“Ser luz na escuridão das celas”: essa é a missão, nas palavras da Irmã Petra Silvia Pfaller, dos quase 3 mil agentes da Pastoral Carcerária, ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Considerando que o país tem hoje, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma população carcerária de 919.651 presos, a maior já registrada no país, a proporção é de um agente de pastoral para iluminar a vida de 306,5 mil presos. “Um dos maiores desafios enfrentados hoje pela pastoral é o fechamento cada vez maior do cárcere. Se não conseguimos entrar nas prisões, não conseguimos estar próximos dos irmãos e irmãs encarcerados. O cerne da nossa missão é ‘Estive preso e foste me visitar’ [Mt 25, 36]”, explica a coordenadora nacional da Pastoral Carcerária que nasceu na Alemanha, chegou ao Brasil em 1991 e é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO).
Em abril de 2020, pouco mais de um mês depois do início da pandemia de do novo coronavírus, havia no Brasil 858.195 pessoas encarceradas. Em maio, o total de presos subiu para 919.651, um aumento de 7,6% ou, em números absolutos, 61.456 mil novos detentos. A situação carcerária no Brasil só não é ainda pior porque 352 mil mandados de prisão, 24 mil de foragidos, continuam em aberto; caso contrário, o total de encarcerados já teria chegado à impressionante marca de 1.271.651 pessoas. “A superpopulação carcerária não resolve o problema da violência no país. Pelo contrário, viola a dignidade humana e traz consequências terríveis”, continua a religiosa das Irmãs Missionárias de Cristo, que acrescenta: “Falta de tudo: água, comida, atendimento médico… Até espaço para dormir e lugar decente para as necessidades pessoais! Não bastasse isso, há atraso nos andamentos processuais e número reduzido de defensores públicos”.
Segundo levantamento do World Prison Brief (WPB), órgão do Instituto de Pesquisa de Política Criminal da Universidade de Londres (ICPR, na sigla em inglês), o Brasil ocupa hoje o terceiro lugar no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (2.068.800) e da China (1.690.000). São 434 presos por cada 100 mil habitantes. Conclusão: nunca houve tanta gente encarcerada no país. “Os cárceres hoje não passam de campos de concentração. São depósitos de gente onde todos saem piores do que entraram”, lamenta o Padre Gianfranco Graziola, assessor teológico da Pastoral Carcerária. “Prisão de ouro, algema de prata; pouco importa. Cárcere é sempre cárcere. Um lugar altamente punitivo e degradante que não educa, dignifica ou ressocializa ninguém. Serve apenas para controlar os pobres, pretos e periféricos e jogar o futuro deles na lata de lixo”, diz o padre.
Em tempos de inflação alta e desemprego idem, o aumento no número de presos pode ser atribuído, em parte, aos chamados furtos famélicos (do latim famelicus, que significa “faminto” ou “esfomeado”), quando o indivíduo furta para comer. “Com a pandemia do novo coronavírus, o desemprego e a fome se agravaram, mas, não podemos ignorar outra pandemia: a da indiferença”, explica Rosilda Ribeiro Rodrigues Salomão, coordenadora nacional para a Questão da Mulher Encarcerada, que continua: “Muitas das pessoas que se encontram privadas de liberdade estão presas por causa da miséria”. Há outras razões, porém, como o pacote anticrime, que tornou mais rigorosas as regras para progressão de regime. O tempo médio de encarceramento no Brasil, por exemplo, aumentou de três a cinco anos para seis a dez anos. Nesse ritmo, em apenas dois anos o Brasil poderá estar perto de atingir a marca de 2 milhões de presos.
Outro dado que preocupa os especialistas é o percentual de presos provisórios no Brasil: 45%, índice considerado altíssimo. Ou seja, dos 919,6 mil brasileiros encarcerados, 413,8 mil ainda não tiveram direito a um julgamento. Por essa razão, muitos acabam ficando atrás das grades por mais tempo do que se tivessem recebido uma sentença. Em outras palavras: estão cumprindo antecipadamente uma pena ainda inexistente. “A prisão provisória é sintomática no Brasil. Dependendo do estado, pode atingir a 60% da população carcerária. Na maioria das vezes, essas prisões são ilegais. A Constituição Federal deixa claro que a prisão é a última medida a ser tomada, mas, o que acontece na prática é o contrário: a prisão é a primeira medida a ser tomada. A pessoa é jogada e esquecida no cárcere e a sociedade tem a falsa impressão de que o problema da violência nas ruas foi resolvido”, explica Irmã Petra.
