“Fez então um chicote de cordas e expulsou todos do templo” (Jo 2,15)
Na história da humanidade, frente a uma ordem social e religiosa injusta estabelecida, surgiram aqueles que que se rebelaram…Há transgressores necessários, para o bem da humanidade. Eles se opõem a uma ordem social e religiosa injusta, para assim criar uma humanidade mais justa e solidária, abrindo um espaço para os excluídos, um caminho de amor para os rejeitados…
Entre esses transgressores está Jesus. Por isso o rejeitaram e o mataram. Em nome de um Deus que a todos acolhe e chama, que é Pai de todos, Jesus transgrediu a norma da “boa sociedade”, mergulhou no submundo da exclusão, da miséria…
Normalmente os transgressores rompem alguns limites para traçar outros, mudando um sistema que julgam imperfeito por outro que lhe parece mais perfeito. No entanto, Jesus, o transgressor messiânico, superou e quebrou as barreiras anteriores não para criar outras, senão para abrir um espaço e caminho de vida que pode ser universal.
Os seguidores de Jesus se identificam como “transgressores” reunidos a partir da gratuidade do amor, acima da lei. O gesto de Jesus não pode se converter em princípio de uma nova lei religiosa, mas deve ser compreendido como fonte humanizadora, manancial de autonomia criadora. Isso significa que Ele quis que os seus seguidores assumissem e deslanchassem um caminho de autonomia criadora sobre o mundo.
Segundo o relato do evangelho de João, na sua primeira subida ao Templo, Jesus, com seu gesto ousado, rompe esse mundo religioso fechado, introduzindo uma novidade; com uma audácia desconhecida surpreende a todos, abrindo um novo caminho entre nós para humanizar a religião. O mundo querido por Deus vai mais além da tirania do Império e mais além do estabelecido pela religião do Templo.
Atacar o Templo era atacar o coração do povo judeu: o centro de sua vida religiosa, social e econômica. O templo era intocável. Ali habitava o Deus de Israel. Jesus, no entanto, se sente um estranho naquele lugar: aquele templo não é a casa de seu Pai nem é o espaço da acolhida dos marginalizados, mas um mercado. O Pai dos pobres não pode reinar a partir deste templo. Com seu gesto profético, Jesus está denunciando, na raiz, um sistema religioso, político e econômico que se esquece dos últimos, os preferidos de Deus.
Jesus nasceu e viveu numa sociedade religiosa. Seguramente foi educado na religião de seu contexto. Mas em seu processo pessoal foi questionando uma religião que oprimida as pessoas e não as fazia felizes, e que, além disso, justificava a opressão de umas classes sociais (sacerdotes, grupos próximos ao Templo, ricos, fazendeiros, poderosos politicamente…) sobre outras (pobres, mendigos, camponeses empobrecidos, excluídos sociais, enfermos, viúvas, escravos…).
Jesus se encontrava com o Pai não no espaço sagrado do Templo, nem no tempo sagrado do culto religioso, mas no espaço “profano” da convivência com as pessoas. A partir de sua religiosidade Jesus foi descobrindo um Deus não distante nem cruel, mas próximo, misericordioso, a quem chamava “Abba”. E começou a anunciar que Deus queria para os seus filhos e filhas uma dignidade, uma felicidade, uma humanidade e relações de amor que as levariam a uma sociedade igualitária, fraterna, justa…
Jesus era visto como um forasteiro perigoso e um subversivo que entrou em conflito com a religião oficial (Templo e Lei). Viveu e pregou na Galileia: era o melhor lugar para anunciar sua mensagem e seu projeto, região de pobres, ignorantes e impuros. Com eles Jesus assumiu uma “conduta desviada”.
A “religiosidade” de Jesus é radical porque se fundamenta na comunhão. Historicamente temos comprovado que as religiões normalmente separam, dividem, marginalizam, excluem, condenam. Daí tanta intolerância e violência religiosa. Seu conflito com o Templo o levou à ação mais violenta. Com seu gesto Jesus reprova os profissionais da religião que se servem do Templo para justificar as maiores violências. Mas Jesus não fez isso para “purificar” ou “restaurar” uma religião muito primitiva e substitui-la por um culto mais digno e ritos menos sangrentos; seu gesto transgressor tem um conteúdo mais radical: a destruição de tudo o que o Templo significa, pois Deus não pode ser conivente com uma religião tecida de interesses e egoísmos. Jesus não pode ver ali a “nova família de Deus” que começou a formar com seus seguidores.
De fato, o poder religioso é o mais nefasto e o mais desumanizador quando transforma a religião em um sistema opressor dos seres humanos, e é utilizada por aqueles que detém o controle dela para dominar as pessoas com argumentos religiosos (pecado, demônio, inferno, medo da condenação eterna…). Assim tem sido durante muitos séculos e em muitas culturas e civilizações.
O projeto de Jesus é radicalmente diferente do projeto da religião. Na realidade, Jesus não estava preocupado em fundar uma nova religião. Nem os primeiros cristãos consideravam o seguimento de Jesus como uma religião, mas como um “caminho” (eram conhecidos como seguidores do “caminho”), um projeto de vida, um modo de viver. Para uns eram considerados uma “seita”, para outros, como “ateus”.
Literalmente falando, podemos dizer que Jesus não “fundou” uma religião, mas Ele é o fundamento da religião cristã. O que, com certeza, se pode afirmar é que deslocou a religião: tirou-a do “espaço sagrado” e a colocou “na vida”, nas relações amorosas de uns para com os outros, no espírito de serviço compassivo para com os mais sofredores. Por isso, a única fez que o NT utiliza a palavra “religião” é para dizer que ela consiste em “cuidar dos órfãos e viúvas em suas necessidades e em não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg. 1,27).
Da mesma maneira, quando o NT exorta os cristãos a pôr em prática o ato central da religião, o “sacrifício”, afirma que os sacrifícios que “agradam a Deus” são a “solidariedade e fazer o bem” (Heb 13,16). O NT desloca a religião, do “sagrado” ao “cotidiano”, dos ritos às relações entre as pessoas.
A religião daqueles que seguem a Jesus deve estar sempre a serviço do Reino de Deus e sua justiça.
Texto bíblico: Jo 2,13-25
Na oração: O gesto “indignado” de Jesus no Templo deve despertar em nós, seus seguidores, uma pergunta provocativa: que religião estamos cultivando em nossos templos?
• Temos de revisar se nossas comunidades cristãs são um espaço onde todos possam se sentir acolhidos na “casa do Pai”; uma comunidade acolhedora onde não se fecham as portas a ninguém e onde não se exclui nem discrimina ninguém; uma casa onde todos aprendem a escutar o sofrimento dos mais desvalidos e não o próprio interesse; uma casa onde todos podem invocar a Deus como Pai porque todos se sentem seus filhos e buscam viver como irmãos (cf. Pagola).
• Considerar se o templo de nosso coração é realmente “casa de oração”, “casa de encontro com Deus e comunhão com os outros”, ou antes, uma espécie de “feira” onde compra-se, vende-se e negocia-se de tudo.
Se olharmos para nossa interioridade, podemos cair na conta de que carregamos uma quantidade de “bois, ovelhas, pombas e mesas de cambistas” que tornam nossa vida pesada e auto-centrada. Como se sentiria Jesus ao visitar nossos corações?
Texto escrito por Pe. Adroaldo Palaoro sj
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