Há 40 anos de distância, num mundo de mudanças extremamente rápidas, a Constituição dogmática Lumen Gentium permanece atual e contém novidades ainda não assimiladas pelo conjunto da Igreja católica. Nada melhor que fazer uma rememoração no sentido profundo do termo. Captar-lhe as intuições fundamentais na contingência de seu momento histórico e atualizá-las nas vicissitudes presentes. Processar uma operação hermenêutica que é uma leitura eclesial de hoje à luz dos ensinamentos básicos dos padres conciliares[1].
1. A “virada copernicana”
Do “geocentrismo” hierárquico passou-se para o “heliocentrismo” de todo o povo de Deus. O segundo milênio é conhecido como o movimento de deslocamento do polo dos leigos para o do clero. À primeira vista, soa um processo de dominação, de imposição da hierarquia sobre os outros membros do povo de Deus. Nada, porém, na história é pura dominação, nem libertação transparente. Vivemos em todos os tempos a mistura cinzenta de dominação e emancipação nos processos históricos. Naturalmente não com a mesma tonalidade.
O crescente poder dos senhores feudais sobre a instituição da Igreja na escolha dos hierarcas, na definição dos procedimentos eclesiásticos e nos mais diversos campos reduzia a margem de manobra do poder romano. E muitos abusos firmavam-se e assumiam o estatuto de legalidade. A fragmentação do poder na Igreja não facilitava a vitalidade evangélica das Igrejas nacionais e locais.
A partir do século XI, por influência especialmente de Cluny, processou-se um movimento de libertar a Igreja do poder dos senhores feudais e de morigerar um clero entregue à simonia, frequentemente isento da autoridade episcopal, já que criado pelos senhores do poder temporal. A eclesiologia acentua cada vez mais o poder da Igreja romana, vista como “cabeça”, “mãe”, “fonte”, “cerne”, “fundamento”. Gregório VII insiste nos princípios de uma eclesiologia jurídica, dominada pela instituição papal. Na ordem eclesiástica todo poder deriva do papa. Gregório VII declara-se “universalis pontifex”, “universalis Ecclesiae episcopus”, isto é: “pontífice universal”, “bispo da Igreja universal”[2]. Título, aliás, que Paulo VI usa, ao assinar os documentos do Concílio Vaticano II.
Naquele momento tal processo constituiu libertação para uma Igreja que vinha sendo submetida ao arbítrio dos senhores feudais. A inspiração de liberdade, a necessidade histórica, a superação das contingências pediam uma centralização em defesa dos mais fracos. É sabido que os dominadores mais próximos são os piores, por atingirem diretamente as pessoas. Retirando-lhes parte do poder e reservando-o para si, Roma pretendia defender o bem, a verdade, a liberdade da Igreja.
No entanto, a ambiguidade desse movimento manifestou-se cada vez mais claramente. O poder eclesiástico reforçou-se cada vez mais e se impôs durante muitos séculos sobre os próprios poderes políticos. Roma foi-se crendo cada vez mais poderosa, chegando, nos pontificados de Inocêncio III e Bonifácio VIII, a pontos altos. Este último exprimiu seu poder absoluto com base na metáfora dos astros. Considerou-se o sol. Os outros poderes civis eram a lua, que recebe do sol toda a luz. Estávamos já bem longe do Jesus da história e do Pedro do lago de Genesaré. Os papas preferiam ver-se no lugar do Cristo glorioso a imitá-lo na humilhação da carne. Esqueciam que estavam na terra e que lhes cumpria seguir o Jesus histórico. Eram sucessores de um Pedro humilde em acatar as invectivas de Paulo, despretensioso, convertido de uma traição até as lágrimas.
A história continua oferecendo lições. O papa não renunciou ao poder temporal, mas este foi-lhe arrancado à força por ocasião da unificação da Itália. Apesar do solene non possumus de Pio IX diante da perda dos territórios pontifícios, não lhe restou outra alternativa além de se declarar prisioneiro do Vaticano, ao ver que não lhe sobrara senão um minúsculo reduto geográfico.
A partir de então, inverteu-se o sinal do poder pontifício, ou, mais exatamente, concentrou-se na esfera espiritual e interna da Igreja, cuja expressão visível foi a declaração do dogma do Primado e da Infalibilidade do Romano Pontífice no Concílio Vaticano I (1870).
