A realidade da educação no Brasil sempre foi de desafios, progressos e retrocessos. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2007, 2,4% das crianças estavam fora da escola, o que representa cerca de 680 mil crianças de 7 a 14 anos. No censo de 2015 esse percentual foi reduzido para 1%, o que leva a um total de 244 mil crianças. No ano que precedeu a pandemia, porém, o número era quase três vezes menor, sendo 0,3% ou 90 mil ausentes das escolas.
Porém, após cerca de dois anos de pandemia causada pelo novo coronavírus, o clima é de preocupação, pois muitas crianças e adolescentes não conseguiram ter acesso à educação durante os anos de 2020 e 2021.
Professores de escolas públicas e particulares de diferentes lugares do Brasil contaram à reportagem da Revista Ave Maria sobre as principais dificuldades durante o período e também na retomada às aulas presenciais, apontando, sobretudo, como a desigualdade social foi um fator essencial para o desenvolvimento dos alunos durante a pandemia.
Uma pesquisa publicada em julho de 2022 e denominada Resposta educacional à pandemia de covid-19 no Brasil mostrou que pouco mais de 53% das escolas públicas do país conseguiram manter o calendário letivo original durante 2020 e 2021. No ensino privado, esse número chegou a 70%.
Essencial nesse processo foi a atuação dos professores, reconhecida e elogiada inclusive durante todo o período de isolamento social. Isso porque foram eles os responsáveis por dar continuidade ao trabalho, mesmo diante de todas as dificuldades logísticas e, em muitos casos, sem nenhum treinamento para utilizar plataformas de ensino a distância.
Fernando Damián Cruz López, 33 anos, é professor da rede privada na capital paulista. Atua como professor e coordenador de Formação Cristã e Pastoral há mais de oito anos. “A principal dificuldade, durante a pandemia foi em relação à infraestrutura e ao equipamento tecnológico como atualização de conteúdos e a aproximação com o socioemocional”, disse.
O retorno dos estudantes às atividades presenciais foi um momento propício para recuperar os papéis dentro da escola. “Por um lado, os nossos estudantes tinham esquecido hábitos cotidianos como pedir licença para ir ao banheiro e, por outro, emocionalmente estavam precisando de muita atenção. O trabalho com as competências socioemocionais tornou-se indispensável. A proximidade com as famílias, também”, acrescentou ele.
Como professor, Damián sente-se um agente de transformação: “Alegro-me muito quando posso contribuir para o processo de formação de um ser humano. Perceber como ele vai construindo, conhecendo e criando seu próprio parecer, de que forma elege e quer ser melhor”.
Mexicano de nascimento, o professor que escolheu morar no Brasil e ser educador deseja que a educação no país seja integral e integradora, inclusiva e includente, “E que,cada vez mais, reconheça-se o trabalho dos profissionais da educação”.
Jordana Rodrigues, 33 anos, é natural de Manaus (AM) e trabalha há cinco anos na rede pública com alunos do ensino fundamental II como professora de Língua Portuguesa.
Durante a pandemia, a escola em que trabalha adotou o uso do WhatsApp como uma das ferramentas para dar as aulas, bem como enviar e receber as atividades, tirar dúvidas e explicar os conteúdos por áudios ou vídeos, além do uso do aplicativo Super Ensino e das aulas transmitidas pela televisão.
“Todos tivemos momentos muito difíceis, tanto psicológica como fisicamente. Para mim foi impactante adaptar-me às aulas remotas e atender os alunos on-line sem poder voltar à minha rotina normal”, contou.
Jordana apontou também o fato de vários colegas de trabalho e alunos terem entrado em depressão devido à perda de familiares e amigos: “Muitos alunos ficaram órfãos, outros estavam sofrendo abuso sexual em casa. Isso foi muito triste, ainda mais porque todos tivemos grandes perdas”.
No retorno às aulas presenciais, a professora viu a dificuldade dos alunos em retomar uma rotina de estudos: “Estavam desatentos, sonolentos, apáticos e precisamos interagir de diferentes formas para conseguir ministrar as atividades. Por outro lado, senti e sinto grande alegria ao perceber, pouco a pouco, que os meus alunos estão aprendendo, vê-los com sonhos, com vontade de seguir em frente e tendo esperança em um futuro melhor. Desejo que todas as pessoas tenham acesso a uma educação de qualidade e que o nosso país valorize mais os professores”, concluiu.
Claudionei Cella Pauli, 39, trabalha há doze anos na rede pública federal no Estado do Paraná como professor de Filosofia para os ensinos médio e superior. Para ele é difícil encontrar uma palavra para definir o trabalho durante a pandemia: “Talvez o termo ‘desafiador’ possa resumir um pouco os sentimentos e experiências ao longo da pandemia. Desafiador tanto no sentido negativo do termo, ou seja, no sentido das dificuldades encontradas, como, também, no sentido positivo, considerando que os desafios, na medida em que causam desconforto, podem nos tirar do comodismo e nos ajudar a crescer”.
Entre as principais dificuldades estava a sensação de incerteza com relação ao futuro: “A expectativa era de que o chamado lockdown seria por um curto espaço de tempo e que logo retornaríamos para a sala de aula. Porém, com o passar do tempo foi necessário começar a pensar, articular e colocar em prática alternativas tanto para manter o contato com os estudantes quanto para tentar dar andamento ao ano letivo”.
