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Diante da pandemia da covid-19, governos no mundo inteiro disponibilizaram recursos de ajuda à população em situação de vulnerabilidade social. A advogada Letícia Aleixo faz uma análise sobre algumas medidas adotadas no Brasil para o enfrentamento à pandemia que, segundo ela, podem afetar gravemente a efetividade dos direitos humanos no país.
Aleixo aponta as condições que impõem ao Brasil desafios ainda maiores em termos de políticas públicas, tanto sanitárias quanto de fortalecimento da capacidade econômica e de combate às discriminações estruturais. Ela fala de que forma o avanço da pandemia impacta diretamente a vida dos trabalhadores de alguns setores.
Durante a entrevista, a advogada da Cáritas esclarece os trâmites legais para que as medidas sejam aprovadas e destaca o papel do poder público de garantir o bem estar e os direitos das pessoas. “No cenário atual, isso significa a adoção ágil de medidas para conter o coronavírus e também os efeitos decorrentes da pandemia, incluindo a crise econômica, com especial atenção aos grupos em situação de vulnerabilidade”, afirma.
Letícia Aleixo é advogada e assessora técnica da Cáritas em Minas Gerais, atualmente coordena o Projeto de Incidência na Pauta da Mineração (PIPAM).
De que maneira a pandemia da covid-19 afeta os Direitos Humanos no Brasil?
Letícia Aleixo: A pandemia pode afetar grave e mundialmente a efetividade dos direitos humanos por nos impor riscos à vida, à integridade pessoal e à saúde, por exemplo. Para além disso, é necessário ter em mente que, no caso específico do Brasil, falamos de uma realidade extremamente desigual, na qual parcela significativa da população não tem acesso à água potável e ao saneamento, vive em condições de insegurança alimentar, na precariedade do trabalho informal ou no desemprego e não possui moradia digna. Tudo isso agrava ainda mais o quadro do país diante da pandemia, uma vez que tantas pessoas não têm nem como adotar as medidas mais básicas de prevenção contra a doença. Nesse sentido, a pandemia impõe ao Brasil desafios ainda maiores em termos de políticas públicas, tanto sanitárias quanto de fortalecimento da capacidade econômica e de combate às discriminações estruturais. Devemos ser capazes de adotar as medidas de combate à pandemia tendo em conta a configuração e a história do nosso povo, considerando, portanto, as interseccionalidades e as violências estruturais, às quais determinados grupos estão historicamente submetidos.
É importante dizer também que, com o objetivo de proteger a saúde pública, muitos países adotaram medidas de restrição de direitos, mas que essas medidas devem ser adotadas com respeito aos princípios da legalidade, da necessidade em uma sociedade democrática, da proporcionalidade e da finalidade legítima de proteger a saúde de forma equitativa. Ainda, essas medidas excepcionais devem ter tempo estritamente limitado às exigências da situação e serem adotadas em conformidade com os parâmetros constitucionais, internacionais e de acordo com as melhores evidências científicas.
Os direitos humanos poderão, por fim, ser fortalecidos em um contexto de transparência e livre acesso às informações oficiais sobre a pandemia – em linguagem clara e acessível -, assim como de liberdade de circulação e expressão de jornalistas e de defensores de direitos humanos, que cumprem função central de controle social das ações do poder público.
É possível perceber que alguns projetos de lei demoram para ser aprovados. Qual é o processo de tramitação das medidas governamentais?
Letícia Aleixo: Sim, ainda que em contexto de emergência sanitária, é verdade que alterações de leis não são processos simples. Existem algumas medidas que dependem de mero ato normativo de um Ministério ou de uma secretaria, por exemplo, o que é bem mais simples do que as medidas que dependem de votação e aprovação pelas Casas Legislativas. Estas últimas, em qualquer das esferas – municipal, estadual ou federal – dependem da elaboração de um projeto de lei, da colocação desse projeto em votação na Casa Legislativa competente – Câmara Municipal, Assembleia Legislativa, Câmara dos Deputados ou Senado Federal -, votação pela maioria estipulada pela Constituição, sanção pelo Poder Executivo e publicação em Diário Oficial. As medidas mais complexas seriam aquelas que viessem a demandar alteração na Constituição, o que se dá por meio de Emenda Constitucional e mediante rito ainda mais elaborado. Pode acontecer também do Poder Executivo vetar trecho da lei votada no Legislativo e, com isso, o trecho vetado volta para nova votação nas Casas Legislativas – é o que se chama de “derrubada de veto”.
