Eta, chuvinha boa! Para nós do Nordeste a chuva é sempre sinal de esperança, de bênção. Estamos como a terra do sertão, pedindo chuva! Na seca, a vida fica ainda mais dura. É dureza nesta sociedade ser mulher, pobre, negra, com mais de quarenta anos! São quatro motivos para ser amaldiçoada e excluída nesta sociedade! Mas minha primeira experiência de me sentir amaldiçoada pela sociedade vem de longe. Sou nordestina. Casei-me com 19 anos. Só depois de quatro anos de casada consegui engravidar. Imagine o que isso significa! Todo o mundo me dizia: “Mulher que não gera filho é amaldiçoada”. Como eu não tinha filho, naquela vida pacata do interior, eu não tinha nada para fazer. Então li a Bíblia de ponta a ponta. O que me chamava a atenção era a questão da mulher estéril. Li a história de Sara, Ana, não sei mais de quem… Eu lia, mas não conseguia entender. E aí continuava com minha amargura, com minha tristeza em não poder ser mãe. Eu achava que nunca poderia gerar um filho. Sonhava com um filho homem. Cheguei a sonhar mesmo com meu filho. Principalmente porque minha irmã sofria repressão por parte do marido por não ter gerado um filho homem. Ela tem três meninas. Cada criança que nascia, o marido xingava, nem ia buscá-la na maternidade. E ela não conseguiu gerar um filho homem. Aquilo se tornou uma tortura para mim, que via minhas amigas, vizinhas, colegas do tempo com dois filhos e até mais!(Tereza, São Paulo).[1]
A família é uma das unidades básicas da sociedade, que mantém a sobrevivência das pessoas. No seio da família, as pessoas cultivam cooperação, solidariedade e união. Porém, na realidade cotidiana da família, muitas mulheres sofrem incompreensão, submissão e violência verbal e física. Na maioria das vezes, as mulheres são sobrecarregadas de obrigações e sofrem de preconceitos, principalmente no domicílio familiar.
Ontem, como hoje, a Bíblia registra a importância da família como a unidade básica da sociedade: “Do trabalho de tuas mãos comerás, tranquilo e feliz: uma esposa será vinha frutuosa, no coração de tua casa; teus filhos, rebentos de oliveira, ao redor de tua mesa” (Sl 128,2-3). Mas na Bíblia também transparece restrição e preconceito contra as mulheres: “Foi pela mulher que começou o pecado, por sua culpa todos morremos” (Eclo 25,24). As condições sociais de inferioridade e subordinação estão presentes no cotidiano das mulheres de ontem e de hoje. Vamos refletir sobre a família à luz da vida do povo de Israel, aproximando-nos dela para conhecer a realidade do povo e, especialmente, das mulheres.
1. FAMÍLIA NA VIDA COTIDIANA
Historiadores e arqueólogos bíblicos afirmam que, no período dos juízes (1250-1030 a.C.), os israelitas enfrentavam desafios para sobreviver nas regiões montanhosas de Canaã. Do ponto de vista ecológico, eram regiões pobres, com topografia, clima, solo e recursos naturais desfavoráveis à atividade produtiva. As terras eram constituídas de áreas semidesérticas ou cobertas de mata cerrada, dificultando a produção agrícola e pastoril. Aos poucos, novas tecnologias agrárias, como a difusão do ferro e da cal, foram introduzidas, possibilitando aos israelitas a ampliação da área de plantio por meio de rápido desmatamento da terra e da retirada de pedras para construir terraços, solucionando dificuldades associadas à erosão e ao solo irregular. A água, armazenada nas cisternas revestidas de cal, permitia aos camponeses manter rebanhos de gado miúdo, ovelhas e cabritos nas montanhas.
A desafiante situação de sobrevivência também exigia dos israelitas um aproveitamento melhor da mão de obra. Na sociedade agrária do Antigo Israel, a unidade básica é a família ampliada (clã), constituída de duas ou mais famílias com várias gerações: avós, pais, filhos, netos, servos e até estrangeiros, chegando a ter cinquenta pessoas. Essa família habita em casas construídas num pátio comum e cultiva cereais, verduras e frutas, cria animais e produz o necessário para a subsistência de seus membros. Ninguém fica de fora na luta pela sobrevivência; todos os membros assumem os diferentes trabalhos, sejam anciãos, homens, mulheres ou crianças.
