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A abordagem deste tema é complexa devido à extensão dos termos “Igreja”, “sacramento universal” e “salvação”, também quando tomados em conjunto. Iluminados pela reflexão de teólogos, propomo-nos uma leitura de alguns documentos conciliares, buscando avançar na perspectiva da Igreja como sacramento universal de salvação.
Num primeiro momento, procuramos compreender a sacramentalidade da Igreja na sua dimensão mistérica, à luz do Sacramento-Primordial, Jesus Cristo, tirando toda pretensão de um eclesiocentrismo. O segundo momento é dedicado à compreensão do que o Vaticano II entende por salvação. Seria ainda aquela visão de resgate ou reparação, ou há a procura de nova concepção, mais condizente com a teologia atual? Por fim adentramos na perspectiva segundo a qual a Igreja, sacramento de salvação, procura realizar a missão salvífica do Pai.
Não temos, neste brevíssimo espaço, a pretensão de dizer a última palavra sobre o assunto, muito menos de esgotá-lo. Também não pretendemos entrar no debate gerado pelo “subsist in” (Lumen Gentium, n. 8), especialmente depois da publicação da Declaração da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé Dominus Iesus.[1] Nosso objetivo é concentrar-nos na reflexão sobre a Igreja como sacramento universal de salvação, abrindo os horizontes da reflexão teológica sobre assunto tão importante na eclesiologia.
1. Sacramentalidade da salvação na Igreja
A sacramentalidade da salvação na Igreja tem uma intensidade só compreensível com base na análise da origem do termo e sua aplicação teológica. O termo sacramentum é a tradução latina do termo grego mysterion. Os cristãos resgataram este termo da tradução grega do Primeiro Testamento. No seu domínio profano, significava, originalmente, a deliberação e o plano secreto de guerra do rei (cf. Jt 2,2). No sentido religioso, passa a designar o plano da criação, estabelecido por Deus, revelado a seus confidentes e fiéis (cf. Sb 2,22; Dn 2,27-45).
Sempre se trata de uma revelação que, contudo, de qualquer maneira está oculta, permitindo apenas a alguns escolhidos acesso ao mistério. […] Revelação do mistério significa dom de participar na relação de confiança, na comunhão, na aliança. […]Mysterion exprime, portanto, o secreto plano salvífico de Deus que Ele revela, realizando-o em seus eleitos (SMULDERS, 1965, p. 401).
Ambas as palavras, sacramentum e mysterion, foram usadas como sinônimas pelos latinos. A separação dos termos só aconteceu na primeira parte da Idade Média. A partir daí sacramentum se tornou terminologia específica para designar os sete sinais, enquanto mysterion passou a designar o mistério da revelação como um todo.
Logo no início, a Lumen Gentium nos diz que a “Igreja é, em Cristo, como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1 – grifo nosso). A luz dos povos é Cristo. A Igreja é chamada a resplandecer esta luz de Cristo. É o mysterium lunae de que falavam os santos padres. Nesse sentido é que podemos falar de uma sacramentalidade da Igreja (BARREIRO, 1994, p. 36). O verdadeiro mistério da revelação é o evangelho, e o evangelho é Jesus Cristo. “Cristo é o verdadeiro ‘mistério’ de Deus. É a síntese do eterno decreto de Deus e, ao mesmo tempo, de sua realização e revelação. […] Daí em diante, a palavra pode designar os fatos terrestres em que o plano divino da salvação veladamente se manifesta e se realiza” (SMULDERS, 1965, p. 402). Nesses termos, tira-se toda a pretensão de brilho próprio da Igreja.
Pela sua vida, morte e ressurreição, Jesus se manifesta como o “mistério” salvífico de Deus. Ele é o Sacramento Primordial porque revela o amor do Pai dispensado a toda a humanidade. A Igreja se torna como que o sacramento universal da salvação porque é o Corpo de Cristo, seu sacramento entre a ascensão e a parusia. Cristo, crucificado e ressuscitado, enviou o Espírito aos discípulos “e por Ele constituiu seu Corpo, que é a Igreja, como sacramento universal de salvação” (LG 48).
