“Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). O relato do Evangelho de Marcos se inicia com uma proposta de felicidade. É um novo começo marcado por um anúncio alegre e esperançoso. A boa-nova é de Jesus Cristo, Filho de Deus. Ele proclama a proximidade do reino: “Cumpriu-se o tempo, e o reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15).
Jesus, com sua vida e prática, realizou o reino de Deus, abrindo espaços de vida para os pobres e marginalizados, porém, não compreendido [f1] pelos poderosos do seu tempo, foi perseguido e morto. A morte de Jesus foi um choque para os que esperavam que ele fosse um Messias poderoso e provocou a fuga de seus seguidores e seguidoras.
Mas, aos poucos, as pessoas que tinham experimentado uma vida nova com Jesus começaram a se reunir em pequenos núcleos que recordavam sua prática e ensinamentos à luz do Antigo Testamento. Assim, as primeiras comunidades cristãs compreenderam que Jesus era o servo sofredor: “O Filho do homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar” (Mc 8,31; cf. Is 42,1-9; 52,13-53,12). No meio da febre messiânica de um rei poderoso, que viria para destruir os dominadores e instaurar o reino de Deus, a comunidade cristã teve dificuldades de manter e pregar Jesus como o Messias servo.
No século I, a dominação romana com seus impostos abusivos e o sistema religioso de Jerusalém tornaram-se insustentáveis. A realidade ia de mal a pior. Na Palestina, a repressão das autoridades contra as revoltas populares era violenta, um verdadeiro massacre, e muitos grupos de judeus foram dizimados. A população foi deixada à própria sorte. Nesse contexto, renasceu o nacionalismo judaico: a espera de um Messias rei. Para orientar a comunidade cristã, que também estava assumindo essa mentalidade, a liderança que escreveu o Evangelho de Marcos sentiu a necessidade de apresentar Jesus como o Messias servo, que foi crucificado por ter assumido a causa da justiça até o fim, mas a quem Deus ressuscitou (cf. Mc 9,30-32; 10,32-34).
O Evangelho de Marcos foi escrito entre os anos 65 e 70 d.C. A mão de ferro do império foi ainda mais pesada para os judeus e os cristãos. Em Roma, a comunidade cristã sofreu a perseguição de Nero (66 d.C.). Em vários pontos do império surgiram levantes dos judeus, sendo o principal na Palestina, conhecido como a Guerra Judaica, entre os anos 66-73 d.C. O medo era constante. Guerras, massacres, fome e aflições faziam parte do dia a dia das pessoas.
1. Situando o Evangelho de Marcos
O Evangelho de Marcos é uma obra anônima; não existe apresentação do sujeito que fala nem sequer dos objetivos desse escrito, que somente serão descobertos na própria leitura. O que importa é a mensagem a ser comunicada: o evangelho. Marcos é nome de origem romana; porém essa assinatura é secundária, conhecida desde Irineu, no fim do século II.
Em relação à origem do Evangelho de Marcos, alguns afirmam que foi em Roma, logo após o martírio de Pedro, em 64 ou 67, outros a situam na Síria. Atualmente, os estudiosos acreditam que esse escrito tenha surgido na Galileia, hipótese que se apoia no fato de essa região ser o principal local da atividade missionária de Jesus. Há algumas informações que fortalecem essa teoria, por exemplo:
Com base nessas informações, acreditamos que o Evangelho de Marcos foi escrito na região da Galileia, destinado às comunidades localizadas na região da Síria, de Tiro e da Decápolis.
2. Pisando o chão da comunidade de Marcos
Desde 63 a.C., os romanos dominaram a Palestina. As províncias da Galileia, da Pereia, da Idumeia e da Judeia passaram a pagar tributos ao império. O povo passou a ser violentamente explorado por meio da cobrança abusiva de impostos e do monopólio do comércio. Essa situação gerou muitas revoltas, principalmente na Galileia. Qualquer revolta dentro do império era terminantemente sufocada por meio de forte aparato repressor. A região de Israel representava apenas 1% do território romano e havia 8% das tropas do exército romano acampadas na região. Várias cidades da Galileia foram incendiadas e destruídas, e suas populações foram vendidas como escravas ou mortas.