Quem estabelece a qual ente federativo ou órgão cabe a elaboração de uma medida é a própria Constituição Brasileira e o procedimento, por mais complexo que possa se revelar, faz parte do sistema democrático e de direito no qual nos inserimos. Isso garante, inclusive, que direitos constitucionalmente garantidos não nos possam ser subtraídos.
Por outro lado, é claro que a atual emergência em saúde nos exige uma capacidade de mobilização política ainda maior que a habitual para a aprovação de lei em benefício da sociedade. Nesse sentido, enquanto sociedade civil podemos – e é nosso papel – pressionar nossos representantes para a adoção ágil de medidas de combate aos efeitos da pandemia, seja em matéria de saúde, seja para garantir outros direitos básicos e fundamentais da população: educação, trabalho e renda, alimentação. O papel do poder público é justamente o de garantir o bem estar, os direitos das pessoas. No cenário atual, isso significa a adoção ágil de medidas para conter o coronavírus e também os efeitos decorrentes da pandemia, incluindo a crise econômica, e com especial atenção aos grupos em situação de vulnerabilidade.
Quem pode e como acessar os benefícios sociais?
Letícia Aleixo: Nesse contexto de pandemia, diversos organismos internacionais recomendaram que os governos adotassem uma política de renda básica e outras medidas de apoio econômico à população, assegurando a proteção social e o estímulo à capacidade econômica. Essas políticas são importantes não apenas para o aquecimento da economia, mas principalmente para a garantia das necessidades mais básicas de grande parcela da população, em especial no Brasil.
Depois de muita mobilização, a política de renda básica emergencial brasileira passou a vigorar e prevê, até o momento, o pagamento de R$ 600,00 mensais, por pelo menos três meses às pessoas que preencherem os requisitos elencados pela Lei 13.982/2020.
Além disso, é importante destacar que a renda básica emergencial pode ser paga para até duas pessoas da mesma família, desde que ambos se enquadrem nos requisitos elencados. Ainda, nos casos em que a mulher seja a única responsável pelas despesas da casa, o valor pago mensalmente é de R$ 1.200,00.
As pessoas que se encaixarem nas categorias previstas na lei e não estiverem cadastradas no Cadastro Único (CadÚnico) até 20/03 precisam se cadastrar para o recebimento do auxílio por aplicativo da Caixa Econômica Federal ou pelo site https://auxilio.caixa.gov.br/#/inicio. Quem já estava no CadÚnico e cumpre os requisitos da lei deve receber a verba sem a necessidade de novo cadastro. Os beneficiários do Bolsa Família receberão automaticamente a renda básica emergencial quando esta for mais vantajosa.
Não é necessário ter conta na Caixa Econômica Federal, sendo possível cadastrar conta de qualquer banco ou, ainda, abrir uma conta poupança digital para o recebimento da verba. Certamente, a renda básica emergencial não é suficiente e já existem projetos de lei tramitando no Congresso Nacional para ampliar o rol dos beneficiários.
Como os beneficiários do Benefício de Prestação Continuada (BPC) não se encaixam nos requisitos exigidos para o recebimento da renda básica emergencial, a lei prevê que essas pessoas podem antecipar o valor previsto como renda básica durante 3 meses.
Já os beneficiários do auxílio-doença podem antecipar um salário mínimo mensal durante o período de 3 meses.
Existe, por fim, uma controvérsia em relação ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). O governo, por meio da Medida Provisória 946/2020, autorizou o saque de R$ 1.045,00 por trabalhador a partir de 15 de junho até 31 de dezembro, em cronograma estipulado pela Caixa Econômica Federal. Essa Medida Provisória (MP) precisa ser votada até o dia 07 de junho pelo Congresso Nacional para que não perca sua validade, mas isso envolve alguma complexidade jurídica pelo fato de a MP ter alterado Lei Complementar. Por outro lado, vários juristas já defendem a possibilidade de saque integral do FGTS diante da pandemia da covid-19, o que precisaria ser judicializado, equiparando-se a situação atual com a de calamidade pública por desastre natural.
As 10 mulheres que integram o empreendimento de economia solidária Oficina da bolsa trabalham diariamente na produção de máscaras. Só para a Cáritas em Minas Gerais já foram produzidas 5.400 unidades.