A relação entre Jesus, Sacramento Primordial, e a Igreja, seu Corpo, é de profunda intimidade, realizada pela ação pneumatológica. Toda a sacramentalidade da Igreja brota do Sacramento Primordial. “Jesus Cristo é o autor da salvação e a origem da unidade e da paz; a Igreja, por sua vez, é o sacramento visível desta salvação” (KASPER, 1989, p. 252). Assim, a Igreja não é o oitavo sacramento, mas participa do sentido mais profundo desse termo traduzido do grego mysterium, que, por sua vez, não significa algo incognoscível, mas aponta para uma realidade divina, transcendente e salvífica, que se revela de modo visível (KASPER, 1989, p. 254). “Comunidade humana de liberdade e de amor, congregada pela ação salvífica de Cristo, unida pelo Espírito Santo, abrigada pelo amor sempre salvador do Pai, a Igreja é sobre a terra o potente sinal do desígnio de Deus nosso Salvador” (SMULDERS, 1965, p. 418).
A sacramentalidade da Igreja é a garantia de sua origem vinculada a Jesus Cristo, manifestando, simultaneamente, sua dimensão teleológica e a especificidade da salvação operada por Deus nela, por meio do único Salvador.
O Senhor Jesus, único Salvador, não formou uma simples comunidade de discípulos, mas constituiu a Igreja como mistério salvífico: Ele mesmo está na Igreja e a Igreja nele (cf. Jo 15,1ss; Gl 3,28; Ef 4,15-16; At 9,5); por isso, a plenitude do mistério salvífico de Cristo pertence também à Igreja, unida de modo inseparável a seu Senhor. Jesus Cristo, com efeito, continua a estar presente e a operar a salvação na Igreja e mediante a Igreja (cf. Cl 1,24-27), que é seu Corpo (cf. 1Cor 12,12-13.27; Cl 1,18) (Dominus Iesus, n. 16).
Com essa concepção de sacramentalidade, o Vaticano II superou a compreensão da Igreja como “sociedade perfeita”, segundo a formulação teológica pós-tridentina (VELASCO, 1996, p. 244). [f1] Assim, o concílio mantém unidos dois polos constitutivos da realidade da Igreja. Trata-se de uma formulação calcedônia, que procura superar as tensões dicotômicas:
A) nestorianismo eclesiológico: vê a Igreja só como uma realidade histórica, sociológica e jurídica, portanto institucional;
B) monofisismo eclesiológico: vê a Igreja como uma realidade espiritual que pertence ao mundo sobrenatural (BARREIRO, 1994, p. 37).
Ambas as posições haviam se acentuado ao longo da história, especialmente pela afirmação católica da Igreja visível em contraposição à afirmação reformada da Igreja invisível. A sacramentalidade da Igreja garante essa síntese tão bem formulada.
Mas a sociedade provida de órgãos hierárquicos e o corpo místico de Cristo, a assembleia visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja enriquecida dos bens celestes, não podem ser consideradas duas coisas, mas formam uma só realidade complexa em que se funde o elemento divino e o humano (LG 8).
A localização da Igreja como sacramento universal de salvação num contexto escatológico (cf. LG 48) deve excluir todo triunfalismo eclesiológico (cf. KASPER, 1989, p. 253). Ela é sacramento de uma salvação que ainda não é plena, mas aponta, como “sinal e instrumento” (LG 1), para uma plenitude, mesmo porque sua sacramentalidade deriva do Sacramento Primordial, Jesus Cristo.
2. Mistério da salvação em Jesus Cristo
Ao longo da história, algumas categorias soteriológicas[2] marcaram sobremaneira a teologia cristã. A formulação redentora do “resgate” está presente na teologia de vários padres da Igreja: Orígenes, Gregório de Nissa, entre outros. Segundo essa concepção, a raça humana caíra, mediante o pecado, na jurisdição do diabo, e a cruz de Cristo foi parte de uma troca com o diabo para resgatar a humanidade. Mais tarde, Anselmo perguntará sobre o sentido de aceitar que o diabo tenha quaisquer direitos legais válidos em relação a Deus, que é criador. A partir daí passa a formular uma nova teoria, inspirada pela cultura feudal da honra ferida (ANSELME, 1963). Dirá ele: com o pecado, a honra de Deus foi ferida e a humanidade, por si mesma, jamais conseguiria repará-la. Por isso foi necessário que o Filho de Deus se encarnasse e morresse na cruz, voluntariamente, para realizar uma satisfação plena pelos pecados do mundo. Dessa maneira Jesus Cristo, homem-Deus, realizou a reparação da honra de Deus. Superando a teologia do resgate, Anselmo instaura a teologia da “reparação-satisfação”, que prevalecerá na teologia e no subconsciente dos católicos por vários séculos.
