A pós-modernidade, uma etapa do fenômeno abrangente chamado modernidade, pode ser vista como “tempo aberto de refundação permanente”[1]. Tempo contraposto ao da tradição. Nesta, tudo é estático, firme, permanente, localizado.
A vida religiosa impregna de tal forma o tecido social, que integrar-se à sociedade requer “praticar” a religião. No caso específico do Brasil, fala-se de um catolicismo cultural mais como referência histórico-cultural vaga do que como definição de uma identidade. A prática religiosa intermitente — batismo, funerais, casamento — sempre foi vista como sintoma de uma vida religiosa débil, vacilante e até mesmo artificial. A essa religião cultural se contrapunha a do praticante, a religião instituída, canônica, feita mais de obediência à hierarquia do que de opção pessoal consciente.
O que não se percebe é que essas duas formas de viver a religião estavam no mesmo barco. Mais: é preciso inverter, de um ponto de vista antropológico, o critério de avaliação — a primeira é mais enraizada que a canônica. Há casos (esporádicos) de “conversão” sem abandono de símbolos católicos — os santos, por exemplo. E mais ainda: o grupo religioso pentecostal que mais cresce no Brasil utiliza toda uma simbologia herdada dessa herança cultural católica.
Nenhuma dessas formas enfrentou a modernidade. A hierarquia católica pôs (põe) sua força na defesa da tradição como portadora da identidade católica que lhe cabe preservar, enquanto o povo cristão ritualizava sua vida de acordo com a estática social — no caso, religiosa. Em nenhum dos casos há, propriamente falando, opção religiosa. Como religião da sociedade, o catolicismo não enfrentava confrontos, a alteridade, a diferença. Educar para a fé era reafirmar — via discurso, rito, práticas — o mesmo, o idêntico; impor práticas rituais (minuciosamente controladas) e normas morais (o controle social rígido facilitava a tarefa). Em suma, um catolicismo despreparado para enfrentar a pós-modernidade, fundada na escolha subjetiva (não na tradição “herdada”), plural, caótica, valorizadora do micro, do passageiro, do efêmero, do “espetaculoso”.
Pode-se, com segurança, dizer que o confronto capaz de amadurecer a fé, gerador de uma espiritualidade engajada, deu-se com a Ação Católica especializada. Basta olhar o “lugar” de sua atividade: a universidade, a escola de nível médio e o meio operário, ambientes de confronto. Aliás, o próprio fato de ser especializada era sintoma de diferença e confronto. A fé era vivida no “contexto” de um mundo marcado pela emergência de uma concepção menos presa à tradição, mais aberta às interrogações da vida urbano-industrial. Não por acaso, a ação da JUC fundamentava-se num idealhistórico, no sentido mais exigente da palavra. Sua ação não acontecia na cronologia, mas construía a História — lugar da intervenção livre, consciente, transformadora do mundo, entendido como espaço do conflito, da contradição. História não é soma de fatos datados, mas construção dos fatos. Era ação que se dava no mundo. A subjetividade agindo sobre a realidade objetiva e, nesse processo de ação recíproca (uma sobre a outra), dando-se a “realidade”.
O estar-no-mundo sem ser do mundo definia bem essa espiritualidade do confronto. Estar-no-mundo retomava a ideia luterana de dar glória a Deus no mundo, mas, ao mesmo tempo, confrontando esse mundo, sem conformar-se ao seu “espírito”.
Essa espiritualidade do confronto tomava o lugar da tradicional, marcada pela homogeneidade. Nascimento, passagem à idade adulta, casamento, velhice, doença e morte constituem interrogações respondidas pelo discurso religioso, ritual e dogmático-moral. A seu modo, as camadas populares recebem esse código homogeneizados e vivem à sombra dele. O próprio discurso eclesiástico é reinterpretado — o que não significa recusa.