Por certo, na sociedade dos primeiros israelitas, os princípios de família, parentesco, solidariedade e responsabilidade coletiva deviam ser fundamentais para a sobrevivência. A Bíblia conserva várias normas que organizavam a vida cotidiana desses agrupamentos:
Nas aldeias comunitárias, a organização familiar e tribal é fundamental para a sobrevivência do povo. Mas, no seio dessas aldeias, é inegável a existência de desigualdade, injustiça e opressão contra as mulheres. A sociedade é baseada, por certo, no sistema patriarcal. A autoridade está com os pais, os maridos, ou seja, com os homens. Há uma divisão entre papéis masculinos e femininos na sociedade israelita. Costumes, tabus e regras justificam a submissão das mulheres aos homens.
No casamento, por exemplo, a jovem deixa a sua casa de origem e entra para a família do marido, ambiente muitas vezes hostil e desconhecido. Ela tem de se adaptar. O casamento é meio para fazer ou estreitar alianças com outras casas ou outros clãs. No sistema patriarcal é aceitável ter mais de uma esposa, pois isso aumenta o número de descendentes e também a produção da casa. A esposa principal tem uma posição superior em relação às demais esposas e concubinas – ou seja, mulheres que mantêm relações sexuais com o homem, mas não são casadas.
A jovem esposa que passa a fazer parte da casa do marido enfrenta várias dificuldades. Ela se torna membro integral da nova família somente quando nasce o primeiro filho. Mas, se o marido tem outras esposas, o nascimento do filho ainda gera ciúmes e brigas (Gn 16,1-5; 21,8-21). Se ela deixa a casa de seu marido, o que é uma desonra, deve retornar para a casa de seu pai (Jz 19,2-3).
O poder e o privilégio das mulheres dependem de seus tutores. A filha solteira está na dependência do pai e, depois de casada, passa a depender do marido. A mulher aparece na lista de propriedades do marido, junto com o escravo, a escrava, o boi e o asno (Ex 20,17). O marido é chamado de ba’al, palavra hebraica que significa dono, marido ou senhor.
As mulheres exercem certa autonomia em assuntos domésticos. Porém, no espaço público, é bem limitada a sua participação, com algumas exceções que a Bíblia registra, por exemplo: a juíza Débora (Jz 4-5); Ana, mãe de Samuel (1Sm 1); a feiticeira de Endor (1Sm 28,3-25); as mães dos reis (1Rs 1); a profetisa Hulda (2Rs 22,11-20), entre outras. Aos poucos, as mulheres são excluídas, e definitivamente, do cenário sociopolítico e religioso do tempo pós-exílico. Elas estão ausentes da esfera púbica. É a sociedade dos teocratas, organizada ao redor do Templo e da lei do puro e do impuro, que põe as mulheres à margem como impuras.
A última redação do Pentateuco foi feita na sociedade teocrática, por volta do ano 400 a.C. Os textos foram carregados com a visão da época. Por isso é muito importante ler o texto bíblico com certas perguntas em mente: como se dão, no texto, as relações entre homens e mulheres? Como as pessoas, presentes e ausentes no texto, viviam o seu dia a dia? É nessa perspectiva que queremos ler Ex 18,1-12, que expressa a importância da família e, ao mesmo tempo, é sinal da sociedade patriarcal.
2. A AUSÊNCIA DA MULHER NO ATO LITÚRGICO
A narrativa de Ex 18,1-12, muitas vezes apresentada com o título de “encontro de Jetro com Moisés”, pode ser dividida em três cenas:
a) a viagem de Jetro até a montanha de Deus para encontrar Moisés (vv. 1-5);
b) Moisés acolhe Jetro e descreve como aconteceu a libertação (vv. 6-8);
c) Jetro, Moisés, Aarão e os anciãos fazem sacrifícios e refeição (vv. 9-12).
