ACONTECE NA IGREJA Amor Bíblia Carmelitas Carmelo Catecismo Catequese Catequista Catequistas CNBB Coronavírus Deus ESPAÇO DO LEITOR Espiritualidade Espírito Santo Eucaristia Família Formação Fé Igreja Jesus juventude Maria MATÉRIA DE CAPA Natal Nossa Senhora do Carmo O.Carm. Ocarm Oração Ordem do Carmo Papa Francisco Pentecostés provocarmo Páscoa Quaresma Reflexão SANTO DO MÊS Sociedade Somos Carmelitas somoscarmelitas São Martinho Vida vocacional Vocação vocação carmelita
Uma introdução a Gênesis 1-11
Certa vez, depois de ter estudado com um grupo a história de Israel por um ano, um senhor perguntou: “Nós já estamos no final do Primeiro Testamento, mas quando vamos estudar a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio e a torre de Babel?” Sem saber o que responder, pois eu considerava o assunto já resolvido, respondi que esses relatos são simbólicos. Então, outro senhor retrucou em seguida: “Como?! A Bíblia só contém verdades e tudo o que está escrito aí aconteceu mesmo”. Outra pessoa entrou na discussão: “Mas quem estava no início de tudo para escrever o que aconteceu?”. E a discussão continuou com outras intervenções, e todos queriam ter razão. Procurei rever o caminho feito e acrescentei que a Bíblia não é relato científico nem relato de fatos acontecidos, mas relato teológico. Infelizmente, algumas pessoas desistiram do curso.
Essa experiência me ensinou que é preciso ir devagar, respeitar a realidade das pessoas que estão à nossa frente. O que está na Bíblia não é só um conhecimento teórico, mas já está entranhado em nossas convicções religiosas. As perguntas surgem da maneira como nós lemos e entendemos a Bíblia. Por exemplo, a leitura fundamentalista é aquela que considera o texto ao pé da letra: “Está escrito, então foi assim mesmo”. Quem faz esse tipo de leitura se fecha ao diálogo com as ciências e com outras possibilidades de entender o texto.
Ler a Bíblia como livro científico também é outro erro. Ela não é um livro de verdades científicas, que podem ser comprovadas, mas um livro de fé, baseado nas tradições do povo do qual surgiram os textos. Há muitos relatos que transmitem uma verdade simbólica, por exemplo: dizer que o ser humano foi criado da terra expressa sua situação de fragilidade, sua integração com a terra e seu compromisso de preservá-la como fonte de vida. Como você lê e entende a Bíblia?
Este artigo é um convite para refletirmos sobre Gênesis 1-11. Os autores dessas páginas iniciais da Bíblia procuraram responder, em proveito das pessoas do seu tempo, às questões existenciais do ser humano sobre a origem da vida e da morte, do bem e do mal. Essas respostas foram construídas com base na cultura e na realidade de um povo, ao longo de várias gerações, utilizando estruturas e expressões próprias do mito. O termo grego mytos significa história que se conta.
O uso da palavra mito pode causar certa estranheza, pois o sentido moderno desse termo é de ilusão, mentira ou compreensão equivocada de determinado assunto. Mas o significado de mito é mais profundo. São histórias nascidas da necessidade de explicar como e por que as coisas acontecem. Os mitos transmitem verdades existenciais do ser humano e estão relacionados com a sabedoria de vida de determinada cultura em uma época específica.
Os relatos de Gênesis 1-11 apresentam uma resposta sobre as origens do universo e da humanidade. Os autores desses capítulos iniciais tiveram como fonte de inspiração as tradições do Antigo Oriente Próximo, especialmente da Mesopotâmia, do Egito e de Canaã. Na tentativa de entender esses escritos, vamos começar recordando a visão de mundo dos povos do Antigo Oriente Próximo.
I. A cosmovisão do Antigo Oriente Próximo
Na primeira página do livro do Gênesis, lemos: “No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfície das águas” (Gn 1,1). No início, só havia águas e escuridão. A ação de Deus é criar a luz e separá-la das trevas. Criar o firmamento e separar as águas das águas. Então, conforme o relato, “Deus fez o firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento” (Gn 1,7).
A criação do universo relatada em Gn 1,1-2,4a baseia-se na ciência da época. O desenho abaixo esquematiza a visão dos povos do Antigo Oriente Próximo.
Eles acreditavam que a Terra tinha a forma de um disco plano, sendo rodeada por águas e sustentada por colunas. As águas de baixo eram chamadas de águas inferiores, onde ficavam o abismo e o xeol, a morada dos mortos. Sobre a terra estendia-se o firmamento, uma espécie de arco ou tigela virada para baixo. Nesse firmamento, estavam pendurados o sol, a lua e as estrelas. Acima do firmamento ficavam as águas superiores, que saíam através das comportas, e mais acima estava a morada de Deus.
