Dilemas pós-modernos na vida cristã
25/02/2014Batata Quente
26/02/2014Introdução
A presente reflexão está dividida em duas partes: a redescoberta da Igreja local e a Igreja local na Lumen Gentium. Dedicamos boa parte do texto à história, ainda que sumária, da recuperação das Igrejas particulares, porque, sem esse movimento anterior, a questão da Igreja local não teria sequer roçado o Vaticano II. A expressão “Igreja particular” é tomada aqui sobretudo no sentido primário de Igreja diocesana. Não entraremos, portanto, na questão do relacionamento entre as Igrejas particulares e destas com a Igreja de Roma, nem na questão da colegialidade, que, no Concílio, ainda diz respeito quase que exclusivamente às relações entre os presidentes dessas Igrejas, os bispos.
1. A redescoberta da Igreja local[1]
Os séculos XIX e XX viram nascer e afirmar-se sólida teologia da Igreja local. Pioneiro indiscutível de uma eclesiologia da Igreja local é, sem dúvida, o católico J. A. Möhler (1796-1838), teólogo romântico de Tübingen, prematuramente desaparecido, com sua obra sobre A unidade da Igreja, publicada em Tübingen em 1825.
A Igreja local não era um dado explícito na consciência dos padres conciliares do Vaticano I, mas acabou por tornar-se descoberta fundamental do Vaticano II. Chegou-se a esse resultado pela apropriação de aspectos que já antes do Concílio eram manifestos, mediante o retorno à história precedente da Igreja, ainda não marcada por divisões intraeclesiais e por confrontos coletivos com a sociedade moderna (1.1); mediante a necessidade de encontrar novas e mais eficazes formas de missão nas sociedades descristianizadas dos antigos países católicos (1.2); mediante uma reflexão sistemática sobre a Igreja no Novo Testamento, em sua tradição normativa e na sua autoconsciência contemporânea (1.3).
1.1. Volta às origens
Nessa lenta redescoberta da Igreja das origens e da originalidade cristã da Igreja católica e, nesse contexto, da consistência teológica da Igreja local, alguns elementos — aos quais acenaremos brevemente — foram determinantes.
Leão XIII, sentindo os limites eclesiológicos dos textos do Vaticano I, começa por chamar a atenção para os elementos interiores e constitutivos do mistério próprio da Igreja: naSatis cognitum (1896), apresenta a Igreja corpo de Cristo; na Divinum illud (1897), fala sobre o Espírito Santo e sua ação santificadora no indivíduo e na comunidade; na Mirae caritatis (1902), versa sobre a eucaristia, como sacramento de unidade da Igreja, “veluti anima ecclesiae”.
O paleógrafo, arquivista e liturgista Dom Adrien Gréa (1820-1927), com seu De l’Église et de sa divine constitution (1885), tem o mérito original de discorrer sobre a constituição da Igreja a partir da Igreja local (ou do grupo de fiéis ao redor do seu bispo) e não a partir do papa, como se fazia até as vésperas do Vaticano II.
Some-se a isso o trabalho sistemático e minucioso de historiadores protestantes, como A. von Harnack, e de historiadores católicos, como P. Batiffol, L. Duchesne, G. Bardy: “A situação das Igrejas locais durante os primeiros três séculos está ainda longe de ser clara aos olhos dos historiadores e, malgrado todos os estudos realizados nos últimos cinquenta anos, os nossos conhecimentos não progrediram com respeito aos resultados já adquiridos por um Duchesne ou um Harnack. No período que vai das origens até à metade do segundo século, há um conjunto de Igrejas locais que parecem ter entre si relações de organização muito fracas. Toda a vida da Igreja parece concentrar-se na comunidade local”[2].
Paralelamente, alguns exegetas, como K. L. Schmidt, recuperam elementos essenciais da Igreja do Novo Testamento. Sua dimensão teológica: a Igreja não é um agrupamento de indivíduos que nasce de baixo, mas uma convocação que Deus suscita do alto. Sua dimensão essencialmente comunitária: o chamado de Deus a um grupo para constituí-lo seu povo e para comunicar-lhe, enquanto povo, a sua salvação e torná-lo sinal e portador dessa salvação ao mundo. A sua dimensão local: não, faz sentido discutir se a Igreja designa a reunião de todas as comunidades, ou de cada uma delas, uma vez que, sendo a realidade teológica que Deus cria com o evangelho e o ministério apostólico, a realidade universal da Igreja como mistério está toda presente e operante na Igreja local. Vê-se, portanto, “em cada Igreja local, a realização da Igreja universal, seja como povo ou assembleia de Deus, seja como Igreja celeste presente na terra”[3].
