MESMO APÓS CINQUENTA ANOS DA APROVAÇÃO DA LEI Nº 5.859, TRABALHADORAS DOMÉSTICAS CONTINUAM NA LUTA POR SEUS DIREITOS
A história de Luiza Batista Pereira, 66 anos, trabalhadora doméstica, mulher negra e mãe solo, é semelhante à de muitas mulheres que, desde cedo, deixam suas casas e até mesmo suas famílias para cuidar da casa e da família de outras pessoas.
No dia 27 de abril, a categoria profissional dos trabalhadores domésticos é comemorada em todo o mundo, data escolhida em homenagem a Santa Zita, considerada a padroeira das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os).
A Lei nº 5.859, que regulamenta a profissão, é de 11 de dezembro de 1972. No entanto, mesmo com o avanço da legislação ao longo dos anos, as condições de trabalho da categoria continuam precárias e não são raros os casos de pessoas vivendo de forma análoga à escravidão em casas de famílias.
Em julho de 2022, por exemplo, o Brasil teve seis resgates de mulheres sendo submetidas a trabalho análogo à escravidão doméstica. Casos como o da idosa que passou 32 anos nessas condições, em Minas Gerais, e de outra que foi mantida encarcerada por 72 anos, no Rio de Janeiro.
Em entrevista à reportagem, Luiza, que hoje é coordenadora geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), salientou que esse trabalho ainda é considerado por muitos como inferior, que em muitos casos nem merece ser remunerado.
Calcula-se que há cerca de 7 milhões de domésticas no Brasil, o maior número do mundo. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho doméstico no Brasil é exercido principalmente por mulheres, negras, acima de 40 anos, sem registro e com remuneração média inferior a um salário mínimo.
A HISTÓRIA SE REPETE
Santa Zita nasceu em 1218, na cidade de Lucca, na Itália, e trabalhou durante muitas décadas, desde os seus 12 anos de idade, para uma família italiana. Ficou conhecida por sua generosidade com os pobres, sendo que tirava sempre o seu pouco dinheiro para oferecer àqueles que batiam à porta da família para a qual trabalhava.
Também aos 12 anos, Luiza conseguiu trabalho na casa de uma senhora cuja filha era professora e só então ela começou a estudar. Trabalhava pela manhã e estudava à tarde, até que a senhora faleceu e ela teve que sair da escola.
Porém, o trabalho doméstico começou bem antes. Aos 9 anos, quando a mãe ficou viúva, ela saiu junto com seus irmãos, da zona rural em que a família estava, para morar em palafitas, no Recife (PE).
“Meu primeiro trabalho foi na casa de uma das coordenadoras de um projeto que doava alimentos para pessoas em situação de vulnerabilidade. Ela disse que precisava de alguém para brincar com a filha, de 5 anos, e minha mãe permitiu que eu fosse, mas, na verdade, eu fazia muito mais que brincar com filha. Aos 9 anos eu limpava o jardim, passava cera em toda a casa e fazia outras coisas. Saí de lá porque acabei dando um tapa na menina, pois fui mordida por ela e a mãe, então, me deu uma surra com fio de ferro. Quando minha mãe foi buscar a cesta de alimentos que era o meu pagamento pelo trabalho, ela viu minha situação e me levou com ela de volta para a palafita”, contou Luiza.
Adolescente, ela passou por outras casas até que, com quase 18 anos, ficou doente de tuberculose e precisou deixar por um tempo o trabalho: “Cheguei a trabalhar como cobradora de ônibus, mas sofri um acidente e descobri que, mesmo com a carteira assinada, os empregadores não estavam pagando minha previdência no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e então decidi que, a partir dali, eu só trabalharia com a carteira assinada”.
E assim aconteceu, Luiza ficou por 26 anos na casa de uma senhora: “Eu cuidava da casa e das crianças. Aos 36 anos, descobri que estava com câncer de mama e fiz todo o tratamento na casa dessa família. O direito previdenciário garantiu o benefício de aposentadoria por invalidez depois que tive câncer na outra mama. Na época, eu me reuni com outras mulheres de vários bairros e conseguimos direito por moradia”.
Foi durante esse período que ela fundou, junto a outras mulheres, o Espaço Mulher e conheceu o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas. “Voltei a estudar e comecei a participar das atividades do sindicato. Em 2009 fui eleita presidente das trabalhadoras domésticas de Pernambuco. Em 2016, durante o 9º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas, fui eleita presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas”, contou.
Junto à federação, ela continua na luta por direitos como, por exemplo, da regulamentação das diaristas que trabalham de forma autônoma, sem nenhum tipo de legislação que as ampara. “Temos a convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho, que garante os direitos das diaristas, mas a Lei Complementar nº 150 só garante o vínculo empregatício a partir de três dias semanais na mesma residência. Vemos isso como discriminação, pois outras categorias têm o direito mesmo se for um único dia trabalhado, como professores ou profissionais da saúde. Fomos a categoria que demorou mais tempo para conseguir direitos. Sabemos que se somam muitas questões, como a racial, então, a luta continua”, ressaltou Luiza.