Os autores de Gênesis 1 a 11 usaram a linguagem, a cultura, os símbolos e a ciência de sua época, mas adaptaram esses elementos à sua realidade e à sua crença religiosa. Os autores desses relatos transmitem a experiência de Deus presente na história.
II. No presente, de olho no passado, tendo em vista o futuro
As narrativas contidas na Bíblia surgem de pessoas e grupos que, nos momentos de dificuldades, remontam às origens. Essa volta aos primórdios, com perguntas e inquietações do presente, é uma tentativa de oferecer uma resposta ao dia a dia e apontar novos horizontes, tendo em vista o futuro. Portanto, os textos são uma mistura de memórias, experiências e sonhos. Eles devem ser lidos numa perspectiva de fé.
Ao abrirmos o livro do Gênesis, deparamos com dois diferentes relatos da criação: Gn 1,1 a 2,4a e 2,4b a 25. O primeiro é completo: Deus, por meio de sua palavra, cria a luz, o céu, a terra, o mar, os luzeiros, os seres vivos, o homem e a mulher. A criação está ordenada num esquema de seis dias, reservando o sétimo para o descanso. O segundo relato não fala da criação do céu, do mar, nem mesmo dos astros, mas começa com Javé Deus modelando o homem por meio da terra e plantando um jardim; da terra, Javé Deus faz nascer as plantas, modela os seres vivos e, por fim, da costela do homem, modela a mulher. A missão do ser humano é cultivar e guardar a terra.
Qual é o relato verdadeiro? Afinal, Deus criou o mundo e todos os seres vivos por meio de sua palavra criadora ou os modelou por meio da terra? E o seu nome: é Deus ou Javé Deus? Essas e outras perguntas surgem quando lemos os relatos da criação como fatos ocorridos num tempo histórico, e não como textos escritos numa linguagem simbólica, numa perspectiva de fé.
Os diferentes relatos da criação não surgem da pena de apenas um autor, mas são fruto de longo processo histórico. Gênesis 1 a 11 recolhe histórias de várias gerações. De acordo com o relato de Gênesis 1, só existe água; portanto, não há possibilidade de vida. Isso configura uma realidade de caos. A visão de mar originário está presente na Babilônia e também no Egito. A separação das águas possibilita o desabrochar da vida. Trata-se de texto cuja preocupação é a preservação do universo. É possível que esse primeiro relato da criação tenha surgido no exílio da Babilônia, por volta de 550 a.C.
No relato de Gênesis 2, a realidade de caos é não ter chuva nem ser humano para cultivar a terra: é a preservação do campo que está ameaçada. A realidade de seca é própria da terra de Israel. Esse segundo relato, provavelmente, surge no contexto da monarquia (1030-587 a.C.). Trata-se de um protesto de grupos de camponesas(es) explorados e oprimidos pelos governantes, a ponto de alguns estarem perdendo suas terras e se tornando escravos.
Para entender a mensagem de cada texto, é preciso conhecer a história de Israel. Vamos recordar, em linhas gerais, os principais períodos da história desse povo.
III. Algumas referências importantes na história de Israel
O período de 1250 a 1030 a.C. é conhecido como o início da formação do povo de Israel, com sua organização em tribos. Nesse tempo, não existe rei, o poder é descentralizado e as decisões são tomadas em assembleias. A maioria da terra é propriedade coletiva. O princípio básico é a partilha e a solidariedade. O trabalho e seu fruto são repartidos entre todos, conforme a necessidade de cada grupo. A Lei existe para defender a vida, especialmente a das pessoas enfraquecidas. Algumas memórias desse período — por exemplo, a integração com a terra — estão preservadas em Gênesis 2.
A passagem do período tribal para a monarquia se realiza por volta do ano 1030 a.C. Israel passa a ter uma corte, um exército e um templo, centralizando o poder nas mãos de apenas uma pessoa: o rei. Nesse período, o povo é obrigado a pagar tributos em forma de produtos e de trabalhos forçados. O endividamento atinge muitas famílias camponesas, que acabam perdendo as próprias terras. A ganância dos reis, os interesses de sua corte e de seus partidários provocam constantes guerras, com consequente destruição da terra e da vida do povo — essa é a realidade descrita em Gênesis 3. No ano de 586 a.C., Jerusalém é invadida, o templo é destruído e alguns grupos são exilados para a Babilônia.