Recolhendo longas e enviesadas pesquisas, o biblista A. Vanhoye escrevera em 1976 aquilo que o historiador P. Batiffol já identificara em 1895[4]: “Podemos dizer que o uso mais antigo da palavra ‘Igreja’ nos textos do Novo Testamento se refere a uma Igreja local. Nesse sentido, no Novo Testamento, a Igreja local apresenta-se antes da Igreja universal. De fato, o escrito mais antigo que temos é a primeira Carta de S. Paulo aos Tessalonicenses. Ela contém duas vezes a palavra grega ‘ekklesía’ (1Ts 1,1; 2,14). Em ambos os casos se refere à Igreja local”[5], e não ainda à Igreja como grandeza teológica, como mistério ou pléroma, englobando a totalidade das Igrejas, o que só acontecerá em Colossenses e Efésios.
Não se pode absolutamente esquecer também o fermento permanente de um pensamento diverso, elaborado por um grupo de intelectuais, artistas e monges dispersos pela Revolução Russa (1917) e reagrupados no Institut Saint-Serge, em Paris, cuja atuação converge e, muitas vezes, chega a coincidir com movimentos nascidos nas Igrejas provenientes da Reforma, como é o caso do ecumenismo, ou no seio da Igreja católica.
Aliás, no próprio seio da Igreja católica, a teologia, a liturgia, a espiritualidade e a exegese experimentam extraordinária fecundidade no período entre as duas Guerras Mundiais: em Maria Laach (Alemanha), o surgimento do movimento litúrgico, ao redor de Romano Guardini, Ildefons Herwegen e Odo Casel; nos mosteiros beneditinos de Mont César, Saint-André e Maredsous (Bélgica), Solesmes (França), Silos e Montserrat (Espanha), a recuperação de fontes litúrgicas patrísticas e medievais[6].
Em 1925, graças a um homem cheio de espírito ecumênico, Dom Lambert Beaudouin, surge o futuro mosteiro de Chevetogne, primeiro centro católico de encontro ecumênico na Europa, de onde nascerá, em 1926, a revista Irénikon, que ano após ano vai apresentando as perspectivas da eclesiologia oriental, alargando a consciência eclesial latina, ajudando a superar as categorias jurídicas, rompendo o horizonte romano de categorização eclesiológica e abrindo à compreensão sinodal, ao significado da catolicidade como copresença de pluralidades na unidade, num estudo criterioso das fontes, das práticas e das atitudes anteriores ao Cisma.
Nessas décadas emergem novas realidades espirituais na consciência, na reflexão e na prática eclesial graças aos estudos rigorosos de J. A. Jungmann, J. Pinsk, Erik Peterson, Pius Parsch, M. Festugiére: a celebração litúrgica, a comunidade, a eucaristia como centro da Igreja e a semana santa como centro do ano litúrgico.
Nesse clima, faz-se a recuperação histórica, teológica e litúrgica da eucaristia como elemento constitutivo da Igreja, à luz da qual se redescobre a Igreja local (O. Casel, H. Lietzmann, Gregory Dix, L. Bouyer etc.). Nasce assim, sobre a herança de A. S. Chomjakov (1804-1860), a eclesiologia eucarística (ainda que unilateral) de N. Afanassief[7] — que não a inventou, pois se trata de uma constante na ortodoxia —, continuada por seus discípulos A. Schmeman, J. Meyendorf e outros.
Toma-se consciência de que o bispo pertence à constituição interna da Igreja local e, enquanto tal, é constituído membro do colégio episcopal, ao mesmo tempo em que se toma consciência também da importância dos episcopados regionais e nacionais ou de áreas culturais, das Igrejas particulares ao lado da Igreja universal, do episcopado católico ao lado do papa[8], da sua própria consistência sacramental e pastoral, irrealizável sem a comunhão, sem a inserção jurídica no colégio e a obediência ao seu cabeça, o que é certamente elemento essencial, mas de modo algum fonte do poder episcopal.
