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20. Vocês devem fazer algum trabalho, para que o diabo sempre os encontre ocupados e não consiga, através da ociosidade de vocês, encontrar alguma brecha para penetrar em suas almas. Nisto vocês têm o ensinamento e o exemplo de São Paulo apóstolo, por cuja boca Cristo falava e que por Deus foi constituído e dado como pregador e mestre dos gentios na fé e na verdade. Se seguirem a ele, não poderão desviar-se.
O trabalho faz parte integrante da condição humana. Ele garante o sustento. A realidade dura da vida, marcada pelo trabalho, também faz parte integrante do caminho que conduz até Deus. Não há outro caminho. Por isso, o trabalho era um elemento básico e comum da vida monástica e eremítica. Os monges e os eremitas viviam do próprio trabalho. Era de dentro desta condição dura do trabalho, e não de fora dela, que os monges procuravam viver o ideal da busca de Deus. O trabalho era um aspecto da luta contra o mal. Era uma arma na luta contra o diabo. Neste ponto, a Regra do Carmo está em continuidade com a tradição antiga.
Como vimos anteriormente, a luta contra o diabo, contra o mal, era a motivação mais profunda que estava na origem da vida monástica. É esta mesma luta contra o diabo, que levou os primeiros carmelitas a assumir o trabalho como elemento básico da sua caminhada em direção a Deus. É o motivo que Alberto coloca em primeiro lugar neste número 20 da Regra sobre o trabalho. Ele diz: Vocês devem fazer algum tipo de trabalho, para que o diabo sempre os encontre ocupados e não consiga, através da ociosidade de vocês, encontrar alguma brecha para penetrar em suas almas.
Conforme a Regra, na porta da alma da gente deve está escrito Ocupada! Trabalhando! O trabalho impede a entrada de hóspedes indesejados, cria resistência no espírito contra a erosão e a desintegração interior. Faz também com que o relacionamento entre os membros da comunidade seja mais harmoniosa, pois impede que um seja peso inútil para os outros. Mantém o equilíbrio, cria harmonia através de uma boa e sábia distribuição dos trabalhos.
Além do sustento e da luta contra o diabo, a Regra enumera vários outros motivos: 1) Evitar a ociosidade. 2) Não pesar nas costas dos outros. 3) Imitar o exemplo de Paulo.
O sentido do trabalho no contexto mais amplo da Regra
O número 20 da Regra sobre o trabalho se esclarece e se aprofunda quando é visto no contexto mais amplo, em que ele se encontra dentro da Regra:
O contexto anterior
Nos números 18 e 19, a Regra tinha começado a falar da armadura de Deus. O trabalho faz parte desta armadura. Além da cintura, couraça, capacete, escudo, espada, o carmelita deve usar como arma o trabalho. A Regra não especifica qual seja o tipo de trabalho. Naquele tempo, podia ser um trabalho mais espiritual: meditação, leitura, estudo, copiar livros, ou um trabalho mais corporal: criação de animais, trabalho na roça, construção. Hoje em dia, será um outro tipo de trabalho.
O contexto posterior
No fim do capítulo sobre o trabalho, citando a carta de Paulo, a Regra conclui: Ordenamos e suplicamos, em nome do Senhor Jesus Cristo, que trabalhando em silêncio ganhem e comam seu próprio pão. Logo no início do capítulo seguinte sobre o silêncio (Rc 21), ela retoma o mesmo assunto dizendo: O apóstolo recomenda o silêncio quando manda que se trabalhe em silêncio. Para a Regra, o trabalho é o lado exterior de uma luta que deve atingir o interior através do silêncio.
Este duplo contexto, anterior e posterior, revela dois aspectos importantes do trabalho como instrumento de luta. De um lado, através do trabalho impedimos, como diz o texto da Regra sobre o trabalho (Rc 20), que o diabo entre de fora para dentro da gente. De outro lado, através do trabalho fazemos irradiar de dentro para fora a força que nasce e cresce em nós pela prática do silêncio. O carmelita, a carmelita, deve lutar para que o diabo não encontre acesso para dentro dele ou dela. Ao mesmo tempo, esta luta faz com que, a partir de dentro, através do silêncio, a salvação do Senhor e a bênção no Espírito Santo, desejadas a todos e todas no prólogo da Regra (Rc 1), sejam liberadas e se esparramem para fora sobre a comunidade e, através da comunidade, sobre a sociedade. Pois dentro da gente, no mais profundo de nós, na raíz do nosso ser, habita Deus. É lá naquela presença silenciosa de Deus em nós, que está a célula inicial da vitória.