O acesso dos estudantes a tecnologias para acompanhar as aulas foi outro desafio. “Vários estudantes relataram não ter computador ou conexão com a internet via rádio ou fibra ótica. A maior parte dos estudantes até tinha celular, mas, contava com uma conexão limitada. A nossa preocupação era: como dar início às atividades sem deixar ninguém para trás?”, recordou Claudionei.
Ele salientou, ainda, o fato de muitos alunos não terem um ambiente adequado para acompanhar as aulas. Além de dividir o espaço de estudo com irmãos ou outros membros da família, muitos dividiam o tempo com o cuidado dos irmãos menores.
“Houve também o dilema de levar para dentro da casa dos estudantes a reflexão sobre temas que nem sempre saberíamos de que maneira seriam compreendidos pelos pais ou responsáveis e, nesse sentido, qual seria a reação deles. Isso porque alguns temas, embora façam parte do currículo escolar, ainda são vistos como tabus por algumas famílias”, disse o professor.
Para ele, o maior desafio foi lecionar num contexto no qual muitos estudantes e professores, semana após semana, perdiam familiares e amigos, mortos de maneira prematura, rápida e, na maior parte das vezes, sem a possibilidade de um enterro digno. No retorno às aulas presenciais, Claudionei sentiu forte insegurança diante da possibilidade de contrair covid e contaminar algum familiar seu.
“Do ponto de vista dos estudantes, a primeira impressão é de que houve – e ainda há – uma dificuldade maior de concentração, bem como deixar o celular de lado durante as aulas, por poucos minutos que seja”, comentou.
O professor, que recordou também o momento da chegada da vacina como muito relevante durante a pandemia, deseja que educação brasileira seja, de fato, vista como investimento e não apenas como gasto: “Que a educação brasileira seja entendida e considerada como um programa de Estado e não apenas como um programa de governo. Isso permitiria, por exemplo, que a troca de governo não interrompesse a continuidade e os investimentos em programas e estruturas educacionais que, comprovadamente, estão dando resultado apenas porque a ideia foi do outro candidato ou partido”.
Jodailma Leite trabalha como professora de Língua Portuguesa há dez anos. Atua na rede pública estadual da periferia de São Paulo (SP).
“Durante a pandemia, tivemos que nos reinventar, conhecer novas ferramentas tecnológicas, alcançar os alunos. Alguns professores tinham pouquíssimo conhecimento de informática e os professores entre si se ajudaram. Foi um momento de muita aprendizagem e partilha”, disse à reportagem.
Entre as dificuldades, ela ressaltou aquela de acompanhar e avaliar os alunos que não foram alcançados por meio das ferramentas tecnológicas: “As secretarias das escolas ficaram abertas e as atividades eram entregues de forma impressa, mas a divulgação dessa ação era feita por meio das redes sociais e muitos alunos não tinham nenhum acesso. É bom lembrar que uma boa parte não tinha nem mesmo o que comer, nem internet ou sofreu com perdas significativas na família. Os professores então avaliaram de forma humana, tentando acolher todos o máximo possível”, recordou.
“Muitas histórias me marcaram. Tive uma aluna de 13 anos que ficou com problema no fígado devido à covid e crianças que ficaram órfãs de pai e mãe. Uma professora amiga cuidava dos pais e dos filhos e os deixou desamparados, morrendo muito precocemente depois de ser infectada pelo vírus. Também me marcou a história de uma aluna do ensino médio, de 17 anos, que morava com oito pessoas e era a única trabalhando para sustentar a família. Ela faltou a muitas aulas porque estava sempre ocupada por causa do trabalho. Refletimos bastante sobre a desigualdade social nesse sentido, cientes de que o mais importante, naquele momento, era salvaguardar a vida”, contou Jodailma.
A professora ressaltou, ainda, o fato de as mortes de pessoas próximas e de muitos educadores serem vistas de forma fria, como se todos fossem somente parte de uma estatística.
“O retorno às aulas foi extremamente difícil porque estávamos em plena pandemia e todos com medo. Eu chorei na sala de aula em vários momentos e o sentimento que me dominava era o de insegurança. Aliás, isso era o que se sentia em toda a comunidade escolar”, contou.
Jodailma comentou sobre o fato de os alunos voltarem às aulas presenciais mais violentos, como se o distanciamento social tivesse afetado o convívio: “Tivemos vários casos de violência por causas banais. Talvez as dores e perdas foram causa de revolta, que se transformou em violência”.
Ela fez questão de reforçar que o que mais a deixa feliz em seu trabalho, para além da absorção do conteúdo por parte dos alunos, é perceber que estão desenvolvendo uma visão crítica em relação à sociedade: “Ver a luta para respeitarem suas diferenças e as diferenças dos outros. Os alunos precisam ter consciência dos seus direitos, de forma respeitosa, mas também crítica. Infelizmente, os professores têm enfrentado muita resistência. Mesmo se durante a pandemia viu-se, muito claramente, a importância do educador, isso não se transformou em valorização. Os professores precisam ser considerados sujeitos construtores, fundamentais para mudar o país. Que se crie uma realidade mais justa para com os alunos e que todos sejam respeitados plenamente em seus direitos humanos e sociais”, concluiu.
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