Um olhar sobre os santos mostra que a dimensão histórica é moldura fixa para a descrição de vícios, virtudes e verdades encarnadas por figuras heroicas. O tempo e o espaço não entram ativamente na configuração de uma “subjetividade santa”. Os santos não são o que é sua vida. Eles funcionam como modelos, estereótipos institucionalizados de um modo de viver a fé, deslocada (até certo ponto) das vicissitudes espácio-temporais do comum dos mortais. Aqui intervém um ponto central: os “santos” populares escapam ao estereótipo canônico, à homogeneização institucional. São protetores de males e necessidades associados ao cotidiano. Têm “vícios” — São Gonçalo protege os que gostam de beber. Mas o contraste flagrante aparece na reinterpretação de Nossa Senhora. Pense-se na rigidez doutrinal do discurso eclesiástico (sobre sexualidade, por exemplo) e a devoção à Virgem de Triana (Sevilha) — os homossexuais, marinheiros e ciganos a veem como sua padroeira.
À parte uma ótica política — que vê nessas atitudes apenas alienação —, pode-se dizer que essa segunda forma de vida cristã está mais próxima do evangelho que o discurso oficial canônico-moralista. Este é homogêneo e homogeneizador no tempo e no espaço, define virtudes e verdades, esquecendo a lei da encarnação. O cristão assume as dores e alegrias humanas em atitude de solidariedade.
Na sociedade tradicional, a vida cristã, como toda atividade social, é marcada pelo conformismo; na urbano-industrial, pelo confronto (refugiar-se do mundo, recusá-lo pura e simplesmente, apesar da ambiguidade do gesto, tem características de confronto). Na sociedade tradicional, o convento representa a “cristianização” dos valores da sociedade; na sociedade moderna, simboliza o confronto.
O que se quer evidenciar nessas contraposições, um tanto esquemáticas, é apenas a diferença de percepção que se tem de valores associados à vida religiosa, com vistas a apontar os desafios ao mundo urbano-industrial, marcado hoje pela chamada pós-modernidade.
1. As duas faces da moeda
Quando José Comblin diz, em tom de pergunta, que “temos face a face um objetivismo implacável, que se oferece como o evangelho do clero, e um subjetivismo radical, que é o evangelho vivido pelos leigos em geral”[2], na realidade aponta dois dados que, embora aparentemente opostos, são duas faces da mesma moeda. O integrismo objetivista que estabelece como vida cristã a crença literal nas verdades do Magistério, integrada à observância estrita de ritos e normas morais, válidos por si (objetivados) desde que sancionados por uma instância também sagrada por si mesma, é a outra face da religião emocional, efervescente, performática, fundada no sentimento subjetivo — um fundamento demasiado frágil. Os movimentos de caráter integrista (Opus Dei, Comunhão e Libertação, Legionários de Cristo) e seu contrário (Renovação Carismática) são expressões da pós-modernidade[3]. A busca do fundamento sólido, íntegro, sem concessões, é a reação a uma religiosidade fluida, emocional, sensorial[4].
Dois fatos mostram a ligação dessas duas atitudes. Parcela significativa da Renovação Carismática preocupa-se cada vez mais com a formação doutrinal, voltando a difundir práticas da espiritualidade tradicional da Igreja (ramalhetes espirituais, devoções, práticas de ascese, mortificação); ao mesmo tempo há certo movimento de caráter integrista que busca a mídia. E ambos, na mídia, revestem-se dos símbolos de identidade tradicional. Representantes facilmente identificáveis do clero — que comungam essas atitudes — frequentemente aparecem na mídia, sempre usando traje clerical.
Há ainda outro dado: os teóricos da pós-modernidade sempre puseram em relevo a crise das grandes narrativas, das verdades abrangentes, totalizantes, sobre a realidade. Concepções da história, da sociedade e do mundo, assim como suas respectivas teorias, são substituídas pelas micronarrativas — o banal, o passageiro, o corriqueiro são identificados com a realidade. Experimentar o cotidiano com as categorias da sensibilidade toma o lugar das explicações racionais. Desloca-se o campo da verdade: o bom, o belo, o verdadeiro são definidos pela satisfação subjetiva que proporcionam. O engajamento histórico, a busca de transformações sociais entram em crise — para dizer o mínimo.