A era dos Pios continuou até Pio XII (†1958), em crescente centralização de poder, com a consequente reprodução de tal centralidade nos níveis diocesanos e paroquiais. Até aqui para entender o “geocentrismo” hierárquico anterior à Lumen Gentium.
A aqui denominada “virada copernicana” veio de uma votação histórica dos padres conciliares. O esquema sobre a Igreja punha o capítulo acerca da hierarquia antes de tratar de todo o corpo dos fiéis. Era clara afirmação de que a vida dos fiéis na Igreja dependia e se originava da hierarquia. Esta estabelecia as verdadeiras balizas dentro das quais os leigos se situavam e se entendiam. Pio X tinha afirmado peremptoriamente: “Só na hierarquia reside o direito e a autoridade de orientar e dirigir […]. O dever da multidão é deixar-se governar e seguir com obediência a direção dos que a regem”[3].
Posto tal esquema em discussão, o voto dos padres levou a que se invertesse a ordem. Não se tratava de algo puramente redacional, mas teológico-simbólico. Primeiro o povo de Deus que se constitui pelo batismo, primeiro o sacerdócio comum dos fiéis, também ele fundado no batismo. A seu serviço está a hierarquia. Estava jogada a grande cartada eclesiológica. Estabelecia-se a base laical da Igreja.
2. A base laical da Igreja
Eis aqui um dos traços mais importantes da Lumen Gentium: dizer que a base da Igreja é laical significa afirmar que ela é povo de Deus. Povo, em grego, é laos, donde vem o termo leigo e o adjetivo laical. Dessa maneira, põe-se no centro da vida da Igreja o batismo, que nos faz todos membros iguais de um mesmo povo de Deus. Sobre tal igualdade fundamental, e após ela, virão as diferenças de ministérios e carismas.
Em termos políticos, temos duas palavras que exprimem experiência análoga de quem, pelo nascimento e registro, se torna membro de um povo: cidadania e autonomia. O membro de um país sente-se livre, autônomo em relação às autoridades. Não recebe delas o direito de nacionalidade, mas do fato do nascimento e registro. Assim, de maneira semelhante, não é a hierarquia que nos constitui cristãos, mas o nascimento pelo batismo. Essa dimensão de autonomia não significa independência nem rebelião. Ninguém é independente de ninguém. Todos temos laços de relação que nos fazem mutuamente dependentes.
As relações entre as pessoas numa nação não são simétricas. Há diversidade de funções que decidem sobre o papel na relação. Um juiz em exercício, um executivo na sua competência, um legislador na sua função estabelecem com todos os outros membros do povo relações diferentes que nos fazem dependentes deles nas suas competências, sem que com isso percamos a autonomia da liberdade, da consciência, da dignidade primeira de seres humanos.
Do mesmo modo, na Igreja, cada fiel tem relações livres, conscientes e autônomas com respeito ao papel que a hierarquia e outros membros exercem. Tal relacionamento pertence à natureza social do existir humano. O caráter de graça sacramental do poder na Igreja não o torna absoluto; antes, obriga o ministro à consciência de que o recebeu como graça a serviço de todo o corpo. Ele não é dono da graça, que sempre é de Deus.
Na vida civil, fala-se de cidadania. Consciência dos próprios direitos e deveres. Analogamente há uma cidadania na Igreja, que nos confere direitos e deveres a todos, seja qual for o ofício ou cargo que exercemos. Onde há tais relações não existem poderes absolutos, já que o poder se defronta com o limite imposto pelos direitos e liberdade dos outros.
A base laical da Igreja abre-nos novos horizontes para pensar a relação entre os fiéis numa igualdade fundamental. E, quando emergem as diferenças por causa dos ministérios e carismas, elas são pensadas em função da igualdade batismal fundamental.
Certo mal-estar frequentemente sentido na Igreja decorre de que a parte canônica, legislativa, que deveria dar corpo a tal intuição do Concílio Vaticano II, não a acompanha, mas fica presa ao esquema anterior à “virada copernicana”. A rememoração da Lumen Gentium é excelente ocasião para criar iniciativas novas nesse espírito, como ensaios de futura legislação, e não se deixar prender pelo atual imobilismo repetitivo.
3. A base colegial da Igreja
A base laical da Igreja decide sobre sua natureza colegial. Passa-se do ser para o agir e volta-se do agir para o ser. Como o ser da Igreja é a igualdade fundamental do batismo, o seu agir necessita basear-se também nessa igualdade. Isso se chama colegialidade em todos os níveis. E, por sua vez, o agir colegial configura uma Igreja basicamente igualitária.
