Proporcionar que a pessoa seja mais consciente a respeito de si mesma e do mundo a sua volta, a fim de que tenha maior controle de seus sentimentos, pensamentos e ações, é uma das metas da Educação, conforme lembrado no texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano (cf. CF 2022, no 22).
Neste caminho de formação integral, a Educação deve levar ao desenvolvimento pessoal, cognitivo, emocional e profissional do ser humano (cf. no 93), e, para tal, como aponta o Papa Francisco no Pacto Educativo Global, deseja-se “que cada instituição educativa empreenda processos de diálogo e aproximação com as famílias, propondo uma aliança em torno de uma Educação para a verdade, a solidariedade, o respeito às diferenças e a paz” (cf. no 121); bem como não se deve esquecer que a família é “lugar privilegiado para crescer em sabedoria, idade e graça. Por isso, se diz que a família é escola de virtudes” (cf. no 179).
Em edição especial, o jornal “O São Paulo” apresenta experiências concretas que oportunizam a educação integral às novas gerações, tendo como centro o desenvolvimento das virtudes humanas, que são “atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da vontade, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a razão e a fé. Conferem facilidade, domínio e alegria para se levar uma vida moralmente boa” (Catecismo da Igreja Católica, CIC, no 1804).
Confira:
ADMINISTRANDO OS PRÓPRIOS SENTIMENTOS DESDE CEDO
É chegada a hora do lanche. A criança olha para a pera sobre a mesa e diz: “Não quero, não gosto”. Diante da resposta, a professora pede: “Come um pedacinho, experimenta!”. A criança novamente se recusa a experimentar. A professora, porém, insiste: “Vamos fazer o seguinte: como você tem fortaleza, é muito forte aí dentro, experimente pelo menos um pedacinho”. A criança, então, aceita. “Muito bem! Parabéns! Olha como você é forte! Você aguentou comer uma coisa de que não gosta tanto!”, comemora a professora.
Situações como essas são corriqueiras na Escola Pedrita, no bairro do Limão, zona Norte de São Paulo. Fundada em 1968, a instituição de educação infantil, que atende crianças de 8 meses a 6 anos, trabalha a formação integral dos estudantes, para que se desenvolvam nas dimensões cognitiva, física, afetiva, humana e transcendente, por meio de múltiplas vivências nas quais precisam lidar com os próprios sentimentos.
“A ideia é que as crianças possam ir tendo autoconhecimento, de modo que conheçam as suas emoções e de alguma forma traduzam isso para o professor, que, por sua vez, irá ajudá-las a administrar essas emoções fazendo o uso das virtudes”, detalhou Luciana Ribeiro Cabral dos Santos, diretora da escola.
Com as crianças menores são trabalhadas virtudes básicas como a ordem, obediência, fortaleza, alegria e generosidade.
“Nós perguntamos, por exemplo: ‘você não está feliz por ter emprestado o brinquedo ao seu amigo?’”, exemplificou. “Temos o objetivo de que a criança experimente este bem para que descubra o quanto é bom, o quanto traz alegria. A ideia também é que fortaleçam seu interior, aguentem frustrações e deem um passo em direção ao outro.”
Com as crianças mais velhas, uma das estratégias envolve o uso dos ‘cards das virtudes’. “Quando aparece um conflito no grupo, a professora apresenta estes cards – fortaleza, paciência, ordem etc. – e reflete com a turma qual virtude será preciso para resolver o conflito. Além disso, se pensa sobre quais sentimentos estão envolvidos na situação e se não são bons ou estão desajustados.” Por vezes, os estudantes levam os cards para a casa. Se um deles fica com o card da ordem, por exemplo, terá o desafio de não deixar as próprias coisas em desordem no lar.
AMBIENTAÇÃO
Era começo da tarde de uma sexta-feira quando a reportagem visitou a Escola Pedrita. Enquanto algumas crianças brincavam no parque, outras estavam na caixa de areia. Mais adiante, em uma das salas, com a porta de vidro entreaberta, alguns se preparavam para a aula de música.
Em uma ampla área a céu aberto, as crianças também podem ter contato com árvores e plantas, ver de perto bichos como galinhas, tartarugas e coelhos e ainda fazer atividades na horta.