Em torno do ano 40 a.C., por sua fidelidade às políticas de paz de Augusto, Herodes Magno foi reconhecido como rei dos judeus, exercendo o governo de forma tirânica e opressora. Seguindo o exemplo do imperador Augusto, Herodes reconstruiu várias cidades; por exemplo, no lugar de Samaria, a antiga capital do Norte, fundou Sebaste – tradução grega de Augusto –, onde havia um grande teatro e um templo dedicado ao imperador. No seu reinado, várias cidades helenísticas foram reconstruídas ou revitalizadas, entre as quais Cesareia, em homenagem a César Augusto. A fronteira oriental do seu reino, inclusive a fortaleza de Massada, foi reforçada.
Herodes gastou enormes quantias de dinheiro com as construções da cidade de Jerusalém, principalmente com o Templo, totalmente reconstruído, uma reforma que terminou pouco tempo antes da Guerra Judaica (66-73 a.C.). Devia ser uma construção suntuosa, pois sua beleza e esplendor permaneciam no imaginário das primeiras comunidades cristãs (cf. Mc 13,1-2; Mt 24,1; Lc 21,5-7).
O sistema de fiscalização de impostos, instituído por Herodes e seus partidários, era muito rígido. O povo tinha de pagar aos romanos o imposto sobre 25% das colheitas, o pedágio para a circulação de pessoas e mercadorias e dedicar um tempo de trabalho forçado para as tropas. Além do sistema de cobrança dos romanos, existiam os impostos do Templo: o imposto pessoal, estipulado em um denário – o equivalente à diária de um trabalhador; os vários dízimos, como, por exemplo, das colheitas, a parte destinada aos pobres; e, a cada sete anos, o produto referente a um ano de trabalho.
Nesse caldeirão de opressão surgiram muitos focos de revolta. Porém o controle de Herodes Magno era muito rígido, e os protestos eram sufocados. Após sua morte, a Palestina foi dividida em três regiões ou províncias. Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.) ficou como tetrarca da Galileia e da Pereia ou Transjordânia do Sul, Filipe assumiu a Transjordânia do Norte e Arquelau ficou com a Judeia e a Samaria.
Na tentativa de agradar ao povo judeu e ao império romano, Herodes Antipas empreendeu grandes construções conforme os padrões helenísticos, como a reconstrução de Séforis e a fundação da cidade de Tiberíades, em 19 d.C., transformando-a em capital de sua província. A maioria da população de Tiberíades era constituída de gentios de diversas regiões, aí se falava o grego, o aramaico e o latim. Na cidade havia teatros, banhos públicos e estádios. Estava situada entre o mar da Galileia e a cidade de Cesareia, no Mediterrâneo.
Herodes Antipas chegava a receber em torno de 200 talentos por ano, o equivalente a 1,2 milhão de denários, referentes ao imposto da pesca. A moeda era necessária para o pagamento dos impostos e a compra de produtos e serviços (Mc 12,15-17). Crescia o número de pessoas endividadas e escravizadas. Uma pequena minoria, cerca de 5%, esbanjava luxo, mas a maioria experimentava pobreza e miséria. O cenário era de doença e escravidão. Muitas pessoas empobrecidas perambulavam pelas praças e mercados, sem terra e sem emprego (cf. Mt 20,1-9). A situação dos pobres se complicava ainda mais por causa da cultura e religião da época.
De acordo com a mentalidade grega, os pobres eram considerados vagabundos ou pessoas não agraciadas pelas divindades. Os romanos, seguindo a mesma mentalidade grega, acreditavam que o trabalho era próprio dos escravos. Para impedir qualquer tipo de revolta, havia o sistema do clientelismo, também conhecido como patronato.
O clientelismo era baseado nas relações de troca. Alguém do estrato superior beneficiava uma pessoa do estrato inferior, que se tornava cliente de seu benfeitor. O prestígio e a honra de um cidadão eram medidos com base no número de clientes que possuía. Por sua vez, o cliente tinha várias obrigações com o seu patrono – por exemplo, estar presente nos banquetes patronais, acompanhar seu patrono nas aparições públicas e aplaudir seus discursos. No império romano, a ingratidão de um cliente ao seu patrono era considerada pior do que roubo e homicídio. Hoje, em linguagem popular, diríamos que é o bajulador ou o puxa-saco, com a diferença de que essa relação estava presente em todos os setores da sociedade. Esse sistema não favorecia os pobres, mas reforçava a situação de injustiça e perpetuava a submissão.