O tema da colegialidade começou a ser tratado e foi consubstanciado na Lumen Gentium no último nível da hierarquia da Igreja: a colegialidade dos bispos com o papa, cabeça do colégio. Nesse nível existem várias instituições que permitem sua concretização prática: as conferências regionais e nacionais anteriormente existentes em muitos lugares e a instituição do Sínodo dos Bispos, criada depois do Concílio.
Se avançarmos fundo nessa lógica conciliar, a colegialidade implica também uma “revolução copernicana”. Até então existiam nos três centros da Igreja — Roma, diocese e paróquia — várias formas de participação. Cada centro procurava abrir-se generosamente à ação de membros que o ajudassem a governar a Igreja no seu nível. Pensava-se, nesse caso, do centro para fora e para baixo. Era o centro que decidia, escolhia, aceitava o nível de participação de outras pessoas. Os de fora dependiam dessa benevolência acolhedora, mas não nascia deles o direito de participação. A colegialidade de cima servia de modelo da colegialidade nos outros níveis abaixo.
A Lumen Gentium e, mais do que ela, o espírito que todo o Concílio criou, bem como as exigências de repensá-lo, rememorá-lo no contexto cada vez mais democrático e consciente da participação da modernidade avançada, permite interpretar a colegialidade de baixo para cima, de fora para dentro.
A participação nasce no interior das comunidades menores. Aí se vive o primeiro grau de colegialidade. É bem mais fácil, porque aparece mais claramente a igualdade entre todos. Nada justifica a precedência, já que os coordenadores são escolhidos pelos membros para o tempo e para as funções que a comunidade deseja e designa.
Alguém poderia pensar que com isso se negaria a iniciativa de Deus na constituição da Igreja e ela se tornaria um processo puramente sociológico de estruturação. Tal interpretação sofre de um dualismo que desconhece a estrutura encarnatória do agir de Deus na história. O desejo, a reunião das comunidades em torno da Palavra, dos sacramentos, da prática da caridade não nascem sem a ação do Espírito. Quem convoca à comunhão é o Pai, que chama a todos no Filho pela força do Espírito. Aquilo que a um olhar secular é pura sociologia, sob o olhar da fé é graça mediada pelas estruturas sociológicas comunitárias. É uma comunhão fraternal, sociológica e teologal. Na voz humana, que convoca, fala o Espírito que cria comunhão para além dos laços de sociabilidade, só reconhecível na fé.
Em passo seguinte, avança-se para a colegialidade entre as comunidades. Elas situam-se no espaço geográfico de uma paróquia. A concepção colegial mudará qualitativamente a concepção de paróquia, conforme se entendam as relações no seu interior, sobretudo com respeito ao ministro ordenado, à sua sede. Enquanto houver a matriz como sede do pároco, a colegialidade continuará, por mais aberto que for o pároco, nos moldes antigos. A novidade vai na direção de que não haja matriz e o ministro ordenado não seja o centro coordenador e administrativo do conjunto das comunidades. A coordenação faz-se por um colegiado de representantes das comunidades[4].
Há um problema teológico e pastoral nesse segundo passo da colegialidade. A animação da paróquia pertence, por natureza, ao ministro ordenado que preside a eucaristia, já que ela é o coração da comunidade. A quem a preside por ministério cabe realizar aquela comunhão, aquela participação colegial de que o ato celebrativo da eucaristia é sinal sacramental. E, ademais, pastoralmente as dioceses estão de tal modo estruturadas em paróquias — com as igrejas matrizes em torno do pároco, além das garantias canônicas asseguradas — que pensar outro modelo esbarra com a inércia multissecular da história.
A centralidade do ministro ordenado, em razão da presidência eucarística, não é de natureza estritamente canônica, mas místico-sacramental. Isso significa que, na parte administrativa, nada impede que um corpo colegiado de membros das comunidades conduza a visibilidade organizativa da paróquia, cabendo ao ministro ordenado sua verdadeira missão de animador espiritual da comunidade em vista da vivência da Palavra de Deus, dos mistérios sacramentais e da prática da caridade. É sua missão promover a vida dos fiéis por meio de um conhecimento e vivência sempre maior da Palavra de Deus pensada e interpretada para as situações cambiantes. O ministro ordenado zela para que em todas as comunidades, enquanto possível, os fiéis tenham acesso à vida sacramental, especialmente à dos sacramentos da iniciação, do perdão e do corpo do Senhor. Finalmente, no espírito da Lumen Gentium, o ministro ordenado mantém viva a vocação à santidade de todos os fiéis.