Com o avanço da pandemia, quais foram os efeitos imediatos na vida dos trabalhadores da Economia Popular solidária (EPS)? Quais os respaldos legais já garantidos para essa parcela da população que vive dos empreendimentos da EPS?
Letícia Aleixo: Com o avanço da pandemia do coronavírus, foram gerados efeitos imediatos na vida das trabalhadoras e trabalhadores da Economia Popular Solidária: catadores de materiais recicláveis, artesãos, artistas populares, agricultores familiares, produtores artesanais de alimentos, pescadores, entre outros. No entanto, é importante destacar que os desafios para estes trabalhadores não surgiram com a pandemia, apenas se intensificaram.
Nesse cenário de vulnerabilidade, diante de situações de impossibilidade de trabalho remete-se à urgência de legislações que garantam a esta população uma renda emergencial que lhes assegurem a possibilidade de sobrevivência durante todo o período da pandemia e também durante o período de recuperação da crise econômica.
A partir da luta dos movimentos populares, organizações sociais, deputados e deputadas, têm se apresentado projetos de leis para que os direitos especialmente dos pobres trabalhadores sejam garantidos. Em Minas Gerais há o Projeto de Lei nº 1.777/2020, que dispõe sobre a adoção de medidas para o enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente da pandemia causada pelo coronavírus.
Esta lei objetiva a proteção da coletividade e serão implementadas em consonância com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). No Art. 12, a lei garante que o Estado, em articulação com a União e os municípios, poderá adotar medidas de proteção social de grupos vulneráveis da população, destinadas a reduzir os efeitos socioeconômicos decorrentes das ações de enfrentamento da pandemia da covid-19. Esta lei tem em suas diretrizes a orientação para a garantia da renda mínima emergencial e temporária para, dentre outros, os empreendedores solidários cadastrados nos programas estaduais de apoio à economia popular e solidária; catadores de materiais recicláveis; agricultores familiares e pescadores artesanais que possuam Declaração de Aptidão ao Pronaf – DAP – ativa ou vencida (…); trabalhadores informais inscritos no CadÚnico; comunidades indígenas.
Medidas como a abertura de fundos de apoio a pequenos empreendimentos podem ser uma possibilidade ainda não explorada nesse momento. Não seria o caso, por exemplo, de abrir financiamentos para mulheres que estão fabricando máscaras, por exemplo?
Letícia Aleixo: Infelizmente ainda não temos medidas efetivas neste sentido, além do auxílio emergencial. O que temos visto são iniciativas de grupos que estão se organizando para comercializarem, por iniciativa própria, as máscaras de proteção que são vendidas tanto no varejo quanto no atacado. A Cáritas, em Belo Horizonte, através de suas parcerias com a prefeitura, está comprando uma grande quantidade de máscaras produzidas pela rede de confecção do Fórum Metropolitano, formado por empreendimentos econômicos solidários, majoritariamente composto por mulheres.
Em relação aos trabalhadores da mineração, diversas violações de direitos vêm sendo denunciadas por entidades e pela mídia. Qual a situação desse setor hoje, referente à pandemia de coronavírus?
Letícia Aleixo: Bom, de maneira geral, poderíamos dizer que é um setor que tem adotado medidas, no mínimo, contraditórias. Note, por exemplo, que apesar do anúncio de “doações” de itens para o combate ao novo coronavírus, as mineradoras não interromperam as atividades extrativas. Nesse sentido, trabalhadores vêm denunciando aglomerações em veículos de transporte, refeitórios e locais de operação, o que contraria recomendações das autoridades sanitárias. Tivemos notícias, inclusive, do falecimento de um trabalhador diagnosticado com covid-19 e que frequentava, até então, as áreas de operação.
Se por um lado as atividades extrativas foram mantidas, por outro, as atividades relacionadas à reparação dos danos causados pelos rompimentos das barragens de Fundão (em Mariana, 2015) e de Córrego do Feijão (em Brumadinho, 2019) foram interrompidas. Os escritórios responsáveis pelos atendimentos às pessoas atingidas foram fechados e as obras de reassentamento paralisadas. Como é que uma atividade pode continuar e outra não? E que tipo de priorização de atividades é essa? As pessoas em Mariana, por exemplo, aguardam suas casas há quase 5 anos e tiveram que ver essas obras paralisadas em razão da pandemia. Se o motivo é a proteção da saúde pública é, no mínimo, estranho que as atividades extrativas sejam então mantidas, ainda mais no mesmo ritmo de antes. E o mais curioso é que a Vale, por exemplo, tem interrompido operações em minas localizadas em outros países, mas aqui no Brasil não.