A categoria da satisfação surgiu como reação à tese de Anselmo. Tomás de Aquino desenvolveu o tema para explicar o valor salvífico da paixão de Jesus Cristo. Para ele, reparar a natureza humana significa “restaurar”, “reerguer”, “recolocar em estado de plena humanidade” (TOMÁS DE AQUINO, Suma teológica, IIIa, q. 46, art. I, 2,3; IIIa, q. 56, art. II). O termo libertação é tomado no sentido de romper a servidão do ser humano ao pecado. O demônio foi derrotado “pela justiça do homem Jesus Cristo”. O salvador deveria mesmo ser um homem-Deus, pois um “simples homem não poderia satisfazer por todo o gênero humano” (Ibid., IIIa, q. I, art. II, resp). Satisfação compreende, portanto, sacrifício e redenção.
Jesus nos teria salvado por ter compensado a dupla dívida contraída pela humanidade no pecado: a dívida da ofensa a Deus e a dívida da pena merecida por essa ofensa. […] a satisfação visa a reparar o direito lesado de alguém. Assim, além de Cristo ter merecido nossa salvação, ele a teria conquistado por agradar a Deus, que estava ofendido pelo pecado (SALVIAN FILHO, 2009, p. 43).
Outra categoria é a substituição, também chamada satisfação vicária, substituição expiatória ou expiação vicária. Teve sua inspiração em Lutero com um corte antropológico: Jesus Cristo assumiu o pecado da humanidade e, pela sua paixão, pagou a pena que recairia sobre nós. Essa apresentação comporta a ideia de que Deus devia “ser vingado” em seus direitos sobre o ser humano. Compreende-se, com essa categoria, a salvação como uma prestação de contas entre Jesus e o Pai, por meio de um pacto sacrifical, para compensar a terrível ofensa do pecado humano. Daí a ideia de uma substituição penal: Jesus assume nossa culpa e paga a pena pelo pecado. Não se trata propriamente de um castigo de Deus, mas de pena devida à ofensa desferida pelo pecado. Seu embasamento procede de 2Cor 5,21 e Gl 3,13. Cristo satisfez objetivamente por nossos pecados, tomou de nós para si o julgamento de punição (satisfatio, sofrimento punitivo vicário) e nos reconciliou com Deus. Assim procedendo, Jesus pagou, em nosso lugar, uma pena que não podíamos cumprir.[3]
A teologia do Concílio Vaticano II reformulou essa mentalidade tradicional e apresentou nova concepção soteriológica. Orientou a salvação da humanidade como a realização da plena humanização da pessoa humana, numa perspectiva de consumação, como restauração de todas as coisas em Cristo (cf. At 3,21; Ef 1,10; Cl 1,20; 2Pd 3,10-13).
[…] Ele [Jesus Cristo] é o homem perfeito que restituiu aos filhos de Adão a semelhança divina, deformada desde o primeiro pecado. Como a natureza humana foi n’Ele assumida, não aniquilada, por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. […] Isto vale não somente para os cristãos, mas também para todos os homens de boa vontade em cujos corações a graça opera de modo “invisível”. Com efeito, tendo Cristo morrido por todos e sendo uma só a vocação última do homem, isto é, divina, devemos admitir que o Espírito Santo oferece a todos a possibilidade de se associarem, de modo conhecido por Deus, a este mistério pascal (Gaudium et Spes, n. 22).
A encarnação de Jesus Cristo é entendida na dimensão soteriológica: o Filho se encarna para ajudar a humanidade a potencializar sua impotência, saciando sua sede de infinito, segundo sua vocação divina. Encarnando-se, Jesus foi desatando todas as impotências humanas, libertando todas as suas capacidades, tornando possível que cada pessoa humana realizasse essa potencialização (QUEIRUGA, 1999, p. 179).
O ser humano não ficará abandonado a si mesmo: ao criá-lo, Deus em pessoa decidiu entrar em sua história e, identificando-se com ele, elevá-lo sobre suas próprias possibilidades, abrindo-lhe assim o caminho “impossível” da realização e da felicidade plenas. A redenção é, antes de tudo e sobretudo, a realização desse projeto (Ibid., p. 176).
A obra redentora de Jesus Cristo consistiu, portanto, em elevar a humanidade à plenitude, constituindo-a em participante da natureza divina (cf. Ad Gentes, n. 3). A encarnação do Verbo se tornou o sinal da vontade salvífica de Deus, sendo, ao mesmo tempo, a realização da graça de Deus presente e perceptível na história, de maneira sensível.[4]
3. Ação salvífica da Igreja
A Igreja é comunidade de salvação enquanto sacramento do Sacramento Primordial, inspirada pelo Espírito. Sua missão é salvífica na perspectiva da difusão do reino, avançando pela estreita via da cruz, preparando os caminhos para a plenitude. E é nesta dimensão que a declaração Dominus Iesus aborda a necessidade da mediação eclesial para a salvação, partindo de uma citação de Lumen Gentium, n. 14.
