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A Bíblia não é a Palavra de Deus, escrito perfeito, sem erros e, portanto, sem contradições internas ou falta de lógica e coerência? Tudo o que narra a Bíblia não é historicamente certo e sem erros, em todos os seus detalhes? Alguma coisa do que está na Bíblia simplesmente não aconteceu, ou não aconteceu exatamente como está escrito?
O Papa João Paulo II em sua Carta Apostólica “Novo Millenio Ineunte”, ao iniciar o capítulo sobre o rosto do Cristo a contemplar a partir dos Evangelhos, faz esta ressalva: “De fato os Evangelhos não pretendem ser uma biografia completa de Jesus, segundo os cânones da ciência histórica moderna”.
Para muitos, isso pode soar como novidade, talvez até como escândalo. Então, nem tudo o que está nos Evangelhos é verdade histórica cientificamente exata? Não! É o Papa que está dizendo isso? É! Imagine, então, as estórias do Primeiro Testamento!
A Meta
Não vamos perguntar, portanto, com quem se casou Caim, nem como, sozinho no mundo, ele fundou uma cidade. Vamos nos perguntar o que essas estórias querem dizer da presença de Deus na história do povo no passado, no presente e também no futuro. Não vamos nos perguntar se Deus (Dn 7,9) ou Jesus (Ap 1,14) têm cabelos brancos, vamos entender o que isso quer dizer. Nem se Deus fica sentado num trono e rodeado de anjos, num lugar fixo do espaço, acima da terra, vamos aprender a desconfiar o que os autores nos querem dizer com isso.
A meta da Bíblia não é a de informar-nos sobre história, geografia ou ciências, é a de capacitar e preparar para toda boa obra a pessoa que é de Deus (2 Tm 3,16-17). Esse trecho da Segunda a Timóteo é básico e o ponto de partida para se falar da inspiração divina da Escritura. A Bíblia é inspiradora de Deus, porque é inspirada por Deus. Segundo Bento XVI (Verbum Domini n.19), ela nos mostra a presença de Deus na História, para isso ela é inspirada pelo sopro de Deus, o Espírito Santo.
Ela não é inspirada para garantir a verdade histórica e científica dos fatos que narra, ela não tem obrigação de contar tudo exatamente como aconteceu, como num inquérito policial. Aliás, quanto mais incoerente ou desengonçada é a estória, tanto mais ela mostra que está falando de maneira figurada. Se em dois dias (“No terceiro dia” diz o Evangelho) Jesus vai com seus discípulos do lugar onde João batizava até a Galiléia, a mais de cem quilômetros de distância, dá para desconfiar que “debaixo desse angu tem carne”, isso é indício de linguagem figurada.
E quando Jonas ficou por três dias e três noites na barriga de um peixe? E quando Deus se arrepende e desiste do castigo que havia ameaçado? E quando Abraão negocia com Deus a não destruição de Sodoma e Gomorra, pedindo descontos e mais descontos? E quando Jesus sozinho (Jo 6,10-11) reparte pão e peixe para cinco mil senhores, sentados? Não havia mulheres nem crianças, mas é de um menino a iniciativa de oferecer os cinco pães e dois peixes. E quando (Jo 11,44) “o morto saiu de mãos e pés atados e ainda tendo a cabeça coberta por um pano”?
E quando em Mateus o pai de José se chama Jacó, enquanto que em Lucas chama-se Eli? E quando em Mateus o Menino Jesus foi levado para o Egito e só foi morar em Nazaré dois anos depois, ou seja, após a morte de Herodes, enquanto que em Lucas, quarenta dias depois do nascimento, a Família foi a Jerusalém levando o Menino para os rituais prescritos e depois retornou a Nazaré?
A Bíblia se parece mais com uma pintura moderna do que com uma fotografia. Ela não é inspirada para ser fotografia, é inspirada para transmitir a mensagem de que Deus está caminhando com a gente. É inspirada como uma obra de Portinari ou de Salvador Dali. Se você olhar essas obras como retratos ou cópias fiéis da realidade, você as acha mal feitas ou até absurdas, mas se aprender a observá-las como cheias de simbolismos, nunca vai terminar de contemplá-las, nunca se dará por satisfeito suas observações, estará sempre descobrindo coisas novas. Assim é também a Bíblia, não uma fotografia barata, mas uma preciosa obra de arte.
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