O trabalho torna-se, assim, um caminho santo e bom, uma estrada de mão única: de dentro para fora. De fora para dentro, é mão proibida. Mas de dentro para fora, o trânsito é livre e corre a força da vida nova, gerada pelo silêncio e liberada pelo trabalho.
No fim, a Regra recomenda: Este caminho é santo e bom. É nele que vocês devem andar! O trabalho é apresentado como “caminho santo e bom”. Resumindo, a gente poderia dizer que o número 20 da Regra apresenta o trabalho:
O exemplo de Jesus: carpinteiro e lavrador
Jesus assumiu a condição humana lá onde ela pesa mais, isto é, no meio dos pobres. “Sendo rico, se fez pobre” (2 Cor 8,9), “filho do carpinteiro” (Mt 13,55). “Sendo de condição divina, esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de empregado, um no meio de muitos” (Fl 2,6-7). “Ele foi provado como nós, em todas as coisas, menos no pecado” (Heb 4,15).
Jesus nasce leigo, pobre, sem a proteção de uma classe ou de uma família poderosa. Muito provavelmente, a família de José era migrante, vinda de Belém da Judéia (Lc 2,4), foi para a Galiléia em busca de melhores condições de vida, como acontece tanto no Brasil. Jesus não teve oportunidade de estudar como o apóstolo Paulo (At 22,3). Teve que trabalhar. Como todo judeu do interior, trabalhava como agricultor. Além disso, aprendeu a profissão de seu pai (Mt 13,55) e servia ao povo como carpinteiro (Mc 6,3).
A escola de Jesus era, antes de tudo, essa vida em casa, na família, na comunidade. Foi lá que aprendeu a conviver, a rezar e a trabalhar. Na carpintaria e na roça. Aprendeu com São José. Trabalho duro para viver e sobreviver. Na Galiléia a terra não é ruim. Dá o suficiente para o povo viver. Mas os impostos eram altos e o controle rígido. Havia muitos cobradores de impostos (os publicanos) (Mc 2,14.15). O povo não tinha defesa contra o sistema que o explorava.
Jesus viveu em Nazaré, trabalhando na roça e na carpintaria. Camponês e operário. Trabalhador. Trinta dos trinta e três anos. É muito!
Durante o longo governo de Herodes Antipas na Galiléia (de 4 antes de Cristo a 39 depois de Cristo) cresce o latifúndio (ligado aos Saduceus) em prejuízo das propriedades comunitárias que eram a característica do sistema tradicional dos judeus. Os muitos impostos faziam diminuir a renda das pequenas propriedades. O Livro de Henoque, escrito nessa época, denuncia os poderosos donos das terras (Henoque 46,3-4; 48,8; 53,5; todo o capítulo 62) e exprime a esperança dos pequenos para o dia da vinda do Reino: “Então, os poderosos e os grandes já não serão mais os donos da terra!” (Hen 38,4). O ideal do futuro para os antigos era este: “Cada um debaixo da sua vinha e da sua figueira, sem que haja quem lhes cause medo” (1Mac 14,12; Miq 4,4; Zac 3,10). Aos poucos, a política do governo de Herodes tornava impossível a realização deste ideal. É como hoje. A situação está ficando tão ruim para o povo que já não é possível realizar o ideal dos tempos antigos: “Cada um no seu lote com casa própria e bom salário, sem medo de ser assaltado!”
Tudo isto, Jesus o viveu e o experimentou, naqueles anos todos em Nazaré. Via os escribas se esforçando para ensinar ao povo as coisas da lei. Via os fariseus insistindo na observância da pureza. Via os sacerdotes preocupados com as coisas do culto no Templo. E quem estava preocupado com a vida do povo trabalhador? O povo era como um rebanho sem pastor, abandonado (Mt 9, 36-37; Mc 6,34). Queria entrar no Reino e não podia, porque os que tinham a chave não abriam a porta (Mt 23,13). E Jesus dizia: “Tenho dó deste povo!”(Mc 8,2).
Este foi o povo com que Jesus conviveu durante trinta anos. Era esta a situação que ele experimentava e sofria diariamente. Era aqui, nesta escola do trabalho, que ele, através do longo silêncio de trinta anos, “crescia em sabedoria, graça e tamanho, diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). A escola continua aí! As matrículas continuam abertas. E tem vaga!
Frei Carlos Mesters, O. Carm
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