É desejável que o exercício dessa tríplice função do ministro ordenado não se faça de modo centralizado, já que ele anima a todas as comunidades sem que nenhuma seja o centro a partir do qual esses ministérios se difundem. Além disso, animar não significa ser o único a exercer a totalidade de tais ministérios. Muitos podem ser realizados por outros no tocante ao conhecimento e vivência da Palavra, à caminhada de santidade e mesmo ao espaço estritamente sacramental. A atual legislação eclesiástica restringe por demais tal âmbito, mas não estão excluídas evoluções nesse campo, como a Igreja conheceu ao longo de sua história.
Cada paróquia nesse modelo seria uma rede de comunidades, coordenada colegialmente por membros eleitos por elas. E essa rede enlaçar-se-ia com outras redes até ir lentamente formando o que canonicamente chamamos de diocese. Aí o ministro ordenado — o bispo — realizaria num plano maior o que o presbítero realizaria no nível das comunidades. O acento deslocar-se-ia do bispo em comunhão com o presbitério, gerindo o conjunto da diocese, para um bispo e presbíteros animando a rede de comunidades. Todo o ministério ordenado existe para estar em comunhão com a base laical da Igreja. Em vez de pensar primeiro os presbíteros em comunhão com o bispo, os fiéis com os presbíteros e o bispo, inverte-se a ordem e o significado último. Primeiro a comunhão dos batizados entre si, primeiro a comunhão dos presbíteros com as comunidades, primeiro a comunhão do bispo com todos. Essa inversão obriga-nos a pensar o canônico em função da comunhão, e não esta em função do canônico.
Se pensamos em termos de Igreja universal, o papa seria o primeiro a buscar estar em comunhão com os irmãos bispos, irmãos presbíteros, irmãos batizados. A partir dessa compreensão, consegue-se pensar um novo caminho para o ecumenismo. Não se exige que os outros busquem a comunhão com Roma, mas é Roma que se desvela para entrar em comunhão com todas as Igrejas cristãs em verdadeiro sentido de diaconia. Entende-se de maneira real, e não puramente formal, o título mais bonito do papa:servus servorum Dei — servo dos servos de Deus.
A colegialidade de dentro para fora e de baixo para cima permite sonhar com uma Igreja totalmente ministerial. O serviço à comunhão constitui a vocação primordial do ministério ordenado. “A única Igreja de Cristo é a comunhão de Igrejas”[5].
4. A comunhão trinitária: fundamento teológico
Tanto a base laical quanto a base colegial da Igreja encontram o último fundamento na Trindade. A Igreja vem da Trindade, vive da Trindade, caminha para a Trindade. E, ao falar da Trindade, vale a afirmação tão bonita de L. Boff: “No princípio está a comunhão dos TRÊS e não a solidão do UM”[6]. A comunhão intratrinitária permite analogicamente entender como a existência da distinção dos Três não impede, antes possibilita, que se alcance a comunhão na Unidade. Tanto amor existe entre as três distintas pessoas que são uma só natureza, um só Amor. Evidentemente isso só acontece em Deus — que é a melhor comunidade.
A Igreja, espelhando-se na Trindade, de que é participação, tende a manter as distinções, as diferenças de ministérios e carismas. Eles, por sua vez, entrelaçam-se de tal modo em comunhão que constituem uma unidade na diferença. E para cuidar dessa dialética está o ministério ordenado como primeiro responsável. Cabe respeitar a diferença, movendo-se nas águas da unidade batismal.
De novo, não é uma comunhão que vem de cima para baixo, mas que, ontologicamente realizada pela graça do batismo em cada cristão, se visibiliza de baixo para cima. Numa comparação simples, não se oferece um bolo pronto para todos participarem comendo dele, mas se busca que todos, trazendo cada um seu ingrediente próprio e diferente, componham o bolo da comunhão. Não existe primeiro a comunhão como obra da hierarquia a cuja participação os fiéis são convidados, mas existem os fiéis construindo, pela força do Espírito, a comunhão, a cujo serviço está o ministério ordenado.