Mas essa postura gera o seu contrário: se tudo é incerto, passageiro e efêmero, viver é estar imerso nessa realidade, multiplicar as emoções em quantidade e intensidade crescentes. Mas isso provoca insegurança. A experiência do vazio não é ficção. Vem, então, a reação de caráter fundamentalista: crer que as coisas são como são porque assim foram feitas por Deus e assim devem continuar. Mudar a “ordem” do mundo equivale a destruí-lo, e tudo o que expressa ordem — moral, dogma, rito, lei — deve ser conservado íntegro a qualquer custo. O fundamentalismo e seu “contrário” — a busca da satisfação emocional — não são crenças, mas atitudes de vida. Não são formas de conceber a realidade, mas o “estado de espírito” característico da pós-modernidade.
Pode-se argumentar que toda essa reflexão é coisa de Primeiro Mundo, de classe média, distante do mundo dos pobres. Eliminada qualquer visão romântica, o que buscam os pobres da periferia das grandes cidades senão integrar-se ao mundo do consumo? O que buscam no “camelódromo” senão o simulacro das grifes, das “marcas”, dos gadgets eletrônicos de última geração? Os sequestros e o tráfico de drogas não são a expressão invertida desse mundo? Tais ações não são a procura de fruição deste mundo, entrando pela porta dos fundos mediante o crime e a violência?
Mas há um aspecto pouco levado em conta na pós-modernidade: a disponibilização dos símbolos, a sua livre circulação. No limite, os símbolos perdem consistência. Ou melhor, eles se dessubstancializam para melhor afirmar sua eficácia. Um exemplo banal: quando um adolescente diz a seus pais que “a missa é chata”, está pondo como critério de valor a sua experiência pessoal. Afirma implicitamente que a religião é irrelevante, desnecessária.
No mundo adulto as coisas se passam de modo mais sutil. Nossa Senhora (e sua simbologia religiosa) foi utilizada por Jean-Luc Godard para provocar uma experiência estética. O conteúdo simbólico fundante — religioso — foi posto a serviço de outro tipo de experiência, a artística. A cantora Madonna fez o mesmo com o videoclipe Like a prayer. A voz do namorado, que tem as feições de São Benedito, soa como prece. O clipe todo acontece no interior de uma igreja. Há a insinuação de um relacionamento mais íntimo com o santo; cruzes incendiadas ao redor da igreja; um coro gospel faz oback vocal. Uma série de “pressupostos” simbólicos católicos serve para embalar um produto comercial, artístico. A sensibilidade é “ativada” pelo substrato simbólico primário religioso.
O próprio Deus torna-se um jogo de computador. Em recente Revista da Web há uma chamada de capa: “Quer ser Deus? Conheça o Sims, o simulador de pessoas”. No interior da revista, a matéria ensina como recriar-se a si mesmo e na conclusão diz: “Mente quem acha que o jogo Sims ‘brinca de Deus’. Na verdade não somos melhores que nossas criaturas. Na verdade todos somos Sims. Todos querendo deixar nossos índices de satisfação no verde, vivendo dias que se esgotam rapidamente, tentando extrair o máximo de pequenos prazeres”. O jogo ensina a transformar pequenos prazeres em experiências-limite, como a de ser deus por algumas horas.
Voltando à história mais recente: a “espiritualidade do confronto” — referida acima — buscava “ter o que dizer”. Fundava-se, assim, na consistência, na autenticidade, na capacidade de dialogar (confrontar). A Ação Católica buscava no engajamento, e não na manipulação de símbolos, o seu lugar no mundo. A religião midiática faz exatamente o oposto: os padres midiáticos não precisam “dizer” que são padres, mas nem sempre têm o que dizer em termos de uma espiritualidade que confronte o mundo. Mesmo porque talvez seja impossível fazer isso na mídia televisiva — altamente sensorial, a mensagem se esvazia à medida que é apresentada. Provavelmente por isso é que os programas estritamente religiosos só atingem, via de regra, os já convertidos.