São muitas as denúncias e os relatos feitos, durante as visitas pastorais ou por meio do formulário on-line, por presos ou familiares: desde celas lotadas, escuras e pouco ventiladas até comida azeda e em pequena quantidade, passando por infestação de ratos, baratas e percevejos. Em abril deste ano, a Defensoria Pública de São Paulo divulgou um relatório a partir de informações apuradas em visitas a penitenciárias, entre 2020 e 2022. Oito em cada dez presídios do Estado estão superlotados. Só no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente, no litoral paulista, que abriga presos que aguardam julgamento, os defensores encontraram 43 detentos numa cela onde só cabem 12. Das 27 unidades prisionais visitadas pelos defensores, 23 estavam com excesso de lotação. O presídio masculino com a menor taxa de superlotação tinha 113% de ocupação e o com maior taxa, 230%. Ao todo, o sistema prisional de São Paulo tem 179 unidades, 88 delas são penitenciárias, e abriga 201 mil presos, sendo 23% deles provisórios. Ainda segundo a Defensoria Pública, 60% dos presos paulistas são negros, 42% jovens e 44% não têm ensino fundamental.
Francisco Carlos de Almeida e Ana Lúcia de Souza são dois dos quase 3 mil agentes da Pastoral Carcerária. “Temos, em média, 350 agentes. Precisaríamos de, no mínimo, uns 800”, calcula Francisco, coordenador estadual da Pastoral Carcerária da Bahia. “Oferecemos cursos profissionalizantes para os ex-detentos e encaminhamos os dependentes químicos para centros de recuperação. Além disso, prestamos ajuda jurídica por meio do acompanhamento de processos junto à Defensoria Pública”, continua. “A Igreja Católica tem uma presença muito tímida no sistema prisional”, avalia Ana Lúcia, coordenadora da Pastoral Carcerária de Minas Gerais. “Todo cristão é chamado a essa missão, mas, por ser um ambiente muito específico, é necessário certo equilíbrio emocional, ser maior de idade e não ter problema para retirar seu atestado de antecedentes criminais”, enumera.
Dos 919,6 mil presos existentes hoje no Brasil, 867 mil são homens e 49 mil, mulheres. O número de mulheres presas hoje é quase oito vezes maior do que era em 2000. Passou de 5,6 mil para os atuais 49 mil. Segundo dados de 2021, 57% delas foram condenadas por ações ligadas ao tráfico de drogas e 11,6% estavam envolvidas em crimes violentos, como homicídio e latrocínio (roubo seguido por morte). “A vida das mulheres nas unidades prisionais é extremamente cruel e torturante. E quando falo tortura não me refiro apenas à agressão física. Torturar alguém é privá-lo de serviços básicos, como falta de água, e de itens de higiene, como absorventes femininos. Milhares de mulheres estão confinadas sem a mínima dignidade. O encarceramento feminino tem crescido exponencialmente. É resultado de uma política criminal misógina e genocida que ataca, inclusive, mães e gestantes”, observa Rosilda.
O número de presos no sistema carcerário brasileiro poderia ser menor se os presídios fossemreservados a criminosos de alta periculosidade, que representam ameaça real à sociedade. Estima-se que 42% das mulheres e 24% dos homens presos estão atrás das grades por terem sido flagrados com pequenas quantidades de drogas, resultado de uma lei antidrogas que não distingue traficante de usuário. “O sistema prisional como está, punitivo e vingativo, em nada ajuda a pessoa a se libertar daquilo que a condenou. Já que algumas pessoas ‘precisam’ ficar encarceradas, que tenham condições dignas para cumprir suas penas e evitar a reincidência”, afirma Rosilda.
“Se eu pudesse mudar algo no sistema carcerário brasileiro, o que eu mudaria? Bem, eu acabaria com ele. Pode parecer utopia, mas utopia mesmo é acreditar que as prisões oferecem algum tipo de solução para a criminalidade. Nada disso! Elas alimentam esse ciclo diabólico de violência. O sonho de Deus é um mundo sem cárceres”, diz Irmã Petra.
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