“A religião consiste na crença de que tudo o que nos acontece é extraordinariamente importante. Por esse motivo, a religião não pode desaparecer do mundo” (Cesare Pavese, 1908-1950, poeta italiano e suicida).
Certa vez, durante uma missa em que a leitura tratava da conversão de São Paulo no caminho de Damasco (Atos 9,3-9), o padre observou na homilia: “Nossas vidas são muito diferentes da vida de São Paulo. As nossas vidas não têm tanta dramaticidade”.
“A minha tem!”, eu pensei na hora. A minha vida tem um nível de drama inacreditável, todos os dias, o dia todo! Será que as fotos vão ficar boas? Será que, pela primeira vez na vida, eu vou conseguir manter a calma na conversa com o departamento de cobranças da operadora de celular? Será que o leite vai ser suficiente para o café da manhã ou vou ter que sair para comprar na loja de conveniência? E, neste caso, não é melhor ir até o mercadinho e pegar também o jornal e aproveitar para subir a colina e ver se a figueira já começou a dar figos? Será que eu vou conseguir redigir essa frase, parágrafo, ensaio, postagem do blog ou livro do jeito que eu quero?
Carl Jung observou certa vez:
“A experiência religiosa é absoluta; ela não pode ser contestada. Você só pode dizer que nunca teve essa experiência, e o seu oponente vai responder: ‘Desculpe, mas eu sim’. E aí a discussão termina. Não importa o que o mundo pensa sobre a experiência religiosa: quem a tem possui um grande tesouro, que se tornou para ele uma fonte de vida, de significado e de beleza, e que trouxe um novo esplendor ao mundo e à humanidade. Ninguém sabe quais são as coisas finais. Temos, portanto, que acatá-las à medida que as experimentamos. E se essa experiência ajuda a tornar a vida mais saudável, mais bonita, mais completa e mais satisfatória para você e para aqueles que você ama, você pode dizer com segurança: ‘Foi a graça de Deus’”.
Nós acreditamos, portanto, não por causa daquilo que os outros nos dizem, mas por causa daquilo que aconteceu conosco. E a maior parte do que nos acontece, quando olhamos de fora, não é particularmente chamativa. Ainda assim, se você é humano, é bem provável que, neste exato momento, você esteja desejando alguém, chateado com alguém, com ciúmes de alguém, ressentido com alguém, incomodado com alguém, sentindo-se abandonado por alguém, com medo de alguém (e talvez esses vários alguéns sejam a mesma pessoa). Você está preocupado com as suas finanças, com o seu peso, com os seus dentes, com o seu futuro, com seus pais idosos, com sua própria idade que também vai aumentando, com os seus filhos rebeldes, com o câncer no mundo, com a possibilidade de ter feito papel de bobo na noite passada, com o que vai comer no almoço.
Eu demorei muito tempo para entender que a religião não é aquilo que fazemos quando conseguimos deixar tudo isso de lado. A religião é perceber que existe um poder maior do que nós e que ele está conosco inclusive no meio de tudo isso.
“No meio da minha vida diária, nas pessoas com quem entrei em contato com, nas coisas que li e ouvi, eu senti aquela sensação de estar sendo acompanhada, de ser desejada; um sentimento de esperança e de expectativa”, disse Dorothy Day, fundadora do Movimento Operário Católico.
A vida que interiormente é vivida ao máximo, mas que exteriormente é contida, focada e quase invisível, é uma marca do santo. “Até mesmo pegar um alfinete, se for por amor, pode converter uma alma”, declarou Santa Teresa de Lisieux.
É claro que há uma linha tênue entre a paixão e a patologia: a crença de que tudo o que acontece conosco é extremamente importante também é a crença do narcisista. Por isso, é importante lembrar que tudo o que nos acontece não é importante porque nós sejamos importantes, mas porque Deus é importante.
Um amigo me confidenciou, há pouco tempo, que ainda se sente atraído por uma mulher com quem teve um caso há sete anos e que hoje é casada e tem filhos. “Às vezes eu acho que estou louco!”, disse ele. “Eu não estou fazendo nada de errado. Não a estou perseguindo. Mas não consigo arrancá-la do meu coração! E isso é um tipo de angústia”.
Eu o entendi perfeitamente. Dorothy Day sentia o mesmo por Forster Batterham, o amor de sua vida, a quem ela deixou aos vinte anos para servir aos pobres e à Igreja. Margot Fonteyn, grande bailarina, se manteve fiel ao playboy panamenho com quem se casou, cuidando dele mesmo depois que o marido de uma das amantes que ele teve o baleou e deixou paralisado.
No auge da carreira, Pavese foi encontrado morto num quarto de hotel. Atormentado por um caso de amor que não deu certo, ele tomou uma dose letal de comprimidos para dormir. Eu entendo perfeitamente isso também. Só Cristo, aprendi, pode preencher o meu coração, o meu desejo, a minha saudade, a minha dor, os meus anseios, a minha fome e a minha sede; o meu amor. Sem Ele, a vida poderia se tornar tão dramática e tão extraordinária que não suportaríamos a intensidade dos nossos sentimentos.
Morrer por amor, no entanto, talvez seja justamente a razão pela qual a religião não pode nunca desaparecer da face da terra.
Por Heather King via Aleteia
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