Deve-se crer firmemente que a “Igreja peregrina é necessária para a salvação. O único Mediador e o caminho da salvação é Cristo, que se nos torna presente no seu Corpo, que é a Igreja. Ele, porém, inculcando com palavras explícitas a necessidade da fé e do batismo (cf. Mc 16,16; Jo 3,5), ao mesmo tempo confirmou a necessidade da Igreja, na qual os homens entram pelo batismo como por uma porta” (Dominus Iesus, n. 20).
Para Karl Rahner, existe uma história da salvação que se desenrolou e chegou ao seu vértice absoluto e irreversível na história de Jesus. Essa história da salvação, por sua vez, já não pode desaparecer, ou seja, deve ser Igreja (RAHNER, 1989, p. 406). “[…] como sacramento, a Igreja participa do dom salvífico universal de Deus, tornando-se ela própria um sinal universalmente presente do amor de Deus no mundo” (KEHL, 1997, p. 90).
O mistério da salvação na Igreja é a autocomunicação de Deus, é o cristianismo como evento salvífico, como agir de Deus para conosco e, ao mesmo tempo, resposta do ser humano a esse agir (RAHNER, 1989, p. 405). Sendo graça, esse agir de Deus se dá na mediação de experiências históricas. A tentação de prescindir disso, adotando uma atitude dualística ou gnóstica, acabará por sucumbir o mistério da Igreja (SCHILLEBEECKX , 1994, p. 269).
Sendo “sacramento-mistério”, a Igreja aponta para uma plenitude da realidade salvífica, em demanda de uma consumação ainda esperada. Essa é sua dimensão escatológica. Assim entendida, a vida da Igreja não é o último-definitivo, mas sua antecipação sacramental.
Ela [a Igreja] é, de algum modo, a própria salvação realizada, a nova criação da humanidade segundo a imagem do Criador, a qual está irrevogavelmente estabelecida e antecipada para sempre. Ela já mostra a definitiva unidade do escolhido povo de Deus. Com isso está servindo a essa unidade de que ela prefigura. […] Tudo isso exprime, todavia, uma relação bem rica e real com a salvação. […] A Igreja é mais do que simples meio de salvação. Ela é a forma terrena da salvação, a sua realização na terra e o germe do reino definitivo de Deus […]. Ela é o eleito Povo de Deus da eterna aliança. […] É meio e sinal de salvação, por ser já agora a garantia da salvação (SMULDERS, 1965, p. 414).
Lembra-nos a Gaudium et Spes a que fim tende a Igreja: “[…] que venha o reino de Deus e seja instaurada a salvação de toda a humanidade” (GS 45). Depois de ter afastado a tentação de se igualar ao reino, a Igreja se põe na posição de serviço à edificação desse reino, que é maior do que ela. Tal serviço é prestado a toda a humanidade, enquanto a Igreja procura seguir o mesmo caminho do Mestre, comunicando os frutos da salvação a todas as pessoas, vendo-se humilde e abnegada para ser testemunha do evangelho. Mesmo necessitando de bens terrenos para realizar sua missão, a Igreja tem consciência de que não foi instituída para buscar a glória terrestre.
A Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e sofredor. Faz o possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir a Cristo. […] Entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus, avança, peregrina, a Igreja, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que venha (1Cor 11,26). Mas é fortalecida pela força do Senhor ressuscitado, a fim de vencer pela paciência e pela caridade de suas aflições e dificuldades tanto internas quanto externas, para poder revelar ao mundo o mistério d’Ele, embora entre sombras, porém com fidelidade, até que no fim seja manifestado em plena luz (LG 8).[5]
A Igreja é sinal de Jesus Cristo, por causa de sua tríplice figura de serva: 1) é a Igreja dos pobres; 2) é a Igreja dos pecadores – uma Igreja que é santa e, ao mesmo tempo, deve ser continuamente purificada; 3) é a Igreja perseguida (KASPER, 1989, p. 254). Sendo servidora e necessitada de purificação, “a Igreja peregrina leva consigo […] a figura deste mundo que passa e ela mesma vive entre as criaturas que gemem e sofrem como que dores de parto até o presente e aguardam a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rm 8,19-22)” (LG 48).