Na estrutura da narrativa, os vv. 6-8 constituem o eixo central da mensagem, expresso na fala de Moisés: “Moisés contou ao sogro tudo que Iahweh havia feito ao faraó e aos egípcios por causa de Israel, assim como todas as tribulações que encontraram pelo caminho, das quais Iahweh os livrara” (Ex 18,8). O redator assim resume os capítulos precedentes – a memória da saída do Egito e da caminhada pelo deserto – e faz uma preparação e ligação com a próxima seção da aliança no Sinai (Ex 19-24).
A narrativa inicia-se com o encontro de Jetro com Moisés, que está acampado na montanha de Deus. Mas, em 17,8-16, o povo de Israel está em Rafidim; em 19,2, Israel está no mesmo local de onde parte para o deserto do Sinai. Como entender o capítulo 18, no qual Moisés já se encontra na montanha de Deus? Ainda mais: de acordo com Ex 4,19-20.24-26, a mulher de Moisés e seu filho voltaram com ele para o Egito, e nessa narrativa eles estão em Madiã. Tudo isso indica que a narrativa de Ex 18,1-12 seja um acréscimo posterior, com o objetivo de salientar a grandeza do Deus do Êxodo e idealizar os madianitas como aliados do povo de Israel.
Os madianitas mostram hospitalidade a Moisés (Ex 2,15b-22). O primeiro encontro de Moisés com Iahweh na montanha de Deus acontece durante sua permanência em Madiã (Ex 3,1-6). Segundo a tradição bíblica, esse povo é apresentado como descendente de Abraão com Cetura (Gn 25,1-5) e conquistado por Edom (Gn 36,35; 1Cr 1,46). Há várias tradições divergentes que situam Madiã tanto no caminho para o Egito e na vizinhança de Edom (1Rs 11,18) como na região de Moab (Js 13,21).
Nos vv. 2-4, aparece a descrição da família de Moisés: Jetro leva Séfora até Moisés. O texto apresenta o filho de Moisés, já introduzido em Ex 2,22: “E ela deu à luz um filho, a quem ele chamou Gersam, pois disse: ‘Sou um imigrante em terra estrangeira’”. A novidade é que agora o narrador apresenta o nome de um segundo filho: Eliezer – “Deus é meu auxílio”. Os nomes dos dois filhos testemunham a vida dos israelitas no Egito e o poder de Deus na libertação do seu povo eleito. É a teologia consolidada pelos teocratas do tempo pós-exílico.
O encontro de Moisés com o seu sogro é semelhante ao encontro com Aarão (Ex 4,27-31). Ambos ocorrem no deserto, na montanha de Deus (Ex 4,27; 18,5). O encontro, conforme o costume do Antigo Oriente, inclui o beijo da saudação (Ex 4,27; 18,7). Nos dois textos, Moisés relata a sua experiência de Deus. Mas as semelhanças terminam quando Moisés leva Jetro para a tenda, o que pode ser uma referência à moradia (cf. Gn 18; Ex 33,7-11; Nm 11,24.26). O encontro se dá entre os homens, não há lugar para a presença da mulher no espaço público. A partir do v. 7, a mulher e os filhos desaparecem da cena.
No v. 8, Moisés relata a ação de Iahweh contra o faraó e os egípcios. E ainda reforça que Iahweh livrou o povo de todos os perigos. Esse mesmo motivo é repetido no v. 9: “Jetro alegrou-se por todo o bem que Iahweh tinha feito a Israel, livrando-o da mão dos egípcios”. Diante da libertação, Jetro exclama: “Agora sei que Iahweh é maior que todos os deuses”. Expressão semelhante é encontrada na oração do salmista: “Agora eu sei que Iahweh dá a salvação a seu messias; ele responde do santuário celeste com as proezas de sua direita salvadora” (Sl 20,7). O sogro de Moisés reconhece a superioridade do Deus de Israel, fazendo eco ao cântico do mar: “Quem é igual a ti, ó Iahweh, entre os deuses? Quem é igual a ti, ilustre em santidade? Terrível nas façanhas, hábil em maravilhas” (Ex 15,11; cf. Sl 135,5).