O exílio da Babilônia causa profunda crise na história de Israel (586-539 a.C.). Mas revela-se também um tempo de grande criatividade, tanto para quem fica nos arredores da cidade de Jerusalém e nas cidades do interior como para quem foi deportado. É um momento em que as lideranças religiosas refletem sobre o porquê do sofrimento, do exílio e do castigo. Nesse período, a história de Israel, que já havia sido escrita, é revista. No exílio nascem muitos escritos que hoje fazem parte da Bíblia, como o poema da criação (Gn 1,1-2,4a), a história do dilúvio (Gn 6,5-9,17) e a tradição da torre de Babel (Gn 11,1-9).
Em 539 a.C., os persas dominam a Babilônia. O novo império favorece a reorganização dos povos dominados à luz da religião, exigindo em troca submissão política e pesados tributos. Com o apoio e o incentivo do império, alguns grupos de judeus exilados voltam para Jerusalém e reorganizam o povo com base no Templo e na Lei, sob o governo de sacerdotes oficiais.
Para pagar os tributos, multiplicam-se os sacrifícios e as exigências da Lei, especialmente das leis referentes à pureza e ao sábado (8,20-21). A volta do exílio da Babilônia começa a partir de 538 a.C. Inicia-se o período da reconstrução de Israel com base na Lei e no Templo, sob o governo dos sacerdotes. Por volta do ano 400 a.C. se dá a redação final dos livros de Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. A partir dessa época, essa coleção de livros se torna conhecida, na tradição judaica, como a Torá, a Lei, e, na tradição cristã, como Pentateuco.
No livro do Gênesis há memórias dos vários períodos da história de Israel. A redação final desse livro ocorre por volta dos anos 400 a.C. Os autores de Gênesis 1 a 11, de acordo com sua cultura e crença religiosa, respondem às necessidades de sua época em contextos e lugares diferentes. Esses textos são tecidos com a sabedoria acumulada de geração em geração.
É preciso ler esses relatos, deixar-se envolver pela riqueza existente neles e permitir-lhes que continuem desafiando a nossa reflexão sobre a preservação da vida ameaçada de extinção. Que seja um grito de vida!
IV. Algumas indicações para a leitura de Gênesis 1 a 11
Eis algumas chaves de leitura para nos auxiliar na compreensão das narrativas de Gênesis 1 a 11.
1. Os relatos sobre a criação do mundo e da humanidade não são exclusividade de Israel, do Egito e do Oriente Próximo. Também povos de regiões mais distantes, como Índia, China e África, produziram suas histórias sobre a origem do universo. No Egito, um papiro do século XIII a.C. narra a criação da cidade de Tebas com base no relato sobre a criação do sol, que, antes de criar os demais seres, teve de criar a si próprio.
Um poema hindu, que pode ser datado entre os séculos XIV e IX a.C., afirma o seguinte: “Não havia nada, nem não existência nem existência; não havia o reino do espaço nem o céu que está além… Não havia morte nem imortalidade. Não havia nenhum sinal característico da noite ou do dia. Aquele Um respirava, sem vento, pelo seu próprio impulso. Nada havia além dele. A escuridão ocultava no início; tudo era indistinto, tudo era água”.
Um mito dos índios pimas, do Arizona, afirma o seguinte: “No início, só havia escuridão. A escuridão se condensou em alguns lugares, e foi daí que surgiu o Criador”. Na Babilônia, o Enuma Elish era um poema da criação usado na liturgia cultual do ano-novo. Esse poema celebra Marduk como o vencedor das forças do caos, Tiamat. Ele divide o corpo de Tiamat em duas partes: com uma cria o céu, com a outra faz a terra. Na Grécia há um hino a Zeus, o criador do universo. O texto de Gênesis 1 é um hino ao Deus único de Israel, que cria e liberta.
Todas as culturas produzem suas histórias sobre a criação e, por vezes, mais de uma versão, como é o caso da cultura judaica (Gn 1,1-2,4a e 2,4b-25).
2. Gênesis 1-11 afirma a existência de um Deus único. Na região da Mesopotâmia, de Canaã e do Egito existia a crença na existência de várias divindades. No exílio da Babilônia, o povo de Israel entra em contato com a religião do império e se sente confuso em suas convicções religiosas. Na Babilônia havia muitas divindades. Marduk, representado pelo sol, era a mais importante. Os cultos à deusa Sin, lua, e à deusa-planeta Ishtar exerciam muita influência sobre a vida de seus habitantes. Muitas pessoas exiladas começaram a assumir as divindades do império invasor.