MULHERES NA LUTA
Teresa, Fabia, Elaine e Ana Paula têm algo em comum. Todas começaram a trabalhar muito cedo e concordam que é preciso avançar quando o tema é respeito às trabalhadoras domésticas no Brasil.
Teresa Rodrigues da Silva, 55, nasceu em São Bernardo do Campo (SP) e hoje mora em Diadema. “Comecei a trabalhar aos 10 anos de idade, então são mais de 40 anos de trabalho. Atualmente estou aposentada, mas continuo atuando de forma autônoma”, disse.
Ela contou que passou por muitas situações nas quais seus patrões disseram coisas ou agiram de forma em que ela se sentiu ofendida e constrangida: “Existe muita discriminação na relação entre chefe e funcionário e, embora tenhamos conquistado muitos direitos, ainda há muito o que conquistar”.
Elaine Cristina da Silva, 4, mora no Recife e trabalhou durante dezesseis anos em “casa de família”, como ela mesmo disse. “Hoje vendo bolo. Trabalho para mim mesma. Muitas coisas aconteceram comigo durante esse tempo. Trabalhei em uma casa em que a patroa não deixava eu me alimentar, então fiquei doente e precisei ficar em casa. Durante esse período, só não passei necessidade devido à ajuda da minha mãe e de amigas”, disse. Na época, Elaine não tinha carteira assinada e vê os direitos conquistados pela categoria como um avanço: “Eu sei que existem leis que, graças a Deus, têm melhorado a vida das empregadas domésticas, mas acho que o direito deveria ser para todas e não apenas para algumas”.
Fabia Cristina dos Santos Macedo, 50, nasceu em Maceió (AL), mas mora em São Paulo (SP). “Comecei a trabalhar aos 12 anos. Aos 13 fui violentada pelo filho da minha patroa. Foi um momento muito difícil e eu não gosto de falar sobre e nem de me lembrar, mas, infelizmente, tive que continuar trabalhando. Hoje temos mais direitos, como férias e décimo terceiro e isso é muito importante. Na minha opinião, mesmo com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) das Empregadas Domésticas, há muitas patroas que não querem registrar as empregadas. Uma amiga aceitou ficar sem registro na carteira porque a patroa disse que o salário dela iria diminuir. Isso acontece porque não há fiscalização para verificar se o patrão ou a patroa estão cumprindo a lei”, disse ela.
Enquanto esperavam o ônibus no ponto, Fábia começou a falar sobre os direitos para a amiga e perguntou a ela o que faria se se machucasse no trabalho. “‘Se você precisar se afastar pelo Instituto Nacional do Seguro Social, por um acidente de trabalho, como vai fazer? Sua patroa vai esperar você? Com a carteira registrada, se você tiver um acidente de trabalho, durante um ano ela não pode te demitir. Sem o registro na carteira, você não tem nenhum direito”, Fabia disse e então sua amiga resolveu conversar com a patroa, que negou o registro, alegando que ia ficar muito caro para ela.
Fabia salientou que muitas trabalhadoras não sabem sequer quais são seus direitos. “Falta fiscalização. As casas deveriam ter um caderno para marcar a hora de entrada e saída da funcionária, além de um acompanhamento no momento da demissão, pois muitos empregadores não pagam todos os direitos”, completou.
Ana Paula Santana, 43, nasceu em Vitória de Santo Antão (PE) e mora em Olinda (PE). “Também comecei a trabalhar desde cedo, por volta dos 13 anos, e minha carteira, atualmente, é assinada. Meus pais trabalhavam num engenho e éramos cinco filhos. Tive muitos patrões, muitos que me humilharam. Uma vez chorei por mais de meia hora sem parar. Além disso, certa vez, na casa de um coronel, enquanto eu dormia, no mesmo quarto que as filhas dele, eu o senti passando a mão em mim. Acordei e reagi negativamente e o fato nunca mais aconteceu, mas, nunca me esqueci daquela noite”, contou.
Para Ana Paula, direitos como o Programa de Integração Social (PIS) ou um controle das horas extras precisam ser incluídos. “Muitos patrões querem que você chegue na hora certa, mas não deixam que as empregadas saiam na hora correta. Há muitas leis que só valem no papel”, observou. “Eu, por exemplo, fui contratada para cozinhar, mas trabalho como empregada doméstica. Assinaram minha carteira como empregada doméstica. Quando fui contratada, a família não tinha cachorro e hoje tem. Sempre que o cachorro faz cocô ou xixi eu tenho que interromper meu trabalho e isso me incomoda muito”, contou Ana Paula.
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO
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