No tempo pós-exílico, Iahweh se consolidou como o Deus único e poderoso: “Iahweh, Deus de nossos pais, não és tu o Deus que está nos céus? Não és tu que dominas sobre todos os reinos das nações? Em tua mão estão a força e o poder, e ninguém pode resistir a ti” (2Cr 20,6). Nem o grande império do Egito e seus deuses conseguem vencer Iahweh. É importante perceber que o redator coloca essa profissão de fé em Iahweh na boca de Jetro, um madianita. Os estrangeiros, como o faraó (Ex 9,27) e Raab (Js 2,9-10), devem reconhecer a superioridade de Iahweh, o Deus de Israel, que já teria aniquilado outros deuses, como Asherá, a Deusa da fertilidade, na sociedade israelita (cf. 2Rs 23,4).
O v. 12 descreve o sacrifício: “ofereceu a Deus um holocausto e sacrifícios”. No holocausto, ‘olah, a oferenda é totalmente consumida sobre o altar (Lv 1; 6,1-6). Sacrifício, zebah em hebraico, significa cortar. Em hebraico, essa palavra é usada no plural, o que pode indicar uma variedade de sacrifícios. Recordemos que, segundo a história, no encontro inicial com o faraó, Moisés afirmou ser o sacrifício no deserto uma exigência de Deus aos israelitas (5,3), sacrifício relembrado no relato das pragas (8,25-27) e, agora, realizado sobre a montanha de Deus. A cena conclui com Aarão, os anciãos e Moisés comendo o sacrifício com Jetro na presença de Deus, assumindo um caráter formal.
Analisando o conjunto, o vocabulário e o pensamento de Ex 18,1-12, percebe-se que se trata de texto que exprime um ato litúrgico da comunidade judaica, por volta do ano 400 a.C., durante o período em que o livro do Êxodo foi redigido, o que pode ser confirmado pelos seguintes elementos:
1) O local da celebração: “a montanha de Deus” (v. 5). No período pós-exílico, Sião (o templo de Jerusalém) era a única montanha sagrada onde Deus residia, e aí o homem “acampava” para adorar a Deus (Dt 12,2-3; Sl 2,6).
2) A profissão de fé e a ação de graças: “Bendito seja Iahweh” (v. 10); “Iahweh é maior que todos os deuses” (v. 11). Na liturgia, é proclamado e cantado o ato salvífico de Iahweh, que liberta e protege Israel (cf. Sl 31; 78; 95).
3) O sacrifício e o banquete sagrado: “comer diante de Deus” (v. 12). O banquete sagrado exprime a relação de aliança entre o fiel e o seu Deus. Não há nenhum texto bíblico que ateste a presença de sacerdotisa e de participação feminina no sacrifício oficial do segundo templo. Por causa da consolidação da lei do puro e do impuro, as mulheres são excluídas do ato litúrgico oficial do Templo.
Portanto, não há surpresa alguma com a ausência de Séfora, a mulher de Moisés, no ato litúrgico. Nele, Moisés, Jetro e os anciões estão presentes (Ex 18,12). No tempo pré-exílico, as mulheres participavam de celebrações festivas: “Maria, a profetisa, irmã de Aarão, tomou na mão um tamborim, e todas as mulheres a seguiram com tamborins, formando coros de dança” (Ex 15,20). Tomavam parte também no ato litúrgico: “Séfora tomou uma pedra aguda, cortou o prepúcio do seu filho” (Ex 4,25).
O texto de Ex 18,1-12 é relato de um encontro familiar, mas mesmo assim é possível perceber, nas entrelinhas, a condição inferior da mulher na sociedade israelita do segundo Templo. Analisando o texto na perspectiva da vida cotidiana, pode-se observar a posição social da mulher e sua subordinação ao homem.
3. A MULHER NA SOCIEDADE ISRAELITA[2]
Na antiga sociedade israelita, a vida cotidiana da mulher, em geral, estava restrita ao espaço doméstico. A Bíblia atesta vários trabalhos assumidos por mulheres:
– Cuidar de rebanhos. “Jacó ainda estava conversando com eles, quando Raquel chegou com o rebanho do seu pai, pois era pastora” (Gn 29,9; cf. Ex 2,16).