2. E a espiritualidade?
Em 1916, Weber publicou A ética protestante e o espírito do capitalismo — apontado como um dos cem livros mais relevantes do século. Combinando, de forma harmoniosa e coerente, elementos das teologias luterana e calvinista, mostrava como um espírito de missão animava o empresário capitalista e seus empregados. Como explicar que eles empenhassem sua vida em um trabalho impessoal, frio, burocrático, puramente racional? Weber viu que nas raízes do capitalismo estava um espírito religioso: a vocação do homem é dar glória a Deus no mundo, por meio de obras que o glorifiquem. O resultado do seu trabalho era uma espécie de atestado que lhe assegurava a salvação. Quanto mais visíveis fossem as obras, maiores os indícios de os eleitos estarem no bom caminho. Caso o fruto do trabalho levasse à busca de prazer e satisfação pessoais, o sinal positivo (salvação) se transformaria em sinal negativo (perdição). A combinação da teologia luterana da vocação com a calvinista da predestinação desenhava o “espírito de missão” do capitalismo.
Em 1955, Will Herberg, analisando a religião dos norte-americanos, mostrava como protestantismo, catolicismo e judaísmo são três formas de viver o American way of life. Um modo de vida marcado pela importância no crer. Valoriza-se o fato de crer, deixando em segundo plano o conteúdo da crença. Crer na democracia é fundamental, e só quem nela crê, como os americanos, assegura a permanência e a estabilidade dela.
“A fé é não em Deus, mas na fé; nós adoramos não a Deus, mas ao nosso próprio culto. Se o objeto de devoção é não Deus, mas a ‘religião’… então a religiosidade resultante pode tornar-se simplesmente instrumento de compromissos mais substanciais”[5].
Uma religião é importante para promover valores importantes. Sua “validade” e consistência têm caráter pragmático. Crer nesses valores — democracia e direitos individuais, sobretudo — é o importante. É indispensável crer, ainda que não necessariamente em Deus—conteúdo fundante desse modo religioso de ser.
As duas referências — a Weber e Herberg — ajudam a compreender, ou pelo menos a situar, a crescente importância conferida à “espiritualidade” e à filantropia (“charity”) nas empresas. Seguem dois exemplos.
Comentando os seminários de Richard Barret, dono de uma empresa de consultoria de negócios em Alexandria, Virgínia, David Dorsey diz, em Exame Você S.A., que “as empresas devem ajudar as pessoas a se manter fiéis a suas crenças mais profundas como única alternativa para continuarem lucrando”[6]. “Barret prega o evangelho da espiritualidade no local de trabalho (…). Ele oferece uma maneira quantificável de medir o alinhamento entre as posições e as crenças das organizações e dos indivíduos. Sua premissa é simples: as pessoas e as empresas se saem bem financeiramente e de outras maneiras, na medida em que seus interesses se coadunam com seus valores. Para gerar esse alinhamento entre interesses e valores é preciso enxergá-lo. E, para enxergá-lo, é preciso encontrar uma maneira de medi-lo. Barret encontrou uma maneira de medir e intensificar esse alinhamento. Seu seminário debate sobre ‘O empresário empreendedor que atravessa a escura noite da alma’; em outra sala o grupo se reúne ‘para orar’; de manhã a ‘sessão de taichi é essencial para nos centrarmos em nós mesmos, mas a mesma coisa pode ser dita sobre tomar parte do café da manhã com outros participantes’”[7].
O segundo exemplo provém da revista Exame, sob o título provocativo “Fazer o bem compensa?” Aí se lê: “Compensa. E muito, disse (…) a americana Dori Ives, da Business & Community Services. Participar da comunidade vai ser fundamental para as empresas que quiserem fazer a diferença daqui para a frente (…) Seus acionistas até querem um lugar no Reino dos céus. Mas querem também a preferência do consumidor, o respeito dos clientes e a admiração de seus funcionários”[8].
Não se trata de fazer o bem pelo bem. Um espírito filantrópico difunde uma “imagem” das grandes corporações. Faz que empregados e consumidores se identifiquem com a empresa. Uma “espiritualidade” pragmática.
O que se pode sentir nesse quadro?