Nesse momento, surgem salmos e outros escritos que convocam o povo a renovar sua fé em Deus como o único criador. No Salmo 104,24 lemos: “Quão numerosas são tuas obras, Javé, e todas fizeste com sabedoria. A terra está repleta de tuas criaturas” (cf. Sl 8,4; 121,2; 124,8).
Os relatos de Gênesis 1 a 11, embora sejam de épocas diferentes e utilizem diversos nomes para Deus, testemunham a crença em Deus criador do céu e da terra. Um Deus presente na história.
3. Um Deus com rostos diferentes. As narrativas de Gênesis 1 a 11 apresentam vários rostos de Deus. De um lado, um Deus transcendente, criador e entusiasta de sua criação: “Deus viu tudo que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31). Ele abençoa a sua criação e lhe confere o poder de preservar a vida e dar-lhe continuidade (Gn 1,22.28; 5,2; 9,1.7). De outro, há também a imagem de um Deus próximo, descrito como oleiro, agricultor, jardineiro e construtor (Gn 2,7-8.19.22).
O povo carrega a memória de um Deus sensível às necessidades de sua criação: “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18). Mesmo depois da transgressão, Javé Deus continua presente na vida do ser humano (Gn 3,9; 4,1.9.25). Um Deus que faz justiça aos fracos e oprimidos e não abandona o ser humano à sua própria sorte (Gn 4,10.15).
Em meio à realidade de destruição, o povo procura uma explicação para o seu sofrimento. Voltando às suas origens, constata que o exílio é consequência de suas ações. Essa releitura da história é feita à luz de sua crença religiosa. O povo judeu descreve Deus como justo, como aquele que, em sua fúria, impõe castigos ao homem e à mulher (Gn 3,14-19; 4,11). Um Deus que se arrepende de ter criado o mundo e decide destruir toda a criação por causa da crescente situação de violência (6,7). Porém, ainda prevalece a imagem de um Deus da esperança: o Deus da aliança, sempre disposto a retomar o seu relacionamento com a criatura humana (6,18). É um Deus que não compactua com projeto opressor: é o Deus libertador (11,1-9).
4. Autossuficiência do ser humano. No jardim, o ser humano vive uma relação de harmonia e integração com todos os seres criados. Mas há nova personagem que provoca mudanças: a serpente. Ela é descrita como o animal mais astuto que Javé Deus havia feito. É a serpente que, fazendo-se de aliada, inicia o diálogo com a mulher sobre o contrato entre Javé Deus e Adão. “Então Deus disse: ‘Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim’?” (Gn 3,1).
A serpente exagera na proibição de Deus, mas a mulher também aumenta a sua resposta: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas, do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Dele não comereis’” (3,3). A mulher não especifica se é a arvore da vida ou do conhecimento do bem e do mal (2,9). A serpente se faz de conhecedora das intenções de Deus: “Deus sabe que, no dia em que comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3,5).
A argumentação da serpente atinge o ponto central do ser humano: o desejo de ser como Deus e alcançar a imortalidade. No entanto, ao comerem do fruto, em vez de obterem imortalidade, homem e mulher tomam consciência de sua realidade diante de Deus; não respeitando os limites, eles romperam o relacionamento com Deus e com os outros seres vivos. Viram-se nus, com medo e vergonha diante de Deus.
A realidade de autossuficiência é uma constante na vida do ser humano, provocando outras formas de ruptura. Essa realidade pode ser comprovada nos relatos seguintes, especialmente na história de Caim e Abel.
5. “Onde está teu irmão Abel?” A história de Caim e Abel é a primeira de uma série de conflitos entre irmãos: Ismael e Isaac, Jacó e Esaú, José e seus irmãos. Abel é pastor e Caim, agricultor. A história pode retratar os conflitos entre esses dois grupos, mas também pode representar o conflito entre fracos e poderosos. O nome Caim significa “ganhar, produzir, possuir”. Ele representa um grupo estabelecido. Abel tem o sentido de “neblina, vapor, algo passageiro”, assim como foi sua vida. Ele é pastor de ovelhas e vive na insegurança, migrando de um lugar para o outro em busca de novas pastagens. Deus escolhe Abel, o mais fraco. Caim, não suportando a rejeição, mata o irmão.
À pergunta de Javé, Caim responde com ironia: “Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?” (Gn 4,9). Diante da pergunta de Javé, Caim desconversa. Ele era o filho primogênito, porém Deus não se agradou de sua oferenda; ao contrário, agradou-se de Abel e da oferenda deste. Caim ficou desgostoso, encolerizando-se contra seu irmão. Não podendo agir contra Deus, ele enfrenta Abel, eliminando-o. Um assassinato brutal, sem chances de a vítima se defender.