“Tanto a proposta pedagógica quanto a proposta de formação integral da criança está muito ligada a este ambiente: espaço aberto, acesso à natureza, aos bichinhos. Na horta, por exemplo, é um lugar onde concretamente trabalhamos as virtudes. A criança sabe que se não regar e não cuidar, a plantinha não vai crescer”, explicou Luciana.
DIÁLOGO SINCERO COM OS PAIS
A interação permanente com as famílias também está na base dos trabalhos. “Montamos grupos de pais para que eles façam os ajustes necessários em casa, a fim de que a criança tenha um bom desenvolvimento e disciplina. Também temos reuniões virtuais com os pais, nas quais trazemos um tema, muitas vezes ligado às virtudes”, detalha a diretora.
Luciana ressalta que é sempre lembrado que a família é a primeira incentivadora das virtudes, para que assim “a criança desenvolva critérios para saber o que é bom e o que não é, baseada em vivências que tenha, seja em casa, seja na escola”.
A diretora lembra, ainda, que na conversa inicial com os pais que pretendem matricular o filho, é destacado que todo o trabalho ocorre na perspectiva da educação integral. Também é explicado que não se trata de uma escola confessional, mas sim administrada por uma família católica e na qual se trabalha a dimensão do transcendente: “Ensinamos às crianças que é o ‘Papai do céu’ que nos dá as coisas, mas não ensinamos a religião católica, pois também temos estudantes judeus, evangélicos, espíritas. As famílias, porém, sabem sobre o que nos fundamenta”.
EM FAMÍLIA E NO COTIDIANO DO LAR
Casados há 30 anos, Fábio Toledo e Andréa Calseverini de Toledo têm 11 filhos, com idades entre 4 e 26 anos, e duas netas. Pelas redes sociais, a “mãe dos 11”, como é mais conhecida, compartilha, especialmente por meio de vídeos, dicas para os pais sobre diferentes vivências do processo educativo. O casal também é colaborador em cursos para pais e faz tutoria para famílias.
Andréa ressalta que muitos pais, ao matricularem os filhos em uma escola, esquecem que é deles a função permanente de educá-los em bons valores: “E isso deve ser feito no dia a dia, pois em qualquer situação sempre é possível tirar proveito para educar, como no trânsito, na ida ao supermercado ou vendo uma propaganda de televisão”.
COM AS CRIANÇAS: ROTINAS E O BOM EXEMPLO
Andréa lembra que já aos 2 anos de idade é possível transmitir bons valores às crianças, a partir de atitudes cotidianas.
“Em qualquer casa, pois, mais simples que seja, todos os objetos têm um lugar próprio. Isso vale para a escova de dentes, a caneta, a camiseta, o brinquedo. Desse modo, se a criança começa a entender que tudo na casa tem lugar certo, os pais estarão ensinando sobre a virtude da ordem”, comenta.
Os filhos também precisam perceber que os pais bem vivem determinada virtude ou se esforçam para aprimorá-la: “Quantas vezes já falei para meus filhos da minha dificuldade em manter a ordem das coisas, mas digo: ‘Vamos a cada semana arrumar uma gaveta?’. Não há problema em mostrar que você também tem dificuldade, que não é perfeita. Com isso, até se consegue trabalhar o valor da humildade, mostrando que você não é um ser superior, mas busca alcançar as virtudes”.
Sobre a generosidade, Andréa diz que isso pode ser estimulado entre os irmãos, por meio do compartilhamento de brinquedos, ou pela doação de itens em bom estado para outras crianças.
COM OS ADOLESCENTES: FAZÊ-LOS PENSAR SOBRE AS ATITUDES
Dos 11 filhos de Andréa e Fábio, três são crianças, três adolescentes e os demais jovens. A mãe lembra que não é incomum que, para serem aceitos em um grupo, alguns adolescentes ignorem os valores que aprenderam em família. Diante dessa constatação, os pais não devem confrontá-los, mas aproveitar oportunidades para fazê-los refletir sobre as próprias atitudes.
“De uma forma tranquila, os pais devem ir recordando esses valores, mas sem ser uma imposição, pois se impuserem o adolescente fará o contrário. O ideal, portanto, é fazer com que o adolescente reflita sobre os fatos, para que aja diferente, sem ir no impulso da galera. Tenha certeza de que, se os pais deram uma boa educação, transmitiram os bons valores, isso uma hora irá florescer”, res- salta, recomendando, ainda, que, diante de qualquer relato dos filhos, os pais tenham uma postura de escuta atenta, sem juízo prévio, para um posterior diálogo que os faça pensar sobre as próprias atitudes e a de outros adolescentes.
