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A devoção a Maria é um aspecto da piedade do povo brasileiro e dos povos dos demais países latino-americanos, profundamente arraigado em nossas culturas, como expressa o Documento de Aparecida: “Em nossa cultura latino-americana e caribenha conhecemos o papel tão nobre e orientador que a religiosidade popular desempenha, especialmente a devoção mariana, que contribuiu para nos tornar mais conscientes de nossa comum condição de filhos de Deus e de nossa comum dignidade perante seus olhos, não obstante as diferenças sociais, étnicas ou de qualquer outro tipo” (nº 37). Há quem busque encontrar o fundamento dessa devoção nas sociedades patriarcais formadas pela colonização portuguesa e espanhola em nosso continente, nas quais a figura materna é exaltada como o centro de estabilidade da família. À mãe compete a autodoação abnegada pela felicidade de cada um de seus familiares e pela união entre eles. Não se pode negar que essa estrutura social tenha contribuído para aprofundar a devoção mariana entre nós, pois Maria realmente nos assumiu como filhos, na maternidade dolorosa aos pés da cruz de Jesus, sinal de entrega total à missão de seu Filho.
Por outro lado, muitas situações da história da salvação nos mostram como Deus se vale das circunstâncias de um determinado contexto para manifestar seu desígnio eterno. A devoção mariana é obra divina, que a própria mãe do Senhor profetizou diante de sua prima Isabel, “Doravante me proclamarão bem-aventurada todas as gerações” (Lc 1,48), e que João confirma no seu Evangelho, ao receber o encargo de cuidar dela: “Quando Jesus viu sua mãe e perto dela o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe” (Jo 19,26-27). Essas palavras da Sagrada Escritura se realizaram na história e se desdobram na tradição da Igreja, ao longo dos séculos.
(…) A história da imagem de Nossa Senhora de Nazaré remonta a um passado distante, sendo que a tradição chega a afirmar que teria sido esculpida por São José e mais tarde pintada por São Lucas. No século VIII há registro de sua presença na Espanha, de onde foi depois levada para Portugal. Naquele país, a devoção se propagou a partir do século XII, tornando-se conhecida em todo o império português.
A devoção a Nossa Senhora de Nazaré surgiu no Brasil primeiramente em Saquarema, no atual Estado do Rio de Janeiro, introduzida pelos portugueses. Data do século XVII o primeiro relato de um milagre, quando a imagem foi encontrada por um pescador. A pequena capela construída no local foi substituída por uma igreja de tamanho maior em 1837 e ali se realizou o primeiro Círio de Nazaré em nosso país, cuja tradição é anualmente renovada.
Os jesuítas levaram essa devoção para Belém do Pará, onde Nossa Senhora de Nazaré começou a ser cultuada há mais de 200 anos, com o Círio que representa a maior manifestação de piedade popular do mundo. Quando fui arcebispo de Belém, pude vivenciar a experiência da força mobilizadora que a fé suscita no povo daquela região, que cultua a Virgem de Nazaré como Rainha da Amazônia.
A história de Nossa Senhora Aparecida é mais recente e de origem nacional. Conhecemos o relato sobre a imagem encontrada pelos pescadores no rio Paraíba, da qual recolheram primeiramente o corpo e depois a cabeça. A devoção dos fiéis, que começou na casa de um dos pescadores, não cessou mais de se expandir, de modo que, para acolher um número crescente de pessoas, foi construído um oratório no porto de Itaguaçu e posteriormente uma capela no alto do morro dos Coqueiros, a antiga basílica inaugurada em 1888 e, finalmente, a basílica atual, sagrada em 1909, atualmente o quarto santuário mariano mais visitado do mundo.
Como afirmei no início deste texto, Deus manifesta seu plano salvífico na história. Portanto, a magnitude destas devoções só confirma a importância da presença de Maria na Igreja e sua atuação como modelo e intercessora junto aos filhos. Acredito que as devoções a Nossa Senhora de Nazaré e a Nossa Senhora Aparecida se complementam, tanto no contexto da nossa cultura como da nossa fé. “Nisso reside o valor incomparável do ânimo mariano de nossa religiosidade popular que, sob distintos nomes, tem sido capaz de fundir as diversas histórias latino-americanas em uma história compartilhada: aquela que conduz a Cristo, Senhor da vida, em quem se realiza a mais alta dignidade de nossa vocação humana” (Dap nº 43).
Maria, enquanto venerada como a Virgem de Nazaré, é aquela que nos liga às nossas raízes ibéricas, que contribuíram para formar a identidade da nação brasileira, juntamente com os outros povos que compuseram as nossas origens. Nossa Senhora Aparecida nasceu “brasileira”, na sua origem em terras paulistas e na cor que expressa a miscigenação característica do nosso povo.
Como referências à única mãe de Deus e nossa, ambas as devoções surgem em meio ao povo simples e humilde, como sinal de que Maria não se esquece das necessidades de seus filhos. Desde quando não tinham mais vinho nas Bodas de Caná, até às situações de desemprego, injustiça social e miséria que marcam o nosso tempo e a nossa sociedade, ela continua ensinando a esperar em Deus com plena confiança. Mas, ensina também a coragem para mudar as circunstâncias, fazendo tudo o que o seu Filho nos disser.
A devoção mariana é parte integrante da história e da cultura do povo brasileiro, mas poderíamos nos perguntar até que ponto ainda traz uma mensagem para o nosso tempo. Nesta época de mudanças, que também afetaram a condição da mulher no mundo atual, reflitamos se seu perfil se mantém como modelo para as jovens de hoje e das futuras gerações.
Voltando ao Documento de Aparecida, encontramos o seguinte trecho: “Sua figura de mulher livre e forte, emerge do Evangelho conscientemente orientada para o verdadeiro seguimento de Cristo. Ela viveu completamente toda a peregrinação da fé como mãe de Cristo e depois dos discípulos, sem estar livre da incompreensão e da busca constante do projeto do Pai. Alcançou, dessa forma, o fato de estar ao pé da cruz em comunhão profunda, para entrar plenamente no mistério da Aliança” (nº 266).
Penso que o acolhimento de Maria à missão que lhe foi confiada é o melhor exemplo que ela dá a todas as gerações. Ela se tornou mulher livre e forte, consciente de seu caminho e capaz de superar as incompreensões justamente porque se abriu à graça e disse seu “sim” ao plano de Deus. O Poderoso fez maravilhas nela como iniciativa de uma escolha livre e gratuita, que encontrou em Maria também a liberdade de corresponder àquilo que Ele lhe propôs. Portanto, o que Nossa Senhora nos apresenta é um modelo que supera os condicionamentos culturais, porque aponta para a realização plena da pessoa humana, em qualquer tempo e lugar, na configuração a Jesus Cristo, segundo o desígnio do Pai e pela ação do Espírito Santo.
Como afirma o Papa Bento XVI, na sua Encíclica Deus caritas est, “o Magnificat está inteiramente tecido pelos fios da Sagrada Escritura, os fios tomados da Palavra de Deus” (citado em Dap nº 271). Por isso, cremos que as gerações continuarão a proclamar Maria bem-aventurada, pois a promessa divina é para sempre.
Por Cardeal Orani João Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro (RJ).
Texto adaptado da edição de outubro da Revista Ave Maria. Para ler os conteúdos na íntegra, clique aqui e assine.
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