A uma eclesiologia da “cefalização”, isto é, uma eclesiologia que, com propósitos de modernização, pretendia transformar o papa no episcopus ecclesiae catholicae no sentido de “bispo mundial” (cf. F. X. Wernz, J. Beyer e mesmo o genial K. Rahner), vê-se a necessidade de contrapor uma eclesiologia de comunhão, na qual o bispo, como cabeça da Igreja local, constitui um princípio absoluto da Igreja, pelo que a unidade desta não deriva de um chefe, situado em Roma, que depois a confere às outras Igrejas, mas se realiza juntamente com a catolicidade: unidade e catolicidade são simultâneas, da mesma maneira que o são a Igreja universal e as Igrejas particulares[9]. É necessário entender a Igreja universal a partir das Igrejas locais, cada uma delas essencial e simultânea à Igreja universal[10].
1.2. “França, país de missão?”[11]
A segunda vertente da redescoberta da Igreja local deve ser procurada no desafio representado pela descristianização da Europa e, consequentemente, na busca de novas formas de presença da Igreja, visando ao seu enraizamento não mais apenas nos longínquos continentes “missionários”, mas nas próprias nações “católicas” (plantatioEcclesiae). Nesse contexto, perguntava-se: qual a relação entre Igreja universal e Igreja local, que participação deve ter cada uma nessa ação missionária, como integrar os novos fiéis em cada uma delas, em que modalidades realizar a fé nas coordenadas concretas do espaço e do tempo?
No que interessa à nossa questão, as reflexões concentraram-se em três eixos principais: a relação entre comunidade e missão na Igreja das origens; a eclesiologia de comunhão e a Igreja local; missão e Igreja local nos dias atuais.
O clássico Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei Jahrhunderten, de A. von Harnack, já estabelecera uma conexão explícita entre missão e Igreja local. O ponto de partida da missão é sempre uma Igreja local com características próprias que envia algum (ou alguns) dos seus membros para pregar o evangelho; o ponto de chegada é o surgimento de uma nova Igreja local, feita de pessoas, símbolos e preocupações próprios da nova terra. A criação de uma comunidade com características próprias — liturgia, espiritualidade, teologia, disciplina — era o ponto de chegada e o coroamento do esforço missionário.
No mais amplo contexto da missão, a pregação cristã nos inícios do cristianismo tinha como conteúdo o anúncio de Jesus de Nazaré: a proclamação da vinda do Reino, a crucificação por parte das autoridades, a ressurreição por obra de Deus, o perdão dos pecados àqueles que criam (cf. At 2,14-39; 2,41-47). A acolhida da mensagem na fé dava origem a um fenômeno de intercomunicação, que, finalmente, gerava um fato comunitário global: “Essa pregação fundou, desde o princípio, comunidades sobre a terra, propondo-se como objetivo formar um grupo com os que criam em Cristo”[12].
Do ponto de vista organizacional, as comunidades assemelham-se, num primeiro momento, às sinagogas, às comunidades judaicas na Diáspora e, em parte, às escolas dos filósofos. Mais tarde, percebe-se, porém, claramente a diferença, pela realidade teológico-espiritual que as anima, por sua adesão a Cristo, pela experiência do Espírito que as sustenta, pela solidariedade entre seus membros, pela moral que praticam.
Dois elementos distinguem a ação missionária dos cristãos da de outros grupos: a integração teológica na Igreja universal (comunidade escatológica da salvação criada por Deus em Cristo e no Espírito) e a constituição de uma comunidade (por exemplo, a comunidade concreta de Corinto) que confere nova identidade aos seus membros e nova percepção do seu estar no mundo. O povo de Deus (qahal YHWH), o corpo de Cristo, o templo do Espírito não constituem realidade distante ou abstrata, mas acessível e concreta na comunidade de Corinto, reunida para celebrar a eucaristia! Estabelece-se, assim, uma correspondência entre a Igreja universal, como ideal de comunidade e sua profundidade real, e a comunidade particular, de tal maneira que o que era verdadeiro para uma pudesse ser válido também para a outra: “A comunidade de Corinto, de Éfeso etc é a comunidade de Deus”[13].