Na cultura judaica, a partir da consolidação da teologia da retribuição no exílio e no pós-exílio, a pobreza constantemente era associada com castigo de Deus. De acordo com essa teologia, Deus recompensava a pessoa justa com vida longa, riqueza e descendência. O caminho da sabedoria era seguir a Lei; assim afirma o livro dos Provérbios: “Em sua direita: longos anos; em sua esquerda: riqueza e honra! Seus caminhos são caminhos deliciosos, e os seus trilhos são prosperidade” (Pr 3,16-17).
No século I havia muitas pessoas pobres e doentes. Uma pessoa com lepra era considerada morta. Qualquer doença de pele, contagiosa ou não, era classificada como lepra. Havia muitas pessoas aleijadas, epiléticas e hidrópicas. Doenças mentais e psíquicas eram associadas com o demônio; por exemplo, os casos de mudez, surdez, epilepsia, esquizofrenias e até mesmo a depressão ou falta de motivação.
No tempo de Jesus e das primeiras comunidades, as leis referentes à pureza marginalizavam os doentes leprosos (Lv 13 e 14). Todos os líquidos relacionados com a reprodução que saíam do corpo humano provocavam impureza. A pessoa impura estava excluída da participação social. Havia muitas pessoas à margem da sociedade e, para piorar a situação de sofrimento, sentiam-se abandonadas por Deus: “Ao entardecer, quando o sol se pôs, trouxeram-lhe todos os que estavam enfermos e endemoninhados” (Mc 1,32)
Ser pobre significava não ter existência social. A situação de opressão e escravidão deu origem a vários movimentos proféticos e messiânicos, especialmente na Galileia, região que fornecia trigo, vinho, óleo, carne e peixe e que, por isso mesmo, foi o território mais explorado e devastado. Entre os vários movimentos, podemos situar o de Jesus. A sua proposta de reino de Deus atraiu homens e mulheres que perderam suas terras e se encontravam sem reino. Por isso, Jesus proclama: “Felizes vós, os pobres” (Lc 6,20; Mt 5,3).
3. Conhecendo a proposta do Evangelho de Marcos
No norte da Galileia, por volta do ano 70 d.C., a comunidade de Marcos estava tentando seguir o projeto de Jesus de Nazaré. Além dos conflitos externos, como a violência, a fome e os apelos dos movimentos nacionalistas com o messianismo do rei, internamente a comunidade enfrentava conflitos étnicos e culturais. O modo de vida romano e a busca desenfreada de bens, poder e privilégios foram assimilados por muitas pessoas: “Concede-nos, na tua glória, sentarmo-nos, um à tua direita, outro à tua esquerda” (Mc 10,37).
Mas não obstante as dificuldades, a comunidade de Marcos procurava resgatar e seguir o projeto de Jesus de Nazaré, apresentando Jesus como o Messias servo e as condições para segui-lo. Entrar nesse discipulado exige “deixar as redes” e ter disposição para aprender de Jesus estratégias para a concretização do reino de Deus. É preciso sair e ultrapassar fronteiras. Só é possível construir o reino com base em relações tecidas na fraternidade e no serviço: “Entre vós não será assim: ao contrário, aquele que dentre vós quiser ser grande, seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o servo de todos” (Mc 10,43-44).
O Evangelho de Marcos nasce da necessidade da comunidade de pôr por escrito suas memórias sobre quem é Jesus, reforçando que ele não é o Messias do poder e da glória, pois seu messianismo passa pelo sofrimento e pela cruz. Eis alguns pontos principais desse texto:
1) Quem é Jesus de Nazaré. O evangelho apresenta Jesus como o Filho do homem na figura do servo sofredor, que veio conviver com as pessoas empobrecidas, exploradas e excluídas pelo império e seus colaboradores e libertá-las. Proclamou o reino de Deus a todas as pessoas, independentemente da etnia, da classe social, do gênero e da religião. A sua fidelidade ao projeto do reino da justiça e da fraternidade o levou a um confronto com os poderosos do seu tempo e, consequentemente, à cruz, mas Deus o ressuscitou: “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10,45).