– Buscar água no poço. “A jovem era muito bela; era virgem, nenhum homem dela se aproximara. Ela desceu à fonte, encheu seu cântaro e subiu” (Gn 24,16).
– Fazer pão e cozinhar. “Abraão apressou-se para a tenda, junto a Sara, e disse: ‘Toma depressa três medidas de farinha, de flor de farinha, amassa-as e faze pães cozidos’” (Gn 18,6); “Rebeca disse a seu filho Jacó: ‘Vai ao rebanho e traze-me de lá dois belos cabritos, e prepararei para o teu pai um bom prato, como ele gosta’” (Gn 27,6.9).
– Tecer. “Ele (Sansão) lhe respondeu (a Dalila): ‘Se teceres as sete tranças da minha cabeleira com a urdidura de um tecido e as apertares com um pino, perderei a minha força e me tornarei como qualquer homem’. Ela o fez dormir, depois teceu as sete tranças da sua cabeleira com a urdidura, apertou-as com o pino…” (Jz 16,13-14).
– Ajudar e animar as mulheres nos partos. “Faltava uma pequena distância para chegar a Éfrata, quando Raquel deu à luz. Seu parto foi doloroso e, como desse à luz com dificuldade, disse-lhe a parteira: ‘Não temas, é ainda um filho que terás!’” (Gn 35,16-17).
Os trabalhos das mulheres, na maioria das vezes, estão ligados à casa, aos seus membros e aos movimentos de vida e morte: nascimento, alimentação, vestimenta, prazeres, mortos, cultos domésticos etc. O papel das mulheres na administração da casa pode ser comprovado nos ditos populares. Elas são elogiadas como pérolas ao assumirem seus deveres de manutenção da casa e sua responsabilidade no destino das famílias:
Adquire a lã e o linho e trabalha com mãos hábeis.
É como a nave mercante, que importa de longe o grão.
Noite ainda, se levanta, para alimentar os criados. E dá ordens às criadas.
Examina um terreno e o compra, com o que ganha com as mãos planta uma vinha.
Cinge a cintura com firmeza, e emprega a força dos braços.
Sabe que os negócios vão bem, e de noite sua lâmpada não se apaga.
Lança a mão ao fuso, e os dedos pegam a roca.
Estende a mão ao pobre e ajuda o indigente (Pr 31,13-20).
As mulheres eram verdadeiras administradoras da casa. Trabalhavam até a madrugada, alimentando e vestindo os membros da casa, fabricando e negociando tecidos e outros objetos. Ainda no âmbito da casa, um dos papéis sociais era que fossem boas mães: “Seus filhos levantam-se para saudá-la” (Pr 31,28); “Ana ficou e criou o menino até que o desmamou” (1Sm 1,23).
Na sociedade patriarcal israelita, o ato de parir e criar os filhos pertence ao dever natural e importante das mulheres. Cada filho deve ser parido e criado com intensidade e cuidado, pois doenças, guerras e outras calamidades reduzem o número de membros, dificultando a sobrevivência e a manutenção da família ampliada. A arqueologia, por meio das escavações nos cemitérios, registra alto índice de mortalidade no período dos juízes:
O índice de mortalidade foi, evidentemente, muito alto entre a população pré-adulta. Num dos cemitérios, 35 por cento dos indivíduos morreu antes de completar cinco anos, e quase metade dos indivíduos não ultrapassou a idade de dezoito anos. Para aqueles que conseguiram sobreviver até a idade adulta, há um dado evidente: o índice de mortalidade de mulheres com idade para procriação foi excessivamente maior do que o dos homens. Numa população na qual a expectativa de vida para os homens poderia ser de quarenta, as mulheres poderiam ter a expectativa de vida perto de trinta.[3]
O alto índice de mortalidade infantil faz a sociedade exigir das mulheres maior número de filhos em vista da sobrevivência. Além do trabalho pesado que exercem na lavoura e na casa, elas são obrigadas a assumir o “trabalho penoso, sofrido e perigoso” de parir e criar os filhos (cf. Gn 35,16-20; Nm 12,12; 1Sm 4,19-20; Is 26,17). É situação que explica o alto índice de mortalidade das mulheres em relação aos homens. O ato da gravidez é uma ordem de sobrevivência. Um dos grupos de Israel preserva a memória da importância da reprodução como meio de sobrevivência e de resistência: “Mas, quanto mais os oprimiam, tanto mais se multiplicavam e cresciam; e os egípcios se inquietavam por causa dos filhos de Israel” (Ex 1,12). Na mesma perspectiva, os benjaminitas raptam desesperadamente as filhas de Silo para suprimir sua necessidade de procriação (Jz 21). No período posterior, o papel das mulheres se intensifica por causa da exploração e da violência praticadas pelo Estado.