Ao mesmo tempo, os governos revelam uma postura de conivência em relação a esse comportamento do setor minerário. No âmbito federal, o Ministério de Minas e Energia (MME) editou a Portaria nº 135/2020 que considerou como “essencial a disponibilização dos insumos minerais necessários à cadeia produtiva das atividades essenciais” estabelecidas pelo Decreto nº 10282/2020. Isso inclui, portanto, as atividades de pesquisa e lavra de recursos minerais, o beneficiamento e processamento de bens minerais, o escoamento da produção etc. A normativa é extremamente ampla ao, por exemplo, não estipular a quantidade tida como essencial em contexto de pandemia. Que estudos embasaram a elaboração desse ato normativo para fundamentar a necessidade de manutenção dessas atividades em ritmo absolutamente normal em um contexto de emergência sanitária no qual a recomendação básica das autoridades em saúde tem sido o isolamento social? E qual é a projeção de impacto da manutenção dessas atividades seja no viés econômico, social ou sanitário? Não temos esses dados. Além disso, vários juristas também argumentam que a Portaria contém vícios formais por regular matéria já tratada em lei, o que não poderia ocorrer.
Aponte algumas medidas legais que foram adotadas em outros países ou em estados brasileiros e que merecem ser destacadas pela relevância na vida dos mais vulneráveis.
Letícia Aleixo: Existem projetos interessantes pendentes de votação aqui no Brasil que propõem, por exemplo, a mitigação dos efeitos da pandemia na agricultura familiar, na pesca tradicional e beneficiários do Bolsa Família. Nesse sentido, propõe-se, dentre outros, o apoio a tecnologias sociais de acesso à água para consumo humano e produção de alimentos na zona rural, a criação de linha de crédito emergencial para agricultores familiares para a próxima safra com taxa de juros zero para o financiamento de custeio da produção de alimentos básicos, a aquisição de parcela da produção de agricultores familiares e pescadores artesanais pelo Programa de Aquisição de Alimentos, o fornecimento de um bujão de gás por mês e garantia de fornecimento dos serviços essenciais de luz e água para as famílias beneficiárias do Bolsa Família.
Em Minas Gerais, tivemos a aprovação da Lei 23.631/2020, que também prevê medidas de proteção social a grupos vulneráveis da população, sobretudo famílias inscritas no CadÚnico, empreendedores solidários, catadores de materiais recicláveis, agricultores familiares e pescadores artesanais, comunidades indígenas e quilombolas, famílias em situação de vulnerabilidade no campo e famílias pertencentes ao circo tradicional nômade. A lei prevê, ainda, a assistência alimentar às famílias de estudantes matriculados na educação básica da rede estadual de ensino e especial proteção à população em situação de rua, tanto com vistas à garantia da segurança alimentar e acesso à água potável para consumo e higiene pessoal quanto da garantia de renda mínima e condições adequadas para o abrigo e acolhimento temporário.
Em outros países, observamos com muita ênfase a implementação de medidas de proteção especial para vítimas de violência doméstica e pacotes de ajuda econômica. Na França, por exemplo, o governo anunciou que vai pagar por quartos de hotel para vítimas de violência doméstica e abrirá novos centros de aconselhamento após a constatação do aumento do número de casos de abuso durante a pandemia. Vários países, como Reino Unido, Polônia, Peru e Brasil, optaram por postergar o prazo para pagamento de alguns tributos. Outros países optaram pela redução da carga tributária, como é o caso da Noruega. A Coréia do Sul vai isentar pequenas empresas do pagamento do IVA, o imposto que incide sobre o consumo. Em Pernambuco, foi votada a lei que permite a isenção tributária nas contas de água e luz no contexto da pandemia. Na Nova Zelândia, políticos reduziram temporariamente seus salários.
Ainda que no curto prazo essas medidas tributárias sejam importantes para a garantia de liquidez das empresas, o que geraria uma política de emprego, no Brasil seria necessário ir além e discutir também a nossa estrutura tributária que é extremamente desigual e onera principalmente os mais pobres.
Com informações Cáritas Brasileira
Texto: Francielle Oliveira
Colaboração: Renata Siviero e Samuel Silva, assessores técnicos da Cáritas em Minas Gerais
Fotos: Arquivo Oficina da bolsa
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