“Isso, é claro, dá muito trabalho. O mais fácil para os pais é continuarem seu dia a dia, com seus vários compromissos, e deixar o adolescente com a vida dele, mas sempre se colherá os frutos um dia, ou seja, se você não der atenção, se não tentar resolver alguns dos problemas agora, mais tarde eles vão aparecer”, alerta.
TESTEMUNHO DE FÉ
Andréa também comenta que ela e o esposo sempre buscaram transmitir aos filhos os valores da fé católica e que, embora dois deles não os acompanhem na ida à missa, eles sabem que ser católico é parte da identidade da família. “Meu esposo e eu rezamos, vamos à missa, e mesmo esses dois filhos que não vão conosco, quando os irmãos se atrasam, eles falam ‘vocês estão atrasados para a missa’, ou seja, já sabem sobre o certo a fazer. Para tudo, é preciso transmitir bons valores, vivê-los e acompanhar os filhos efetivamente, respeitando a individualidade de cada um.”
A RELAÇÃO COM O PROFESSOR E A BUSCA PELO TRANSCENDENTE
Um ensinamento relacional. É isso que faz Jesus ao ensinar não só com palavras, mas, também, levando em consideração a realidade das pessoas com as quais Ele se encontra (cf. CF 2022, no 150).
Para a professora Cecília Canalle, doutora em Educação pela USP, essa postura de Jesus é o melhor caminho a ser seguido pelos professores que desejam favorecer o desenvolvimento integral dos estudantes. “Cristo não fica dando lição de moral. Ele se vale de parábolas. Além disso, Cristo acontece, está sempre em movimento e é pela maneira como Ele se move que as pessoas conseguem extrair um valor”, comenta.
Cecília destaca que virtudes como temperança, justiça, prudência e fortaleza podem ser mais bem compreendidas pelos estudantes no encontro com o professor. “Uma relação de amorosidade tem de acontecer durante a aula. Não adianta, por exemplo, o professor descrever a justiça. O mestre é o valor. Se não o for com suas práticas, não há discurso que se sustente.”
EM PARCERIA COM OS PAIS
Com quase 40 anos de experiência em docência, Cecília, que já foi diretora de colégios particulares, lembra que não há educação integral eficaz sem a efetiva participação dos pais.
“O lugar dos pais é dentro da escola, não o tempo todo, mas em todas as vezes que for possível, pois eles podem ser grandes parceiros, já que têm todo o interesse para a boa formação dos filhos. Desse modo, a escola precisa inventar situações para que os pais estejam presentes e tragam ideias e sugestões”, comenta.
A BUSCA PELO TRANSCENDENTE
Conforme aponta o Catecismo da Igreja Católica, “as virtudes humanas, adquiridas pela Educação, por atos deliberados e por uma sempre renovada perseverança no esforço, são purificadas e elevadas pela graça divina. Com a ajuda de Deus, forjam o caráter e facilitam a prática do bem” (CIC, no 1810).
“Toda a pessoa tem uma experiência elementar, como que uma bússola interior, pela qual deseja o bom, o belo e o verdadeiro, além do infinito”, afirma Cecília, destacando que, ao se autoconhecer, a pessoa se torna protagonista na medida em que identifica valores que deseja vivenciar, como a sinceridade, a amizade e a responsabilidade. “São valo- res preciosíssimos, mas o estudante precisa descobri-los de dentro para fora. Do contrário, não se gerará protagonistas, mas sim pessoas treinadas.”
Ela lembra, ainda, que o que diferencia os homens de outras espécies animais é a constante busca pelo significado da própria vida, e isso deve ser levado em conta ao se pensar a educação integral: “Quando fazemos apenas o treinamento da pessoa, a tratamos como bicho. Entretanto, o ser humano é um ‘bicho que transcende’, e assim a educação integral tem de considerar a transcendência, que não é só uma questão espiritual, mas do significado, ou seja, qual sentido a vida tem. Quando não se faz isso, acaba por se tornar só ‘treinamento de bicho’”.
Por Daniel Gomes/O SÃO PAULO
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