Historiadores do peso de A. D. Nock, R. Dodds e A. Festugiére demonstraram que essa unidade de “experiência teológica” (a comunidade concreta é comunidade de salvação em Deus) e “experiência humana” (a fraternidade, o amor solidário, o sentir-se importante para o outro, o cuidado de cada irmão na vida cotidiana da Igreja) tornou possível a existência do cristianismo das origens e tornará possível sua permanência na história. Na verdade, a realidade teológica da comunidade exprimia-se, de modo muito palpável, na solidariedade histórica, no amor fraterno, no sentido de pertença, no existir para alguém com dignidade: cada membro era algo de sagrado diante de Deus e de absoluto para os demais. Pode-se dizer, sem medo de errar, que o senso de pertença, o valor absoluto do indivíduo, o existir para alguém com dignidade, o não estar perdido na solidão representavam “o fato novo, a novidade absoluta do cristianismo. Isto é o que comoveu os corações. Isto é o que converteu. Não a palavra, mas o exemplo. Ou melhor: a verdade da palavra provada pelo exemplo… Eles viam o espetáculo desta caridade incessante e dela se beneficiavam. Se isso não tivesse existido, o mundo seria ainda pagão. E o dia em que isto deixasse de existir, o mundo voltará a ser pagão”[14].
A finalidade da missão é naturalmente múltipla: a conversão dos indivíduos após terem ouvido o evangelho; a criação de uma “communio fidelium”, pelo recebimento do batismo e a celebração da eucaristia, constituindo assim um corpo eclesial.
O conjunto do processo evangelizador consistia, portanto, no testemunho e anúncio do Reino de Deus, no evangelho tornado realidade na fé, na acolhida do Espírito, na participação nele mediante os sacramentos, e, finalmente, na constituição de uma comunidade ou, em outras palavras, no nascimento da Igreja, que subsiste por si própria, desde que nela estejam presentes os elementos que a tornem uma Igreja católica: uma comunidade de crentes, uma comunidade apostólica, uma comunidade eucarística. Com a eucaristia e o episcopado nascido naquele lugar, está definitivamente estabelecida a Igreja num lugar, num ambiente humano, numa cultura.
Dessa problemática se ocupou, na França, na Bélgica e na Alemanha, a chamada “teologia da missão”[15], centrada — num segundo momento — justamente na questão da “implantação da Igreja” (plantatio Ecclesiae), que retomava antigas interrogações: quem é o sujeito da missão; quando se pode dizer que a missão atingiu o seu objetivo; que lugar ocupa a Igreja particular na propagação da fé; não se poderiam imaginar Igrejas particulares diferenciadas, não local e territorialmente definidas, mas como agrupamentos de pessoas; os objetivos missionários não estão a exigir formas mais dinâmicas, adequadas às várias situações, locais e supralocais? As unilateralidades da Escola de Louvain foram abandonadas. Não obstante, pode-se falar ainda de missão também como “fundação de novas Igrejas”, “no sentido de novas comunidades, plenamente enraizadas em seu povo, com governo autônomo, usos e costumes próprios, formas próprias de expressar seu culto a Deus, como membros autossuficientes e emancipados da Igreja. Se o Concílio Vaticano II sublinha insistentemente o conceito de ‘Igreja particular’, distancia-se com isso de um universalismo abstrato e de um centralismo unilateral, dando assim uma notável contribuição à teologia das missões. Sob este aspecto, a palavra de ordem ‘fundar novas comunidades do povo de Deus’ é uma terminologia que consegue circunscrever a causa da missão de forma teologicamente correta”[16].
1.3. A incipiente reflexão teórica
É nesse contexto que surge uma das primeiras formulações teóricas da relação entre missão e Igreja particular: a conferência Théologie de l’Église particuliére, do dominicano Y. Congar, na Maison des étudiants, em Paris, no mês de fevereiro de 1959. A palestra, dividida em três partes (o primado ou a prioridade da Igreja universal; mediações para a realização da graça; tentativa de definição da Igreja particular), abordava os seguintes itens: preocupação missionária; atenção às mediações concretas da graça e não só à realidade teórica da salvação; as Igrejas como fato salvífico e como fato jurídico; o contexto pagão da França ao qual não se pode responder só com as dioceses ou as paróquias; a mobilidade das pessoas e grupos humanos que têm o seu ambiente pessoal e religioso num contexto diferente daquele em que vivem; a decisão de falar, consequentemente, de Igreja particular e não de Igreja local; a integração entre o aspecto de fé (“congregatio fidelium”), o aspecto de comunhão de vida em Cristo (“corpus mysticum Christi”) e o aspecto de realização social e de organização jurídica da Igreja (constituída “ut societas visibilis”)[17].