No capítulo 3, Deus pergunta a Adão: “Onde estás?” Agora essa pergunta é dirigida a Caim: “Onde está teu irmão?” É a história do ser humano que se opõe a Deus e ao seu projeto. A pergunta de Deus é oportunidade para Caim assumir a sua condição e restabelecer o seu relacionamento com Deus. Mas sucede o contrário: Caim, a exemplo de Adão, lava as mãos. Uma vez que sua missão é cultivar a terra, por que teria de guardar seu irmão? Afinal, não era Abel que tinha a missão de guardar o rebanho?
Adão não assume a sua culpa, mas acusa Deus de lhe ter dado uma mulher… Não estaria Caim acusando a Deus de não ter cumprido a sua missão? Deus se põe ao lado da vítima: “Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar por mim!” (Gn 4,10). A morte do ser humano atinge o próprio Deus. A situação de injustiça atinge o relacionamento com Deus e com a terra, que está manchada de sangue.
Caim é maldito e expulso do solo fértil, condenado a viver como errante sobre a terra. É a primeira vez que o próprio homem é amaldiçoado. Maldito por Deus, rejeitado pela terra e ameaçado pelos homens, ele, que não suportou a presença de Abel, agora se encontra totalmente só. Seu irmão era pastor, nômade, mas a situação de Caim será a de um errante.
“O primeiro que me encontrar me matará!” (Gn 4,14). Caim sente medo. Seu crime exige retaliação: segundo a lei do talião, ele deve ser morto, mas a resposta de Deus rompe com o ciclo da violência: “Quem matar Caim será vingado sete vezes” (Gn 4,15). Javé o protege, marcando-o com um sinal para que não seja morto. Caim se retira da presença de Javé.
A condição para estar próximo de Deus é a vivência da solidariedade com a irmã, com o irmão e com todas as criaturas. Javé é um Deus que quer a vida, mas esse sonho continua sendo difícil de realizar, pois a realidade de injustiça social ainda provoca destruições.
6. A realidade de injustiça atinge a natureza. Por meio dos relatos de Gênesis, acompanhamos o aumento progressivo da violência: Caim, Lamec e os filhos dos deuses. A união dos filhos dos deuses com as filhas dos homens traz como consequência a diminuição da duração da vida: “Meu espírito não permanecerá no homem, pois ele é carne; não viverá mais que cento e vinte anos” (Gn 6,3). Essa união pode ser vista como a tentativa do ser humano de alcançar a imortalidade, porém o castigo é o limite imposto à vida humana.
O ser humano busca ser como Deus. A consequência é o aumento da violência. Javé viu, arrependeu-se, afligiu-se e tomou uma decisão. Javé viu a sua criação desfigurada: “a maldade do homem era grande sobre a terra, e era continuamente mau todo desígnio de seu coração” (Gn 6,5). Essa realidade desestrutura o projeto de Deus, que toma a decisão de destruir a criação (Gn 6,7).
O texto descreve Javé aflito diante da maldade do ser humano, porém há uma esperança: “Noé encontrou graça aos olhos de Javé” (Gn 6,8). E isso por três motivos: é justo, íntegro e andava com Deus (Gn 6,9). A referência a Noé como justo é importante, pois ele não pertence ao povo eleito (Ez 14,14-20; Eclo 44,17). Nele, está a esperança do ser humano.
“A terra se perverteu diante de Deus e encheu-se de violência. Deus viu a terra: estava pervertida, porque toda carne tinha uma conduta perversa sobre a terra” (Gn 6,11-12). A terra se perverte, e Deus olha para a terra. A palavra perversão é usada três vezes para descrever a corrupção da terra e será usada também no v. 13 no sentido de exterminar ou desaparecer: “Chegou o fim de toda carne, eu o decidi, pois a terra está cheia de violência por causa dos homens, e eu os farei desaparecer da superfície da terra”. A realidade de injustiça e corrupção atinge o ser humano, todas as criaturas da terra e a natureza.
Existe uma relação próxima entre o ser humano e Deus. Deus fala a Noé sobre o seu plano e ordena-lhe que construa uma arca. Uma arca que não se parece em nada com um barco. A arca de Noé terá três andares, como o templo de Salomão. A palavra arca aparece sete vezes nos vv. 14-22. Outra expressão frequente nesse texto é a ordem de Deus. O texto está organizado em torno da construção. “Noé assim fez; tudo o que Deus lhe ordenara, ele o fez” (Gn 14,22).
