Os quarenta dias de Jesus no deserto têm um significado teológico e simbólico. Remete aos quarenta anos dos israelitas no deserto. Esse foi um tempo de preparação, de dificuldades e provas para a fidelidade nem sempre presente. Os quarenta dias de Jesus no deserto o preparam para iniciar a sua missão e do novo povo de Deus.
O texto de Mateus 4,1-11 apresenta as tentações de Jesus no deserto. Depois do Batismo, Ele é movido pelo Espírito a retirar-se para o deserto, onde sofre as tentações. É o primeiro momento de um combate que se estenderá em outras ocasiões. Haverá muitos momentos em que Jesus sentirá a voz de Satanás. Ele sentirá a tentação no horto das Oliveiras e na própria cruz e será sua confiança no Pai e na Palavra de Deus que sempre o ajudará a resistir e a vencer.
O texto utiliza duas expressões: diabo e Satanás. “Diabo” é uma palavra grega que significa “separar”, “dividir”. Diabólica é a ação que separa, criando divisões. “Satanás” é uma palavra hebraica que significa “adversário”, “o acusador” (Jó 1,6; Sl 109,6), “o inimigo que dificulta planos e projetos”. A tentação procura “separar” Jesus dos “planos de Deus”.
A primeira tentação: Jesus é tentado a possuir, a ter. É tentado a aproveitar o fato de ser o Filho de Deus para resolver o problema da fome com abundância de alimentos, transformando as pedras do deserto em pão (cf. Mt 4,2-4), a fazer uso de ter um poder. Essa primeira tentação reflete o clima apocalíptico da época. A maioria tinha ideia do Messias poderoso que agiria com a força e poder divino como Deus fizera no Egito, vencendo, destruindo o inimigo. Esperava-se o Messias que mudasse rapidamente a situação do povo, porém, para Jesus a fartura do pão não deveria ser manifestação de poder, de ter, mas fruto da solidariedade fraterna e da gratuidade de Deus. Ter tudo, abundância de um lado, enquanto a maioria tem pouco e passa fome, isso é uma contradição à proposta de um Deus que quer que todos participem e tenham vida em abundância. Jesus responde ao diabo citando Deuteronômio 8,3: “O homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Mt 4,4). A Palavra de Deus é alimento. Ele nunca abandona seus filhos e filhas. Jesus sabe que o Pai lhe dará o necessário e a sua segurança está na fidelidade ao seu desígnio de amor e salvação.
A segunda tentação: Jesus é tentado a ter glória, a usar seu poder e a questionar sua confiança na proteção de Deus (cf. Mt 4,5-7). O diabo cita o Salmo 91, no qual Deus promete que cuidará dos justos. Em resposta, Jesus cita Deuteronômio 6,16, que a Deus não se deve questionar, tentar, pois a insegurança está na pessoa: “Não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4,7). Conhecer o projeto de Deus é uma responsabilidade, não algo para se acreditar importante. A segunda tentação deixou bem claro o sonho político do povo judeu do Messias triunfalista, um grande líder cheio de poder. Jesus não participou disso e, por essa razão, ao morrer na cruz pelas mãos de que quem deveria ter sido destruído, vencido, foi considerado um fracassado, maldito.
A terceira tentação: é a tentação do poder. O poder sobre “todos os reinos do mundo” (Mt 4,8) é oferecido a Jesus se Ele render homenagem àqueles que têm projeto contrário a Deus (cf. Mt 4,8). A comunidade cristã também é tentada a entender o seu poder como sendo de dominação e não de serviço, entrega, doação. As conquistas históricas, sejam políticas ou religiosas, não podem ser confundidas com o Reino de Deus. Essa identificação transformaria os líderes dessas conquistas históricas em heróis, senhores e governantes. Diante disso, Jesus lembra, também hoje, que só Deus deve ser servido (cf. Mt 4,10). O Reino de Deus deve tornar-se presente na história a partir de agora, como também conduzir-nos a realidades que estão para além da história.
As tentações: o desejo de possuir, acumular glória e alcançar o poder são, na realidade, uma única tentação, pois o único desejo de Satanás é desviar Jesus de sua vocação de filho obediente de Deus. As duas primeiras começam com a mesma expressão, “Se tu és o Filho de Deus”, e pretendem pôr Jesus à prova. Aqui há duas maneiras de entender o que significa ser o Filho de Deus: para o tentador, equivale a ter poder e glória; para Jesus, ser o Filho de Deus significa fazer a vontade do Pai. Essa passagem é um reflexo das discussões que a comunidade de Mateus vivenciou. Muitos judeus não conseguiam entender o escândalo de Jesus ter morrido na cruz desprovido de todo poder e glória e por isso se recusaram a reconhecê-lo como o Filho de Deus, mas, para os cristãos, essa morte em absoluta obediência à vontade do Pai (cf. Mt 26,36-46) foi o sinal mais claro de que Ele era o Filho de Deus.
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