Seu pensamento aparecerá muito mais coerente e completo — e mesmo diferenciado — na obra coletiva, dirigida por ele e por B.-D. Dupuy, sobre o episcopado e a Igreja universal, justamente no capítulo, de sua autoria, “De la communion des églises à une ecclesiologie de l’Église universelle”[18]. Aí ele apresenta as causas e os processos históricos que fizeram passar de uma eclesiologia que partia das Igrejas locais em comunhão entre si (perspectiva ascendente) a uma eclesiologia que parte da Igreja universal e da unidade estabelecida pelo centro (perspectiva descendente). Pretendia ser um convite ao Concílio para que elaborasse uma concepção eclesiológica que partisse da catolicidade, que se radicasse nas Igrejas locais e, a partir delas, pensasse a Igreja universal como comunhão universal das Igrejas. No pós-Concílio, dois outros dominicanos desenvolverão — ainda que em sentidos diferentes — o projeto iniciado por Congar: o francês H.-M. Legrand e o canadense J.-M. R. Tillard[19].
Outro representante da teologia da Igreja local foi o jesuíta alemão K. Rahner, que, no início de seu ministério, esteve imerso na pastoral paroquial e engajado no movimento litúrgico. Elaborará sua reflexão a partir de quatro contextos existenciais: a) o ambiente pastoral em que começa a escrever, onde o pároco Rahner (“o pároco é um sacerdote ligado a um território”) é assaltado por preocupações pastorais: como fazer para tornar a Igreja real aqui? Como a salvação se torna evento neste lugar para este ser humano? Quem representa o sinal pessoal e próximo de Cristo no meio dessa comunidade? A sua resposta era clara desde 1943: a estrutura episcopal da Igreja, que é de direito divino; a Igreja local; a atualização da Igreja em e por meio da eucaristia[20]; b) o contexto ecumênico em que vive e pensa, onde, a partir de Lutero, se faz a diferença entreGemeinde (para significar a comunidade pessoal reunida num lugar para ouvir o evangelho, que a convocou) e Kirche (a figura jurídico-institucional, histórica e espacial da Igreja); c) a realidade acadêmica, que o leva a perguntar-se a que tipo de estrutura é a Igreja comparável (monarquia hereditária, eletiva, absoluta ou constitucional?); d) a reflexão sobre a natureza e a função dos bispos: em seu artigo “Über das Episkopat” (Sobre o episcopado), de 1964, aparece, pela primeira vez, uma reflexão explícita e sistemática sobre a natureza da Igreja local como forma fundamental da Igreja, como ponto real de interseção entre a salvação de Deus e o mundo dos homens, sobre o bispo como constituinte e presidente da eucaristia e, por isso, lugar primeiro e último da autoridade apostólica. A Igreja local é a base pela qual se explica a função episcopal como função própria, não como mero prolongamento do primado: “A Igreja não é um Estado centralista de ordem sobrenatural, mas está constituída por comunidades eucarísticas, cada uma das quais realiza integralmente a essência da Igreja, pelo que cada uma delas pode também chamar-se ‘Igreja’ (Igreja de Corinto, de Éfeso, de Tessalônica etc.). Por isso, existe uma função de regime que não se pode resolver numa função administrativa do primeiro, assim como a comunidade local de eucaristia não pode transformar-se em mero distrito administrativo da Igreja universal”[21]. Diante do universalismo abstrato e centralizador, afirma, portanto, a realização local da Igreja católica: “A Igreja em sua totalidade, quando se ‘realiza’ em sentido pleno, é necessariamente Igreja local; a Igreja total pode ser apreendida na Igreja local”[22].
2. A Igreja local na Lumen Gentium
A eclesiologia do Vaticano II, “embora se apresentando globalmente como universalista, enquanto sublinha sobretudo os fatores que asseguram sua unidade e missão em nível universal, todavia chamou a atenção também para os princípios que constroem a Igreja particular (não só reconsiderando a figura e o papel do bispo e do presbitério, mas também dando relevo à força criadora da palavra viva e dos sacramentos, sobretudo da eucaristia)”[23].
Se a essência da realidade da Igreja (o “que” a Igreja é) está na ação do Cristo ressuscitado e do Espírito, por meio da palavra e dos sacramentos e (em outro nível) dos carismas e ministérios, ao que devem corresponder a fé e a caridade ativa da comunidade cristã em tensão missionária, assim como do testemunho em relação ao mundo, “então (…) ela subsiste realmente, e sobretudo, nas comunidades locais, nas Igrejas particulares” (“quem” é a Igreja)”[24].