O plano salvífico de Deus é dirigido a todos os seres humanos a partir da ação sacramental do Filho, mediante a inspiração do Espírito. Podemos falar de uma universalidade salvífica a partir da verdade: ninguém está excluído dessa proposta. “Deus quer a salvação de todos mediante o conhecimento da verdade. A salvação encontra-se na verdade. Os que obedecem à moção do Espírito de verdade já estão no caminho da salvação; mas a Igreja, a quem essa verdade foi confiada, deve ir ao encontro de seu anseio, levando-lhe a mesma verdade” (Dominus Iesus, n. 22).
O concílio ensina que a Igreja é necessária para a salvação, pois Cristo, único mediador e caminho da salvação, se torna presente no seu corpo que é a Igreja. E ainda afirma que não podem se salvar “aqueles que, sabendo que a Igreja Católica foi fundada por Deus através de Jesus Cristo como instituição necessária, apesar disso não quiserem nela entrar ou nela perseverar” (Lumen Gentium, n. 14). Há outra expressão que parece acentuar essa exclusividade: “Somente através da Igreja Católica de Cristo, auxílio geral de salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação” (Unitatis Redintegratio, n. 3).
Esses termos fazem-nos recordar o famoso axioma de Orígenes e Cipriano: “Extra ecclesiam nulla salus”, formulado num contexto específico com um sentido próprio. Kehl procura uma hermenêutica sobre aquele axioma, afirmando que ele “não deve se referir exclusivamente à Igreja constituída institucional-sacramentalmente, como se fora de suas fronteiras visíveis não se desse nenhum caminho salvífico […], mas que também assume, desde a criação até a consumação do reino de Deus, sempre uma configuração universal sacramental” (KEHL, 1997, p. 62-63). Analisando mais atentamente, verifica-se que é essa a ideia que o concílio deseja expressar: “Deus pode, por caminhos d’Ele conhecidos, levar à fé os homens que sem culpa própria ignoram o evangelho” (Ad Gentes, n. 7). Há outra passagem, mais clara, que alarga bem mais essa compreensão:
Todos os homens, pois, são chamados a esta católica unidade do povo de Deus, que prefigura e promove a paz universal. A ela pertencem ou são ordenados de modos diversos quer os fiéis católicos, quer os outros crentes em Cristo, quer enfim todos os homens em geral, chamados à salvação pela graça de Deus (LG 13).
A missão soteriológica da Igreja tem seu campo no horizonte da história, mas transcende-o para uma dimensão escatológica, da qual ela já é antecipação, como queseu sacramento: “[…] a Igreja, sal da terra e luz do mundo, é chamada com mais instância a salvar e renovar toda criatura, para que tudo seja restaurado em Cristo, e n’Ele os homens constituam uma só família e um só povo de Deus” (LG 1).
Não resta dúvida de que o melhor meio de que a Igreja pode servir-se na sua missão salvífica é o testemunho do amor inspirado na oferenda plena consumada por Jesus Cristo no altar da sua vida como doação levada às últimas consequências. Oferecendo-se incondicionalmente à humanidade, Jesus Cristo inaugurou a aurora dos tempos escatológicos da plena humanização da humanidade. Nele somos salvos para uma nova dimensão, até que ele seja “tudo em todos”. Ele é o protótipo para a missão da Igreja, comunidade salvífica, pois é ele o Sacramento Primordial.
A análise de vários documentos e a reflexão teológica de autores modernos nos garantem que a Igreja é uma instituição que não existe por si mesma nem para si mesma. Em Jesus Cristo, ela se torna sacramento do Sacramento Primordial com o sentido teleológico de apontar o caminho salvífico. Pela ação do Espírito, está vinculada ao Salvador único – eis o seu mistério. Por isso é chamada a superar todo jurisdicismo e exorcizar a tendência de igualar-se ao reino. Antes, ela aponta para o reino, antecipa-o e dele é serva.
Enquanto instituição, a Igreja não esgota o Sacramento Primordial. Este é maior que ela e pode manifestar-se de maneiras diversas nas variadas culturas da humanidade. Afinal, Deus tem muitos meios para salvar a humanidade. Portanto, há que reconhecer que a graça salvífica pode chegar antes do sacramento institucional.
Sentimos o chamado a aprofundar uma hermenêutica do sentido de catolicidade que não pode ser esgotado no cenário da instituição católica. A pretensão de apropriar-se da salvação, como sua única via, descarta a realidade sacramental do ser Igreja, pois ela não é a realidade última da salvação de Deus na história, mas aponta para ela,como que em mistério.
Fonte: Revista Vida Pastoral
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