Enquanto Noé constrói a arca, Deus insiste na sua ação: “Quanto a mim, vou enviar o dilúvio, as águas, sobre a terra, para exterminar de debaixo do céu toda carne que tiver sopro de vida: tudo o que há na terra deve desaparecer” (Gn 6,17). Em meio à terrível ameaça de destruição, existe uma palavra de esperança: “Estabelecerei a minha aliança contigo” (Gn 6,18).
7. Identidade do clã e solidariedade entre os povos. Gênesis 1-11 pode ser estruturado pelas listas genealógicas. Começamos com a geração do céu e da terra (Gn 2,4a); em seguida, a descendência de Adão (5,1) e dos filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé (10,1). No capítulo 11, há uma lista que repete a descendência de Sem (11,10); e, por fim, a de Taré até Abraão (11,27). No capítulo 5 temos a genealogia dos patriarcas dos tempos das origens, desde Adão até Noé, e a enumeração de seus três filhos: Sem, Cam e Jafé.
Para o povo de Israel, recordar os antepassados é questão de definir sua identidade como povo. Ao recontar as origens, o povo quer provar que a sua história é antiga, está relacionada com os inícios da humanidade. O capítulo 5 tem a intenção de levantar as gerações desde o início da criação, passando pelo dilúvio até Sem.
No entanto, é interessante observar que a genealogia é masculina e tem como preocupação unicamente o primogênito; os outros filhos nem sequer têm nome. Vejamos o início dessa lista: “Quando Adão completou centro e trinta anos, gerou um filho à sua semelhança, como sua imagem, e lhe deu o nome de Set. O tempo que Adão viveu depois de Set foi de oitocentos anos, e gerou filhos e filhas. Toda a duração da vida de Adão foi de novecentos e trinta anos, depois morreu” (Gn 5,3-5). Em seguida, a lista descreve a descendência somente de Set, considerando apenas o primogênito. A lista ignora a mulher, Caim e Abel.
Os nomes são tirados da tradição patriarcal de Israel. O nome ’adam, nome genérico, nessa lista se torna o de um indivíduo. Ela começa do primeiro homem criado por Deus e termina com o primeiro homem da nova humanidade: de Adão até Noé.
A leitura de uma lista de nomes desconhecidos e estranhos é quase sempre algo chato, e, muitas vezes, passamos por cima de textos desse gênero, com pressa de chegar até o fim. Porém, a genealogia é uma mensagem de esperança, pois mostra que, apesar das realidades de injustiça, Deus continua conduzindo a humanidade e sua obra criadora tem continuidade ao longo das gerações.
Depois do dilúvio, temos outra genealogia: “Eis a descendência dos filhos de Noé, Sem, Cam e Jafé. A partir deles fez-se a dispersão nas ilhas das nações” (Gn 10,1.5). Podemos observar nomes repetidos, duas introduções e duas conclusões. Esse texto é fruto de tradições diferentes, porém é possível constatar que essa listagem procura focalizar o povoamento de toda a terra desde um tronco único e a dispersão (10,5.32).
Os nomes que aparecem no capítulo 10, às vezes, são de pessoas concretas e, em alguns casos, de regiões. A dispersão é a realização da bênção de Deus proferida em Gn 1,28 e renovada com Noé: “Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra’” (Gn 9,1). A bênção é para toda a humanidade.
A genealogia apresentada no capítulo 10 mostra que a humanidade é descendente de um tronco único, Noé, do qual brotam três ramos, subdivididos em outros. E todos são importantes. Provavelmente, o capítulo 10 é uma tradição mais antiga. Em Gênesis 11,10-26, mais uma lista! Esta volta ao mesmo esquema do capítulo 5, atribuindo importância somente ao primogênito e ignorando os outros ramos. A lista termina com Taré, antepassado de Abrão, Nacor e Arã. Seu objetivo é chegar até Abrão, que fará a passagem do tempo das origens para o período histórico de Israel.
As listas garantem a identidade do povo de Israel e sublinham a importância de desenvolver relações solidárias com todos os povos, pois todos descendem de um tronco comum.
8. Diversidade de línguas e dispersão como estratégias dos pequenos. Desde as primeiras páginas do livro do Gênesis, constatamos a recusa do ser humano em seguir o projeto de Deus. Acompanhamos a desobediência do primeiro casal, o assassinato de Abel por seu irmão, Caim, o aumento da violência com os descendentes de Caim. A autossuficiência do ser humano provoca corrupção em toda a terra. Diante da crescente maldade humana, Deus intervém com o dilúvio.