A Lumen Gentium aborda a questão das Igrejas particulares em seis parágrafos[25], todos preciosos para se entender a eclesiologia conciliar da Igreja local.
O primeiro — Lumen Gentium 13 — encontra-se no contexto do tratamento da catolicidade, que o Concílio entende fundamentalmente como abertura multiforme ao todo e a todos, como unidade na pluralidade e a partir da pluralidade (nn. 13-16). Se o povo messiânico se funda não sobre valores e fatores contingentes e limitativos, mas sobre bens transcendentes e universalizantes, ele poderá e deverá abrir-se para acolher e valorizar toda a riqueza das diversidades positivas, numa catolicidade ad extra(povos e culturas) e ad intra (Igrejas particulares): “Por força desta catolicidade, cada parte contribui com os seus dons peculiares para as demais e para toda a Igreja, de modo que o todo e cada parte crescem por comunicação mútua e pelo esforço comum em ordem a alcançar a plenitude na unidade”. A Igreja não teria credibilidade perante o mundo, se não fosse capaz de valorizar dentro de si própria a diversidade na unidade. Por isso, o povo de Deus não só reúne povos diversos e, como já acenara Pio XII, compõe-se de diversas ordens[26], mas também contempla no seio da comunhão eclesial Igrejas particulares, gozando de tradições próprias, sem prejuízo do primado da cátedra de Pedro, que preside à comunhão universal da caridade, protege as diversidades legítimas e, ao mesmo tempo, vela para que as particularidades não só não prejudiquem a unidade, mas para ela contribuam mesmo positivamente”. Fala-se aqui pela primeira vez de “Igrejas particulares” em sentido estrito, quer dizer, Igrejas que têm “tradições próprias” e “diversidades legítimas” que devem ser pelo menos “veladas”[27]. A comunhão (“vínculos de comunhão íntima”) se traduz em comunicação, isto é, troca e cooperação entre Igrejas irmãs, em três níveis: riquezas espirituais, operários apostólicos, recursos materiais. Por último, apela-se à doutrina dos carismas: “A cada uma das Igrejas se aplicam as palavras do apóstolo: ‘Sede hospitaleiros uns com os outros, como bons dispensadores da multiforme graça de Deus’ (1Pd 4,10). Aplica-se à relação entre Igrejas o princípio que norteia a relação entre os membros de uma comunidade: valorizar os vários carismas para que seja construída a harmoniosa unidade do corpo. O papado estaria a serviço da promoção das variedades carismáticas próprias das várias Igrejas, e, assim, a comunhão universal representaria toda a riqueza dos bens oferecidos por todos.
O segundo texto a falar de Igreja particular — Lumen Gentium 23 — está ligado ao tema do colégio episcopal (nn. 18-23). Para o Concílio, a Igreja universal não podia ser uma realidade imediata, mas a comunhão das Igrejas locais, uma vez que a Igreja local é presença e manifestação plena — embora não total — da Igreja de Cristo. Depois de dizer que “cada bispo é o princípio e o fundamento visível da unidade na sua Igreja particular”, Lumen Gentium 23 faz três afirmações sobre nosso tema: a) as Igrejas particulares são formadas “à imagem da Igreja universal”, que, naturalmente, não é a Igreja de Roma nem uma abstração nem uma ideia platônica, mas a comunhão de todas as Igrejas particulares; b) “nas quais e a partir das quais resulta a Igreja católica una e única”: toda a profunda realidade eclesial subsiste em cada Igreja particular (“in quibus” = nas quais), mas, ao mesmo tempo, cada Igreja particular leva a sua riqueza para a edificação da totalidade da Igreja, a qual tira a sua existência das Igrejas particulares (“ex quibus = das quais); c) “cada bispo representa a sua Igreja, e todos, juntamente com o papa, representam toda a Igreja no vínculo da paz, do amor e da unidade”. Seria a primeira vez, nos textos do Magistério, que encontramos esse tipo de declaração — comum, aliás, na