Há secularização radical da religião. Inverte-se a compreensão do texto evangélico que diz “pelos seus frutos os conhecereis”. A religião é avaliada pelos seus resultados materiais concretos, financeiros, imediatos e a longo prazo. Daí o equívoco irreparável do combate à teologia da libertação, às CEBs e a qualquer resquício do que pudesse significar intromissão do temporal nos assuntos religiosos. Fez um bem imenso ao capitalismo, deixando o cristianismo livre para seus negócios. Pior: isso aconteceu exatamente no momento em que se buscava formular uma espiritualidade da libertação consistente, em continuidade direta com o espírito da Ação Católica especializada.
O quadro esboçado por Comblin, já referido, agrava-se: não resta só a alternativa entre o objetivismo integrista e o intimismo emocional, mas o próprio espírito religioso e seus símbolos são assumidos explicitamente pelo mundo da mercadoria. Setores do catolicismo caem em equívoco sério quando tentam recuperá-los via marketing. Um especialista em “marketing católico”, assessor de instituições respeitáveis, quando lhe perguntaram se a Igreja católica “sabe vender seu peixe”, disse:
“Muito mal. Não deveria ser assim porque a Igreja opera em condições muito favoráveis. A base do marketing está no que chamamos de quatro “pês” : produto, preço, praça e promoção. A religião católica tem o melhor produto do mundo, que é a salvação. Opreço também é incomparável. A salvação é gratuita e já existe para todos os que nascem. A praça, ou os locais de distribuição, também são um ponto forte. Existem cerca de 8.000 paróquias em todo o país, além de uma infinidade de capelas. Cada católico é um vendedor potencial. O problema da Igreja é que ela não sabe fazerpromoção[9].
O “espírito” dessa resposta é radicalmente secular, e aí reside o risco para a religião que acredita no que faz, que procura ser fiel à sua identidade mais profunda. É preciso, entretanto, fazer justiça às críticas de certos especialistas em “marketing católico”, quando se referem ao mau uso que a Igreja faz de seus recursos materiais e simbólicos. Mas o mimetismo (espírito de imitação, de cópia do mundo dos negócios) destrói a religião em sua identidade e em seu espírito.
3. Ganhos e desafios
Há um ganho na situação descrita. A espiritualidade — da mesma forma que a religião — deixou de ser pensada apenas como refúgio, oásis, abrigo, alienação. Situação que Marx traduzia com felicidade, afirmando que a religião, enquanto “realização subjetiva” de aspirações histórico-materiais, constituía a “realização fantástica do ser humano”, a “sanção e consolação universais”, o “aroma espiritual”, o “coração de um mundo sem coração”[10].
A situação descrita mostrou que as críticas à teologia da libertação tinham o alvo errado. As ciências sociais chamaram a atenção para a impossibilidade de uma religião puramente espiritual, desencarnada. Ver a espiritualidade como abrigo e refúgio é uma maneira de inserir-se no mundo, alimentando relações sociais injustas (Marx) ou alimentando seu modo de ser a partir “de dentro” de “seu espírito” (Weber). O fato de o capitalismo atual alimentar-se do patrimônio religioso, ameaçando destruí-lo não pelo combate, mas pela “absorção”[11], possibilita uma avaliação crítica da “espiritualidade midiática”, que associa espetáculo, emoção e pregação de verdades literais e rigidez moral. Essa espiritualidade de evasão, cura, entretenimento mostra cada vez mais o equívoco em combinar institucionalização burocrática da fé com emocionalismo estéril e esterilizante.
Nos anos 30 começou a surgir na Europa, suscitada pela crítica à religião, uma espiritualidade que, vista com suspeita, na década de 50 animou a Ação Católica especializada. Representava a busca de um cristianismo que levasse a sério os desafios do mundo moderno, o qual tinha na crítica religiosa um dos seus pilares. Tal espiritualidade escolheu o caminho da “inserção crítica” neste mundo, em vez da apologética estéril. Constituiu-se toda uma linha de pensamento: o humanismo cristão. Mounier propunha o personalismo, enquanto Maritain o humanismo integral, tentando, no fundo, mostrar como a afirmação do homem própria à modernidade não equivalia necessariamente à recusa de Deus; e, inversamente, mostrar como o ateísmo acabava por negar o próprio humanismo. A proposta era “moderna”: cristãos conscientes do compromisso de sua fé, capazes de se situar no interior dos desafios da história, não a recusando, mas “encarnando-se”, “tendo o que dizer”.
