crise na fase inicial, mas também para todas as outras que surgirão no caminho. Numa sociedade que acentua o individualismo, pouco se aprende hoje sobre a interação entre duas pessoas e sobre a maneira de lidar com frustrações. Numa situação em que as expectativas e necessidades de cada um dos parceiros são enormes, as reações às decepções muitas vezes são radicais: vale o tudo ou nada. Não existe meio-termo. Com isso, se agrava o perigo de que aquilo que começou com muito entusiasmo e boa vontade termine no desespero, no fracasso, no fim de um projeto de vida e no afastamento da Igreja.
5. Acolher, servir e ajudar em vez de condenar
Para impedir tal quadro, é essencial que a Igreja acentue na sua pastoral a mensagem de que o casal está no caminho, mas, nesse processo, está sendo acompanhado e ajudado por ela. O casal deve sentir que tem alguém ao seu lado que compreende as suas dificuldades e não cobra com exigências rígidas aquilo que, no momento, parece-lhe impossível.
Tais exigências pastorais em nada estão em contradição com uma ética teológica. Ressalta-se hoje que a ética não pode ser reduzida a uma ética normativa: “Na busca da verdade ética, a teologia moral explora sobretudo espaços de liberdade e possibilidades do ser e do devir humano. Estes devem servir ao ser humano e ao êxito da sua vida. Não se trata de construir um fardo pesado para as pessoas” (Wonka, 2009, p. 188).
Aplicando essas palavras ao nosso tema, podemos dizer que os cônjuges, em vez de se sentirem pressionados e ameaçados, deveriam se sentir acolhidos em toda a sua imperfeição. O processo evolutivo “não é um processo de imprinting das regras e das virtudes através da modelagem, do ensino, da punição e da recompensa, mas um processo de reestruturação cognitiva” (Duska e Whelan, 1994, p. 103). Uma vez que ser casado significa muito mais do que o seguimento de leis e prescrições, os casais devem ser ajudados a desenvolver a sua capacidade para um amor íntimo e pessoal. Um amor capaz de superar todo egocentrismo e individualismo; em uma palavra, um amor responsável e solidário.
Para que tal desenvolvimento seja possível, a pastoral matrimonial deve oferecer mais oportunidades concretas de socorro e acompanhamento. Nisso podem ajudar as novas estratégias metodológicas elaboradas pela psicologia. Elas, também no âmbito da Igreja, revelaram-se muito eficientes no trabalho com casais, auxiliando-os no desenvolvimento das próprias faculdades e potencialidades, como a comunicação, a resolução de problemas e o entendimento empático.[1]
Mas, para construir um projeto de vida em comum, não basta desenvolver apenas as faculdades promovidas pela psicologia. Uma vida bem-sucedida a dois precisa também de uma base moral. E essa base, por sua vez, deve ser construída e fortalecida. Isso significa, na prática, que devem ser desenvolvidas virtudes como tolerância, solidariedade e fidelidade, além do pensamento crítico e criativo, do juízo moral e da capacidade de autorregulação (Carrecedo, 1999, p. 282).
Esse tipo de desenvolvimento, porém, não se realiza de maneira automática, e assim se abre mais um campo importante para o agir pastoral.
6. Acentuar potencialidades em vez de denunciar deficiências
Com essas novas estratégias, muda também o enfoque da pastoral matrimonial. Em vez de concentrar a atenção nas deficiências dos casais e na evitação de eventuais “desastres”, a Igreja ressaltará a importância do desenvolvimento das potencialidades existentes. Dessa maneira, ela não concentra o seu trabalho no combate a possíveis erros e fracassos. Em vez disso, acentuará nas suas atividades aquilo que é profundamente cristão: a imensa esperança, a profunda confiança nas potencialidades do ser humano. Assim como Deus, em sua aliança, confiou no ser humano, a Igreja acentuará, no seu enfoque, as potencialidades dos cônjuges.
A história da psicologia e da psiquiatria mostra como tal mudança de paradigma pode ser construtiva. No passado, o seu trabalho partiu em geral das deficiências, acentuando os problemas, os perigos e as ameaças. Diante desse quadro, as pessoas muitas vezes se sentiam impotentes. Medo, angústia, desesperança bloqueavam a sua vitalidade e davam espaço a uma agonia que paralisava. Hoje o enfoque mudou. Sem negar as dificuldades existentes, busca-se solucionar os problemas também com base nas potencialidades de cada indivíduo. Acreditando e investindo nas próprias capacidades do ser humano, nasce assim nova esperança. Cresce a resiliência, fortalece-se a coragem de enfrentar os desafios e abre-se a perspectiva para um novo futuro.
Não há instância melhor que a Igreja para basear também o seu trabalho, em primeiro lugar, na esperança cristã. Isso em nenhum momento significa fortalecer aquelas expectativas já mencionadas, segundo as quais os sacramentos teriam poder mágico e agiriam de maneira automática. Esperança cristã significa evocar aquele espírito dos bem-aventurados que se libertam da sua passividade. Trata-se de encorajar os casais a começar a construir um mundo melhor com base nos próprios recursos. Não vamos negar que tal trabalho é árduo e significa um investimento a longo prazo. As questões complexas não se resolvem com conselhos bem-intencionados ou por meio de uma fé cega. A pastoral matrimonial não pode e não deve tentar resolver os problemas dos casais. Deve, sim, encorajá-los e capacitá-los para que dialoguem, superem atritos, ajam com autonomia e decidam com responsabilidade. O desenvolvimento assim incentivado não se dará de forma linear e contínua. Ele, num processo de avanços e recuos, vai proporcionar momentos de grande alegria, proximidade e intimidade, mas também outros nos quais predominam as brigas, o ódio e a solidão.
De todo modo, cabe sempre lembrar que o elemento central nessa experiência não é apenas o resultado final, mas todo o processo que o casal percorre. O especialista alemão em moral Dietmar Mieth opõe-se explicitamente a uma ética que só vise ao êxito. Ele frisa que “o homem não é apenas aquilo que conseguiu em termos de resultado. Em vez disso, ele se torna aquilo que é através de seu agir” (Mieth, 1986, p. 75). Isso não vale apenas para a existência como um todo, mas também para a situação específica do relacionamento matrimonial. Este deve ser compreendido como processo que não pode ser considerado apenas em vista do êxito final, mas muito mais em todos os seus momentos de esforços, tentativas e lutas.
Acentuar essas perspectivas processuais e dinâmicas em nada significa trair os grandes ideais do matrimônio cristão. Muito menos se quer negar o necessário empolgamento num processo cuja meta é a realização de profunda comunhão de vida e de amor dos cônjuges. O que, em verdade, se quer é aliviar a pressão causada pela ideia de que tudo, do início até o fim, deve necessariamente dar certo. Diminuindo tal expectativa exagerada, evita-se o desespero e a paralisação em situações críticas. Mas, ao mesmo tempo, abrem-se novas dimensões de esperança, marcadas pela perspectiva da misericórdia, conforme a práxis de Jesus Cristo (cf. Mt 9,13).
É importante lembrar os casais de que, na realização de seu projeto de vida, estão acompanhados por uma pastoral para a qual a misericórdia de Jesus se revela mais importante do que a fria aplicação de leis.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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