Igreja antiga; é comum, pelo contrário, na teologia posterior, a insistência na “representação do alto”, em que bispos e presbíteros agem “in persona Christi”, como seus lugares-tenentes, seus ícones, seus vigários![28] Para o Vaticano II, na verdade, a Igreja universal não podia ser uma realidade imediata, mas a comunhão das Igrejas locais, uma vez que a Igreja local é presença real e manifestação plena — embora não total — da Igreja de Cristo. É nesse mesmo contexto que a Lumen Gentium, depois de falar da responsabilidade dos bispos para com a comunhão universal das Igrejas, aborda a questão da comunhão regional (patriarcados e conferências episcopais), fundamentando-a na praxe antiga das Igrejas próximas: “Nesta comunhão universal de caridade, os bispos prestem, de boa vontade, ajuda fraterna às outras Igrejas, especialmente às mais próximas e às mais pobres, seguindo o exemplo venerando da Antiguidade. Dispôs a divina providência que várias Igrejas, fundadas em diversas regiões pelos apóstolos e seus sucessores, se reunissem com o decorrer dos tempos em grupos organicamente estruturados, que, salvaguardando a unidade da fé e a única constituição divina da Igreja universal, gozam de disciplina, de liturgia e de tradição teológica e espiritual próprias. E, algumas dessas, especialmente as antigas Igrejas patriarcais, como mães da fé, geraram filhas, às quais continuaram ligadas até hoje por vínculos mais íntimos de caridade na vida sacramental e na observância mútua de direitos e deveres. Esta variedade das Igrejas locais, assim a tenderem para a unidade, demonstra, com maior evidência, a catolicidade da Igreja indivisa. De modo semelhante (“simili modo”, não “eodem modo” = da mesma maneira), as conferências episcopais podem hoje desenvolver uma ação variada e fecunda, para que o espírito colegial encontre aplicações concretas”[29].
No número 26 da Lumen Gentium, no contexto da apresentação do múnus episcopal de santificar, aparece verdadeira pérola de eclesiologia eucarística, redigida, segundo o testemunho de alguns, por K. Rahner[30]: “O bispo, revestido da plenitude do sacramento da ordem, é o administrador da graça do sumo sacerdócio, especialmente na eucaristia que ele mesmo oferece ou manda oferecer, e pela qual a Igreja vive e cresce continuamente. Esta Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas assembleias locais de fiéis, que, unidas aos seus pastores, recebem, elas também, no Novo Testamento, o nome de Igrejas. São, em cada território, o povo novo, chamado por Deus no Espírito Santo e em grande plenitude (cf. 1Ts 1,5). Nelas se reúnem os fiéis por meio da pregação do Evangelho de Cristo e se celebra o mistério da ceia do Senhor, ‘para que, pela carne e o sangue do Senhor, se mantenha estreitamente unida toda a fraternidade do corpo’. Em cada comunidade reunida em volta do altar, sob o ministério sagrado do bispo, é oferecido o símbolo daquela caridade e ‘daquela unidade do corpo místico sem a qual não pode haver salvação’. Nessas comunidades, por mais reduzidas, pobres e dispersas que sejam, está presente Cristo, em virtude do qual se congrega a Igreja una, santa, católica e apostólica. Na verdade, ‘a participação no corpo e no sangue de Cristo não opera outra coisa senão a nossa transformação naquilo que recebemos’[31]. Esse parágrafo é tão importante que, ao comentá-lo, Sartori diz que “com isso já se teria dito tudo; o número não implica muita teologia; tem um tom prevalecentemente pastoral. Mas no seu interior nos é oferecida uma pérola (a terceira, depois dos nn. 13 e 23) sobre a ‘Igreja particular’; aliás, desta vez se fala de ‘comunidades locais’, e (estupendo!) se colocam em primeiro plano aquelas ‘pequenas, pobres e dispersas’, nas quais, estando presente Cristo, se congrega a Igreja una, santa, católica e apostólica[32].