5. A recepção da nova eclesiologia
Essa “virada copernicana” — da hierarquia para a base laical, da verticalidade dos centros para a base colegial — produziu uma nova eclesiologia, ainda em via de recepção no momento atual.
O processo de recepção é complexo. É uma forma teológica análoga ao que os filósofos chamam de rememoração. O Concílio Vaticano II, pelo fato de ser histórico, deixou de ser presente e entrou na tradição dos Concílios da Igreja. Neste momento, ele está entregue à memória assimilativa da Igreja. Ela vai lentamente, ora assumindo mais um ponto, ora resistindo a outros, ora não percebendo o alcance de todas as afirmações. Os fiéis, os teólogos, o Magistério retomam, relançam, reinterpretam as afirmações e assim se cria o imaginário teológico do Concílio Vaticano II. A importância das comemorações decorre do fato de serem excelentes ocasiões de balanços, para medir até onde e como a consciência eclesial tem assimilado o Concílio.
A recepção liga-se à criação de novo imaginário. À medida que os elementos novos do Vaticano II deslocam as visões anteriores, gesta-se lentamente novo imaginário. Entendo aqui por imaginário o conjunto de ideias, símbolos, valores, comportamentos e atitudes que as pessoas adotam e dentro do qual todos esses fatores se tornam significativos, inteligíveis. É uma maneira de representar a realidade terrestre e sobrenatural, as relações entre ambas. Assim, cabia perfeitamente, num imaginário tradicional, que alguém rezasse jaculatórias carregadas de indulgências para diminuir o tempo de seu purgatório. Fazia, portanto, parte desse imaginário um purgatório com tempo, punitivo com fogo, em que as almas penavam, e as jaculatórias eram recursos religiosos para diminuir o próprio purgatório futuro ou até aboli-lo totalmente pela indulgência plenária. Se se muda o imaginário do purgatório, tirando-lhe o tempo, o fogo e as almas penadas, uma série de gestos se torna ininteligível e abandonada e outros gestos entram em seu lugar. A esse horizonte, representativo das realidades religiosas, chamo imaginário social religioso. Imaginário porque são representações, social porque construído por um conjunto de pessoas em dado tempo e espaço, religioso porque estão em questão as realidades religiosas.
6. O imaginário social religioso do Vaticano II
O imaginário social religioso do Vaticano II está mais para ser construído do que estabelecido. Coexistem, no atual imaginário social religioso, elementos de imaginários antigos e aqueles que o Vaticano II introduziu como novos. Focalizarei estes últimos, comparando com os anteriores.
É um imaginário sacramental, simbólico, em vez de essencial e objetivista. As pessoas já não se interessam tanto por saber o que a Igreja é na sua essência, na sua constituição corporativa, mas o que significa para elas, que realidades maiores desperta, para que margens amplas lança pontes. Ela é sinal visível de uma realidade maior do que vemos. Aponta para um mistério de graça, de salvação, que vai além dos limites visíveis e jurídicos. Daí as pessoas agirem mais livremente diante dos aspectos puramente canônicos e legais. Antes se interessam pelo mistério maior com que e em que estão envolvidos.
A Lumen Gentium começa proclamando que é Jesus Cristo a luz dos povos, e não a Igreja. Na sua tessitura, a categoria teológica do Reino de Deus ocupa o horizonte maior. O documento pergunta pelas realidades que constroem o Reino ou são anti-Reino. E o Reino de Deus está profundamente vinculado à pregação, à prática e à pessoa de Jesus. Pratica-se, então, uma leitura cristológica da Igreja, a qual, por sua vez, sofre também uma revolução. Não se parte do Cristo do dogma, mas do Jesus da história, para entender melhor a realidade do Reino e, por conseguinte, a Igreja.
Retoma-se, em sentido genuinamente católico, a clássica afirmação de Loisy, que fora arrancada do contexto e por isso anatematizada: “Jesus anunciava o Reino e foi a Igreja que veio”. A tese de Loisy revelava a profunda verdade da necessidade de que a Igreja desse continuidade, historicidade, concretude ao Reino ao longo dos tempos e espaços[7]. Jesus anunciou a proximidade do Reino de Deus e pregou o Deus do Reino. Deus da vida. Deus da cura dos cegos, dos doentes, dos hansenianos, dos aleijados. Deus que ressuscita definitivamente os justos para a eternidade. Deus defensor dos pobres, Deus acolhedor dos pecadores, Deus da misericórdia, Deus da liberdade diante de formalismos legais. Com base nessa compreensão do Reino de Deus e do Deus do Reino os discípulos entenderam o sentido do seguimento de Jesus. E nessa esteira situa-se a Igreja. A Igreja existe em função do Reino, para anunciá-lo, antecipá-lo em si mesma, reconhecê-lo atuando fora dela. E conhece-se o Reino postando-se no seguimento de Jesus. Ele é antes, mas só é conhecido sendo seguido. Há uma precedência do seguimento de Jesus na prática da justiça, do amor aos pobres, da entrega de si aos outros sobre as cristalizações dogmáticas da história. Essas decorrem do seguimento e se tornam inteligíveis no seguimento, e não vice-versa.