Ao longo da história do Estado, o rei fortalece e aumenta seus direitos sobre parte da produção e sobre o trabalho de seus súditos, tanto para o serviço das obras públicas como para o exército. O trabalho forçado é realizado por camponeses(as) livres, ou mesmo por seus filhos(as), a serviço do Estado, por tempo determinado: “Ele (rei) convocará os vossos filhos e os encarregará dos seus carros de guerra e de sua cavalaria e os fará lavrar a terra dele e ceifar a sua seara, fabricar as suas armas de guerra e as peças de seus carros. Ele tomará as vossas filhas para perfumistas, cozinheiras e padeiras” (1Sm 8,11-13).
O Estado explora ao máximo os homens do campo e sua produção. As constantes guerras exigem o recrutamento de homens para o exército. A ausência dos homens obriga as mulheres a dobrar seus trabalhos na casa e nas lavouras. Além do mais, são forçadas a assumir trabalhos domésticos na corte e nos santuários. Aos poucos, a desapropriação de terras pelo Estado destrói a Casa (Os 4,1-3). A violência institucionalizada, as guerras e suas brutalidades fazem parte da vida do povo, atingindo o cotidiano, especialmente o das mulheres – o útero e a gravidez – e das crianças:
– “Porque sei o mal que farás aos israelitas: incendiarás suas fortalezas, passarás ao fio da espada seus jovens, esmagarás suas crianças, rasgarás o ventre das mulheres grávidas” (2Rs 8,12; cf. 15,16; Os 14,1).
– “Efraim é como um pássaro, a sua glória voará: não há mais nascimento, não há mais gravidez, não há mais concepção. Ainda que eles criem seus filhos, eu os privarei deles antes que se tornem adultos. Sim, ai deles, quando eu me afastar deles!” (Os 9,11-12).
– “Efraim está ferido: suas raízes estão secas, não poderão mais produzir fruto. Ainda que eles gerem filhos, farei morrer o fruto querido do seu seio” (Os 9,16).
Para piorar a vida do povo, Nabucodonosor, rei da Babilônia, invade e destrói Judá e a sua capital, Jerusalém, vitimando milhares de pessoas em 587 a.C. Uma catástrofe nacional: fuga, saques, fome, deportação e matanças (cf. o livro de Lamentações). “Foram submetidos ao saque, e não há quem os liberte; foram levados como despojo, e não há quem reclame a sua devolução”, diz o Segundo Isaías a respeito da deportação para a Babilônia (Is 42,22). Nesse período, a mulher torna-se, mais uma vez, a maior vítima: “Há muito que me calei, guardei silêncio e me contive. Como mulher que está de parto, eu gemia, suspirava, respirando ofegante” (Is 42,14). O texto insinua haver violência sexual contra a mulher no contexto da guerra e do exílio na Babilônia.
O ano de 538 a.C. marca o fim do exílio na Babilônia. O decreto de Ciro, imperador da Pérsia, possibilita a reconstrução do povo judeu. Parece ser o fim do sofrimento. Porém, o pior ainda está por vir. Os persas, para melhor dominar, favorecem o projeto da elite: teocratas, templo, lei do puro e do impuro, teologia da retribuição, sacrifícios de reparação, tributos religiosos… A história se repete. Novamente, os descendentes da antiga elite de Judá, aliados à Pérsia, introduzem o velho sistema de exploração e exclusão. O Templo e a Lei se tornam instrumentos eficazes na coleta dos tributos, atingindo todas as dimensões da vida humana, principalmente a procriação:
Se der à luz uma menina, ficará impura durante duas semanas, como durante suas regras, e ficará mais sessenta e seis dias purificando-se do seu sangue. Quando tiver cumprido o período da sua purificação, quer seja por um menino, quer seja por uma menina, levará ao sacerdote, à entrada da Tenda da Reunião, um cordeiro de um ano para holocausto e um pombinho ou uma rola em sacrifício pelo pecado (Lv 12,5-6).