Os relatos continuam mostrando que a ambição dos poderosos é sem limites. A intenção deles é construir um grande império: “Vinde, construamos uma cidade que penetre até os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra” (Gn 11,4). Não se dispersar é impedir a realização da bênção de Deus dada à primeira mulher e ao primeiro homem em Gênesis 1,28 e renovada com toda a humanidade por meio de Noé (9,1).
Deus intervém, impedindo o plano dos dominadores: “Javé confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra e foi aí que os dispersou sobre toda a face da terra” (11,9). Instituir uma só língua para todos os povos é projeto dos dominadores. O relato da torre de Babel é inspirado nos zigurates — as torres altas existentes na Babilônia. A Babilônia é um grande império, mas tem o seu fim com a chegada do império persa, por volta de 539 a.C. Portanto, eles, que sonhavam em ser a porta dos deuses — Bab-il —, em ter um grande nome, acabaram se tornando piada na boca do povo: “Porta de Deus coisa alguma, isto é uma Babel mesmo!”, ou seja, uma bela confusão. Manter a própria língua é conservar a identidade cultural.
A dispersão é castigo de Deus, sim, mas resta perguntar: para quem? No relato da torre de Babel, a dispersão impede a construção da cidade, da torre e de um grande nome. Essa é ótica de pessoas que veem a cidade como lugar de exploração. A dispersão, segundo Gênesis 10,5.32, é consequência de um processo natural de crescimento e realização da bênção de Deus.
É fundamental que cada grupo, comunidade, sociedade e país tenham a sua própria cultura. É a diversidade que enriquece a vida, como no acontecimento de Pentecostes: cada pessoa escuta o evangelho em sua própria língua. O vento de Deus gera unidade, mas mantém as características próprias de cada povo (At 2,1-12).
9. Pecado, castigo e nova aliança. Nos relatos de Gênesis 1-11, é possível perceber o esquema teológico de pecado, castigo e nova aliança. O primeiro casal rompe a aliança com Deus, mas este não interrompe o diálogo: vai ao encontro de Adão e da mulher e eles são castigados; porém, não os abandona, continua protegendo-os dentro e fora do jardim. O mesmo se dá com Caim. Deus vai ao seu encontro e quer que ele reconheça a própria culpa. Caim é amaldiçoado, mas não abandonado por Deus, que lhe dá um sinal de proteção (Gn 4,15).
A maldade do ser humano é crescente, a ponto de Deus se arrepender e afligir-se o seu coração (Gn 6,6). Diante dessa realidade, Deus toma a decisão de destruir a sua criação (6,7.11-12.13). Ele envia o dilúvio, que destrói tudo o que há na superfície da terra, mas abre uma esperança para a humanidade: faz uma nova aliança com Noé. Com Noé, renovam-se as esperanças de nova humanidade: “Eis que estabeleço minha aliança convosco e com os vossos descendentes depois de vós, e com todos os seres animados que estão convosco, todos os animais da terra” (Gn 9,9-10).
A aliança de Deus com Noé e com toda a humanidade é para sempre: “Não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11b). Essa aliança será renovada com o povo de Israel e, em Jesus, chegará a todos os povos. Deus continua renovando sua aliança com cada pessoa humana.
10. A graça de Deus. Fazendo uma retrospectiva de Gênesis 1 a 11, podemos observar as seguintes etapas:
— 1,1-2,4a: Um poema que louva a criação de Deus: um mundo ordenado, perfeito e belo: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1,31).
— 2,4b-25: Novo relato sobre a criação do homem, dos animais e da mulher. O homem e os animais são modelados por Javé Deus, o oleiro carinhoso, por meio da terra, a fonte da vida. Da costela do homem — parte do corpo em que reside o amor, segundo a antiga tradição judaica —, Javé Deus constrói a mulher. A criação é de vida, amor e gratuidade. Nesse contexto, o ser humano é chamado a ser cocriador com Javé Deus.
— 3,1-24: A serpente, a mulher, o homem e Deus. Rompimento da relação com Deus: mulher e homem comem do fruto proibido. O ser humano é castigado, expulso do jardim, mas Javé Deus não o abandona: “Javé Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele e os vestiu” (3,21).
— 4,1-26: O nascimento de Caim e Abel e o rompimento da fraternidade. Deus continua protegendo o ser humano para além do jardim. Opta pelo mais fraco: assume o partido de Abel. Mas, ao mesmo tempo, não se distancia de Caim, mantém com ele o diálogo, castiga, ama e protege: “Quem matar Caim será vingado sete vezes” (Gn 4,15).
— 5,1-32: As genealogias dos antepassados do povo de Israel antes do dilúvio, enumerando dez gerações desde Adão até Noé e seus três filhos. A lista genealógica é o fio pelo qual passa a graça de Deus ao longo da história humana.