2) O seguimento de Jesus. Esse evangelho apresenta mulheres e homens que seguem Jesus desde a Galileia até Jerusalém, convivendo e aprendendo com ele. Com suas limitações, esse grupo assumiu a causa do reino de Deus, fundamentado na justiça e na solidariedade, no meio das pessoas que estavam à margem da sociedade, como mulheres, pobres, estrangeiros, crianças e doentes (Mc 1,31; 6,33; 7,28; 8,1; 10,13.46). Seguir Jesus implica assumir o mesmo caminho seu como servo sofredor: “Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois aquele que quiser salvar sua vida a perderá; mas o que perder sua vida por causa de mim e do evangelho, a salvará. Com efeito, que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e arruinar sua própria vida?” (Mc 8,34-36).
4. Uma estrutura possível para o Evangelho de Marcos
Há diversas propostas de estrutura para o Evangelho de Marcos. Para uma visão de conjunto, optamos pela divisão em três partes, seguindo o ministério de Jesus na Galileia e nos seus arredores, depois a caminhada para Jerusalém e, por fim, os últimos acontecimentos em Jerusalém.
Eis um breve esquema:
1) Primeira parte (1,1-8,26): a atividade de Jesus na Galileia e nas regiões vizinhas.Nesta etapa, temos a formação da comunidade, que se encontra com Jesus sempre em uma casa. A comunidade enfrenta vários problemas externos e internos, a saber: fome, doenças, individualismo, preconceito e, especialmente, a tentação de seguir o Messias como rei poderoso (Mc 1,34.44; 3,12; 5,43; 6,30-44; 7,36). Essa parte termina com a cura do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), indicando que a comunidade precisa abrir os olhos para compreender que Jesus é o Messias servo.
2) Segunda parte (8,27-10,52): a viagem para Jerusalém a partir da Galileia. É um caminho para compreender e aprofundar Jesus como o servo sofredor, com os três anúncios da paixão (Mc 8,31-33; 9,33-37; 10,32-34). É uma catequese sobre o seguimento de Jesus na vida cotidiana da comunidade. Ao anunciar o “caminho da cruz”, Jesus combate e corrige os discípulos que aspiram a poder e privilégios, atributos que transparecem na figura do Messias poderoso como Davi. Os versículos finais apresentam a cura do cego Bartimeu, que joga o manto, gesto que significa abandonar a visão messiânica de rei e seguir Jesus no caminho da cruz (Mc 10,46-52).
3) Terceira parte (11,1-16,8): o ministério de Jesus em Jerusalém com a sua paixão, morte e ressurreição. A prática libertadora de Jesus está em conflito com os poderes do mundo, por isso ele é condenado e morto como subversivo. Mas Deus não abandona o justo (Sb 2,18) e o ressuscita (Sl 22). Essa parte termina com a ordem de voltar para a Galileia, o local onde Jesus começou sua prática libertadora e onde exerceu por mais tempo esta atividade.
4) Acréscimo posterior (16,9-20). Como terminar um evangelho com o medo e o silêncio? Os versículos finais foram acrescentados depois e constituem uma síntese dos relatos das aparições de Jesus ressuscitado. Na origem, o evangelho era uma obra sem conclusão. Ela está em aberto e depende de que a pessoa que lê dê a sua resposta… É preciso ter coragem para voltar à Galileia.
O Evangelho de Marcos termina com uma ordem e o medo como resposta: “‘Não vos espanteis! Procurais Jesus de Nazaré, o crucificado. Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis, como vos tinha dito’. Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um temor e um estupor se apossaram delas. E nada contaram a ninguém, pois tinham medo…” (Mc 16,6-7).
As mulheres recebem a ordem de comunicar aos seus que ele voltaria para a Galileia. Elas ficaram com medo, fugiram e nada disseram. É preciso afastar-se de Jerusalém, lugar do centro do poder, e voltar à Galileia, o lugar onde tudo começou. Segundo o Evangelho de Marcos, foi na Galileia que Jesus realizou grande parte de sua atividade missionária. Voltar à Galileia é assumir o seu projeto, e isso causa medo. Acreditar que Deus o ressuscitou é reafirmar a fé em Deus como o Senhor da vida. Apesar do medo, há grande esperança para os que seguem Jesus.
A nossa missão é anunciar que Cristo ressuscitou e nos precede na nossa Galileia: lugar onde a vida está ameaçada. Assumir o projeto de Jesus dá medo e, muitas vezes, é melhor fugir. É preciso viver a experiência de que há uma esperança: a força da vida é maior do que a morte. É preciso acreditar que “a pedra já foi removida!”
Fonte: Revista Vida Pastoral
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