Depois que o papa Gelásio I (492-496), firme defensor da supremacia papal, usou pela primeira vez o título de “vigário de Cristo”, que, porém, só passou a estar ligado exclusivamente ao bispo de Roma no pontificado de Eugênio III (1145-1153)[33], outras aplicações desse título — por exemplo, aos simples cristãos, aos pobres, aos bispos — foram progressivamente desaparecendo. O Vaticano II retoma a antiga tradição e qualifica os bispos como vigários de Cristo: “Os bispos regem como vigários e legados de Cristo as Igrejas particulares a eles confiadas, com os seus conselhos, exortações e exemplos, e ainda com a sua autoridade e o seu poder sagrado, de que se servem unicamente para fazer crescer a sua grei na santidade e na verdade, lembrados de que quem é o maior deve tornar-se o menor, e o que governa como aquele que serve (cf. Lc 22,26-27)”[34]. Daí se depreendem duas coisas. A primeira já fora afirmada pelo Vaticano I, mas, no clima de absolutização do papado que se viveu desde então, com raras exceções, ficava na sombra e passava despercebida: “Este poder, que pessoalmente exercem em nome de Cristo, é próprio, ordinário e imediato (…). Por força deste poder, os bispos têm o direito sagrado e, diante do Senhor, o dever de legislar para os seus súditos, de julgar e regular tudo quanto diz respeito à organização do culto e do apostolado”[35]. A segunda, retomada de pronunciamentos de episcopados e de papas já imediatamente depois do Vaticano I, aos quais, porém, não se dava muita atenção, é que os bispos — nem depois das definições do primado e da infalibilidade pontifícios do Vaticano I não podem ser qualificados como “vigários do papa”: “A eles está confiado plenamente o ofício pastoral, isto é, a solicitude habitual e cotidiana das suas ovelhas, e não devem ser considerados como vigários do Romano Pontífice, já que estão revestidos de poder próprio, e são chamados, com toda a verdade, os chefes dos povos que governam. Por isso, o seu poder não fica anulado pelo poder supremo e universal, mas antes é por ele confirmado, fortalecido e defendido, conservando o Espírito Santo intacta a forma de regime que Cristo Senhor nosso estabeleceu na sua Igreja!”[36].
A afirmação seguinte da Lumen Gentium sobre nosso tema aparece no interior do tratamento das relações dos presbíteros com o bispo: “Os presbíteros, chamados ao serviço do povo de Deus, como prudentes cooperadores da ordem episcopal, seus auxiliares e instrumentos, constituem com o bispo um único presbitério, embora destinado a funções diversas. Em cada uma das comunidades locais de fiéis, como que tornam presente o bispo a quem estão unidos pela confiança e magnanimidade de espírito, e de cujo cargo e solicitude tomam sobre si uma parte, exercendo-a com dedicação todos os dias. Sob a autoridade do bispo, santificam e dirigem a porção da grei do Senhor que lhes foi confiada, tornam visível nesse lugar a Igreja universal e dão o seu contributo eficaz para a edificação de todo o corpo de Cristo (cf. Ef 4,12). Interessados sempre no bem dos filhos de Deus, procurem colaborar na ação pastoral de toda a diocese e mesmo da Igreja inteira”[37]. Mais adiante, o texto afirma que os presbíteros — também os presbíteros religiosos — são associados, em virtude do sacramento da ordenação, ao corpo episcopal: “Em virtude do sacramento da ordem e do ministério, todos os sacerdotes, quer diocesanos, quer religiosos, estão unidos ao corpo episcopal e trabalham para o bem de toda a Igreja, segundo a vocação e a graça de cada um (…)”[38].
Nesse sentido — e assim chegamos à última afirmação da Lumen Gentium sobre a Igreja particular —, os religiosos, embora possam gozar de isenção, não estão dispensados da comunhão com a Igreja particular em que estejam atuando pastoralmente e mesmo da obediência a ela: “Os membros de todos estes Institutos, no cumprimento dos deveres para com a Igreja, segundo a sua forma peculiar de vida, devem prestar reverência e obediência aos bispos, conforme as leis canônicas, em virtude da autoridade pastoral que eles têm nas Igrejas particulares e para se manter a concórdia e unidade necessárias na ação apostólica”[39].
Conclusão
O passo dado pelo Concílio foi enorme, superando, assim, séculos de hipertrofia absoluta da cabeça romana da Igreja[40]. Algumas instituições foram valorizadas ou estimuladas pelo próprio Concílio para dar corpo e solidez à eclesiologia da Igreja local. Além da celebração eucarística[41], que é, sem dúvida, o elemento primordial, e da presidência da Igreja local pelo bispo, o Concílio valoriza o instituto do presbitério[42], a pluralidade carismática e ministerial[43], a atuação de um laicato de verdadeira expressão[44], no contexto de ampla e articulada “sinodalidade”[45]. Algumas dessas, instituições foram canonicamente traduzidas e recebidas: o sínodo diocesano[46], as assembleias diocesanas e suas congêneres paroquiais[47], o conselho pastoral diocesano[48], o conselho presbiteral[49], o conselho de leigos[50], o colégio de consultores[51] e o conselho de assuntos econômicos[52]. Mas resta ainda longo caminho a percorrer na consciência e na prática para chegarmos — em nível local — àquela Igreja de comunhão e participação que acalentamos em nossos sonhos.
Fonte: Revista Vida Pastoral