A Igreja do Vaticano II é a Igreja da liberdade. Retoma-se a tradição de Jesus e de Paulo, que os protestantes da Reforma tanto acentuaram e que a Igreja pós-tridentina, numa reação compreensível, mas acanhada, descuidou. A Lumen Gentium, que se desdobra em outros documentos conciliares, retoma essa tradição primeira da Igreja nas vicissitudes de hoje. A liberdade manifesta-se na criatividade maior dos leigos, na inventividade litúrgica, na prática do significado primeiro da Lei como expressão da caridade, em oposição a uma leitura literalista, formalista e fundamentalista. A Igreja da liberdade confessa a fé na presença do Espírito Santo, que escreve e imprime a lei da caridade no coração dos fiéis. Tal reconhecimento atinge a intelecção da própria Igreja, valorizando a relevância do sensus fidelium. É um verdadeiro olfato da fé que permite ao fiel reconhecer o sentido da Palavra de Deus na sua vida e assim praticar uma caridade discernida e iluminada.
A Igreja da Lumen Gentium é a que ouve a Palavra de Deus. Mais uma vez, encontramo-nos diante de uma virada preparada, já fazia décadas, pelo movimento bíblico. Estavam passados os tempos em que Roma advertia um bispo por favorecer aos fiéis o acesso à leitura da Bíblia. O espírito ecumênico, que presidiu todo o Concílio e a redação da Lumen Gentium, quebrou preconceitos eclesiásticos contra o manuseio da Bíblia pelo simples fiel. O medo das falsas interpretações cedeu o lugar para a confiança no Espírito que assiste o leitor da Escritura e para o incentivo ao estudo da Bíblia, recorrendo aos novos conhecimentos sobre ela. Em nosso meio, a mudança gigantesca no imaginário religioso a respeito da Bíblia deveu-se ao trabalho dos exegetas, da catequese bíblica, dos círculos bíblicos com a metodologia de Carlos Mesters. Sem a eclesiologia bíblica da Lumen Gentium e da Dei Verbum dificilmente teríamos tido tais possibilidades no mundo católico. O movimento bíblico europeu, que precedeu o Concílio, restringia-se, sobretudo, a grupos fechados de especialistas sem alcance popular, ao contrário do que aconteceu aqui na América Latina com os círculos bíblicos.
7. Conclusão
A Lumen Gentium desencadeou um processo de renovação eclesial ainda em andamento, com retrocessos compreensíveis, devido à profundidade e amplidão de seu alcance.
É uma Igreja laical, porque é povo de Deus pela força do batismo, antes de qualquer estruturação hierárquica. É colegial porque nasce, alimenta-se, vive, constrói-se pela comunhão e participação de todos os batizados na sua realidade. É universal enquanto comunhão de Igrejas particulares. É histórica porque surge do movimento do Jesus da história, depois de Páscoa, para continuar-lhe o anúncio salvífico até o final dos tempos. Está a caminho do Reino de Deus definitivo na plenitude escatológica. Radica-se na Escritura, porque reconhece nela as fontes primeiras de sua fé, vida e práxis. Submete-se à Palavra de Deus revelada na Escritura e deixa-se continuamente ser questionada por ela, num processo de conversão. Reconhece-se santa pelos dons da Palavra, dos sacramentos, dos carismas e ministérios. Todos os cristãos são chamados à santidade, mas confessam-se amiúde pecadores pelas falhas em relação a dons recebidos. Igreja santa e pecadora, sempre necessitando de conversão e mudança. Renuncia os triunfalismos do passado, para confessar os pecados à espera da misericórdia e do perdão da história: Nesse espírito de conversão, abre-se ao diálogo ecumênico e inter-religioso.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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