Nas palavras de Mounier: “O meu corpo não é um objeto entre muitos outros, não é sequer o meu objeto mais próximo. Como, sendo assim, poderia unir-se à minha experiência de sujeito? Efetivamente, as duas experiências não são separáveis. Existir subjetivamente, existir corporalmente são uma única e mesma experiência. Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo. Através dele, exponho-me a mim próprio, ao mundo, aos outros; através dele escapo à solidão dum pensamento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento. Recusando-se a entregar-me a mim próprio, inteiramente transparente, lança-me sem cessar para fora de mim, na problemática do mundo e nas lutas do homem. Através das solicitações dos sentidos lança-me no espaço, através do seu envelhecimento ensina-me o tempo, através da sua morte lança-me na eternidade. A sua servidão pesa-nos, mas ao mesmo tempo é base para qualquer consciência e para toda a vida espiritual (grifo nosso). É mediador onipresente da vida do espírito”[12].
A espiritualidade pós-moderna — se é que existe — nega a encarnação. Reduz a fé a uma experiência individual de caráter emotivo: sentir Deus, deixar-se tocar por ele é a medida da fé. Não há o outro histórico, a alteridade do excluído. Chega-se a ver na ingenuidade, religiosa, combinada à submissão ao destino ou à autoridade religiosa, a “fé dos simples”. Estes são objeto de compaixão, não sujeitos excluídos no interior de um processo histórico.
Essa espiritualidade é feita de pequenas narrativas. O próprio evangelho é fragmentado, como resposta de Deus aqui e agora. É costume bastante disseminado abri-lo ao acaso e ver “o que Deus me diz neste momento”. Os testemunhos, localizados, tomam o lugar de uma visão de fé totalizante que confere sentido à vida nos planos pessoal, comunitário e social. À medida que falta esse sentido abrangente, uma grande narrativa, a verdade da fé, a tendência de fazer da espiritualidade um “bricolage” de elementos de tradições religiosas e pararreligiosas é mais que um risco. Esses elementos — descontextualizados, interpretados fora de sua tradição — tornaram-se válidos com base no uso e na interpretação individual ou grupal. Cai-se, assim, num “pontilhismo” religioso: a fé é feita de pontos, costurados ao sabor da subjetividade. Ou, então, para fugir a esse risco, há o recurso ao discurso pronto, instituído, literal, integral.
O sentido de comunidade é diluído. O grupo é o lugar da performance, mais do que da criação e expressão de laços. O Espírito é mais uma subjetividade emocionalmente inflamada, mais o sopro do que o impulso profundo do ser e agir.
Cabe recuperar a espiritualidade que radicalize a dimensão da encarnação: viver o Espírito de Jesus, torná-lo carne no mundo vivido — de modo objetivo e em sua percepção subjetiva. Alimentá-lo com a experiência histórica acumulada — tradição e memória: não mero acúmulo de verdades mortas, mas ser e agir “condensados” e expressos em linguagem de hoje. Espírito de Jesus enraizado e enraizador, aberto radicalmente ao futuro. Presente é conjugação, cristalização, concentração de experiências passadas, reais à medida que dinamizadas pela abertura ao futuro, não “mumificadas”, inertes.
Simone Weil viveu uma espiritualidade encarnada — até o limite. Intelectualmente brilhante, fez-se operária para experienciar a condição de opressão. É ela quem diz: “A vida moderna está entregue à desmedida. A desmedida invade tudo: ação e pensamento, vida pública e privada (…). Já não há equilíbrio em parte alguma. O movimento católico está parcialmente contra isso: as cerimônias católicas, ao menos, permaneceram intatas. Mas também não têm relação com o resto da existência”[13].
Fonte: Revista Vida Pastoral
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