A maioria da população, especialmente a camponesa sem terra, experimenta exploração, desemprego, fome, miséria, escravidão e morte prematura: “Os ímpios mudam as fronteiras, roubam rebanho e pastor. O órfão é arrancado do seio materno e a criança do pobre é penhorada. Da cidade sobem os gemidos dos moribundos” (Jó 24,2.9.12). O corpo é transformado em principal fonte de impurezas, especialmente o das mulheres, que é ainda mais rentável, pois mensalmente se oferecem ofertas ao Templo para a purificação do sangue menstrual. O controle sobre o corpo das mulheres aumenta ainda mais numa sociedade patriarcal, uma vez que, além da questão da produção, está em jogo a afirmação do masculino. E, nesse contexto, a masculinidade é medida por dois critérios: a força na guerra e na gravidez. Aquele que detém o poder deve ditar interesses e normas a serem respeitados e cumpridos. A mulher é propriedade do homem. É uma lei:
“Um homem não tomará a mulher do seu pai, para não retirar dela o pano do manto do seu pai” (Dt 23,1).
“Quem desposou uma mulher e ainda não a tomou? Que se retire e volte para casa, para que não morra na batalha e um outro a tome” (Dt 20,7).
“Se um homem for pego em flagrante deitado com uma mulher casada, ambos serão mortos, o homem que se deitou com a mulher e a mulher. Deste modo extirparás o mal de Israel” (Dt 22,22).
São leis que nascem das necessidades e dos interesses concretos das famílias, das aldeias e do Estado. Os direitos dos homens não devem ser violados, pois a segurança e os procedimentos da vida social e comunitária estariam assim comprometidos. A mulher pertence ao homem no mundo patriarcal.
4. UMA PALAVRA FINAL
Hoje continuamos vivendo numa sociedade patriarcal e androcêntrica. As mulheres ainda são obrigadas a adequar-se a papéis que lhes são impostos, sem, muitas vezes, conseguir manifestar a sua vontade e sem conseguir realização pessoal. “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”, declara o artigo 1º da Declaração universal dos direitos humanos, de dezembro de 1948.
A violação desse artigo é muito frequente; a lista de violações é imensa. Dia a dia, os jornais anunciam casos de violência contra a mulher. Cada vez mais, torna-se comum o fato de namorados ou amantes matarem suas parceiras por não concordarem com o fim da relação ou mesmo para se livrarem do compromisso. Um folheto apresenta o depoimento de uma mulher:
Me chamo R…, tenho 39 anos, sou separada, mãe de dois filhos, uma de 21 anos e o outro de 9 anos, que mora comigo. Moro numa casa de dois cômodos, alugada… Quando engravidei, descobri a minha gravidez próximo dos cinco meses; quando contei para o meu companheiro que estava grávida e com cinco meses, ele me disse: ‘Ou você tira essa criança, ou eu mato você e ela quando ela nascer’. Sem muita escolha, tomei um remédio abortivo e abortei o bebê… Nessa eu quase morri também…[4]
Quantas mulheres hoje são silenciadas? Outras gritam, mas nem sempre seu grito encontra ressonância. Deixemos ressoar em nossos ouvidos os gritos das mulheres de hoje e de ontem. Na Bíblia, podemos ouvir muitos gritos quando cada texto é lido levando em conta o contexto onde ele foi escrito e transmitido. A responsabilidade com a convivência fraterna das pessoas, baseada em direitos iguais, torna-se uma responsabilidade da humanidade. É minha responsabilidade! É sua! É de todos nós! Assim seremos dignos e dignas de exclamar: “Um viva a crianças, mulheres, homens e famílias!”
Fonte: Revista Vida Pastoral
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