— 6,1-8,22: Esses relatos constituem o ponto central dessas narrativas, pois a corrupção atinge toda a natureza, provocando a destruição de tudo o que existe sobre a terra. Porém, a última palavra é de esperança: Deus faz uma aliança com Noé e promete nunca mais destruir a terra (Gn 8,21). Em 8,1 lemos: “Deus lembrou-se então de Noé e de todas as feras e de todos os animais domésticos que estavam com ele na arca; Deus fez passar um vento sobre a terra, e as águas baixaram”. A palavra lembrar é própria do contexto de aliança. Deus intervém com sua ação que salva e recria (cf. Gn 9,15; Ex 2,24; 6,5).
— 9,1-17: A aliança de Deus com Noé e seus filhos e a promessa: “Estabeleço a minha aliança convosco: tudo o que existe não será mais destruído pelas águas do dilúvio; não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11).
— 10,1-32: A lista dos descendentes dos filhos de Noé. Este capítulo termina com um acento positivo sobre a dispersão: “Esses foram os clãs dos descendentes de Noé… Foi a partir deles que os povos se dispersaram sobre a terra depois do dilúvio” (10,32).
— 11,1-9: A construção da cidade e de uma torre alta com o objetivo de tornar-se poderoso e formar um só povo. Deus desce e acaba com o projeto dos dominadores. O projeto de formar um só povo e uma só língua é contra a bênção de Javé: “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (1,28). A dispersão e a diversidade de línguas são a realização da bênção de Deus.
— 11,10-32: Aparece duas vezes a descendência de Sem até Taré e seus três filhos: Abrão, Nacor e Arã. E assim termina a história dos inícios da humanidade. O caminho está preparado para começar, com Abrão, a história do povo de Israel.
À medida que aumenta a violência e a maldade do ser humano, mais a graça de Deus se faz presente. Quanto mais a pessoa se distancia do projeto de Deus, mais ele se aproxima do ser humano. A atitude de Deus pode ser observada no relato de Adão e Eva, na história de Caim e Abel, nos episódios do dilúvio e da torre de Babel. É um Deus que opta pela vida.
V. Continuando a reflexão
O que podemos aprender e vivenciar com o estudo de Gênesis 1 a 11? Em todas as narrativas, transparece a fé no Deus da vida. Os relatos próximos aos mitos espelham os sonhos e as esperanças mais profundas do povo. Lê-los continua sendo um convite para lermos os relatos da criação de outras culturas, especialmente dos indígenas do Brasil. A leitura de outros textos poderá nos ajudar a ampliar nossa visão religiosa e o respeito para com as diferentes culturas.
Deus tem muitos rostos e muitos nomes. É importante valorizar a religiosidade presente na vida do ser humano; respeitar as diferentes formas de acreditar em Deus, seja dentro da própria Igreja católica, seja de acordo com outras Igrejas e credos. Deus tem infinitas formas de se manifestar.
A leitura de Gênesis 1 a 11 pode nos levar à pergunta: qual rosto de Deus alimenta a minha espiritualidade? Ressoa de modo tão sagrado e agradável aos ouvidos as palavras de alguém que, em sua simplicidade e transparência, diz: “Fique com Deus!”, “Vá com Deus!” ou “Deus lhe abençoe!” São palavras de bênçãos que continuam fazendo vibrar nosso coração. A bênção é de Deus. Como estamos transmitindo essa bênção às pessoas com que nos encontramos e convivemos?
Outra lição que podemos aprender com os relatos do livro do Gênesis é que Deus continua estendendo a sua mão e reiniciando, de maneira incansável, o diálogo conosco. As realidades de injustiça e de desigualdade social mostram quanto o ser humano continua se afastando do projeto de Deus.
A pergunta: “Onde está teu irmão?” ressoa em nossos ouvidos, mas, provavelmente, no mundo individualista em que vivemos, permanece sem resposta. Como resgatamos, em nossos grupos, comunidades e paróquias, o projeto da vida partilhada? Diante da situação de caos em que está imerso o mundo de hoje e do aquecimento global, que ameaça várias formas de vida, como nós assumimos nosso compromisso de preservar e cultivar a terra?
Que a leitura de Gênesis 1 a 11 e a reflexão em torno dessas narrativas possam suscitar novas perguntas e apontar novos caminhos para a nossa existência. O estudo da Bíblia é projeto para a vida toda. É preciso sempre voltar às origens e deixar que a palavra de Deus se torne vida em nossas vidas!
Fonte: Revista Vida Pastoral
Comments0