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A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) já deu início à preparação da Campanha da Fraternidade (CF) de 2023. De hoje (14) até quarta-feira (16), é realizado um Seminário Temático para aprofundamento da questão da fome, centro das reflexões na CF do ano que vem. Os debates e as reflexões vão contribuir na elaboração do texto base. O tema escolhido para a CF 2023 após consulta popular é “Fraternidade e fome” com o lema bíblico “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14, 16).
Participam do Seminário assessores das Comissões Episcopais, subsecretários, o presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Sociotransformadora da CNBB, dom Valdeci Santos Mendes, e alguns convidados. Especialistas ajudam na reflexão proposta para o evento, que lança o olhar para o estado da questão da fome no Brasil, considerando a segurança alimentar, os impactos da pandemia de Covid-19 e a contradição dos recordes de produção e exportação agrícola frente o aumento da fome.
O Seminário está organizado a partir da metodologia “ver, julgar e agir”, sendo que, a cada dia, as reflexões são dedicadas a um dos tópicos. Após olhar a realidade, o grupo vai refletir no próximos dois dias sobre o lema bíblico e deve propor sugestões e pistas de ação para o texto-base.
No início do encontro, nesta segunda-feira, o secretário executivo de Campanhas da CNBB recordou as duas Campanhas da Fraternidade que abordaram a temática da fome: em 1975, com o tema “Repartir o Pão”; e em 1985, com o tema “Pão para quem tem fome”. A última, de modo particular, destacou a importância do problema para a sociedade brasileira, que viu, três anos depois, o estabelecimento da erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais como objetivos fundamentais na Constituição Federal de 1988.
O membro do grupo de Análise de Conjuntura da CNBB Melillo Dinis apresentou elementos que são importantes para serem abordados na apresentação do estado da questão da fome no Brasil e que deve estar presentes texto-base da próxima CF. Ele citou a passagem dos dois cestos de figos, do capítulo 24 do profeta Jeremias, quando o profeta disse o que Deus faria com o rei Sedecias e seu partido, mandando a guerra, a fome e a peste.
“A gente está vivendo um pouco esse tempo. Tem espada, tem fome e tem peste. E acho que isso é um primeiro elemento que não pode faltar”, ressaltou Melillo.
Para o advogado, apesar da longa história de experiência com o tema, é preciso refletir o motivo de voltar à questão. É importante também colocar o debate no eixo da fraternidade, “dentro de um quadro onde a fome nos persegue, e não é um fenômeno natural. Quanto menos humanismo, mais fome há. E o Brasil é um país forjado de fome e de lutas”.
Melillo apresentou alguns dados que atestam a realidade da fome e da insegurança alimentar no país, indicando também fatores determinantes que devem ser refletidos e discutidos, como a relação de desigualdade e fome, fome e ecologia, fome e educação, fome e política, o silêncio em torno da fome, recordando o escritor Josué de Castro. Também devem ser levados em conta elementos econômicos e geográficos.
Não pode deixar de ter no ver de uma Campanha da Fraternidade sobre a fome a fala numa linha profética. Eu não comecei com meu querido profeta Jeremias à toa, porque, se nós não tivermos aquele grau de indignação ‘vétero-testamentária’, aquela ‘jeremiada’ permanente a respeito disso, nós não precisamos tratar disso de novo, de maneira burocrática. A fome é ato indigno, a fome dói, a fome destrói vidas, nós temos que transformar isso numa exigência ética, não só de quem está submetido à ideia de Povo de Deus, mas também numa sociedade que deseja ser justa e fraterna. Esse tipo de exigência ética é imperativa numa Campanha da Fraternidade sobre esse tema”.
Após a exposição de Melillo, os participantes puderam interagir com o expositor e também apontar outros elementos considerados essenciais para a reflexão sobre o tema. Destacaram a relação do sistema econômico e com o sistema de produção; o papel da agricultura familiar; a questão da alimentação e a preocupação com a obesidade nas pessoas mais pobres; a segurança alimentar como exemplo de dignidade humana; a contradição das políticas públicas para o agronegócio e a inexistência para a agricultura familiar; e os impactos do modelo de produção de commodities nas comunidades tradicionais e nos povos indígenas.
Outro especialista no tema da fome convidado para o Seminário foi ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), José Graziano da Silva. Ele lembrou de quando atuou na organização, sediada em Roma, e recebia a visita do Papa Francisco, sempre indignado com o tema da fome. Segundo Graziano, o pontífice sempre tratava do assunto, pedindo medidas para a erradicação.
Atual diretor geral do Instituto Fome Zero, José Graziano apresentou dados que permitem o entendimento dos fatores que geram a fome. Em sua exposição, recordou que a agropecuária brasileira apresentou crescimento surpreendente nos últimos 30 anos, mas também observou que a concentração da distribuição acelera a concentração da produção.
A realidade brasileira constata no período da pandemia a alta em dólar do preço das commodities e a desvalorização do real, por conta da política monetária do governo. Para José Graziano, “os preços alimentos não estão altos; os salários é que estão muito baixos”.
Ele apresentou dados sobre a estrutura agrária do país, e sobre a atuação da agricultura familiar. Em seguida, destacou as pesquisas que apontam a volta da fome e da insegurança alimentar no país onde o “agro é exportador e o mercado interno está limitado pela miséria”.
Para Graziano são três as principais causas da fome no Brasil atualmente: a falta de renda, em função dos baixos níveis de remuneração, alto nível de desemprego e informalidade resultante do baixo crescimento econômico; o modelo agroexportador, que não distribui renda e gera crescimento intersetorial menor que o necessário para absorver o crescimento da população ativa; e o alto nível de concentração de renda.
Ao final de sua exposição, indicou políticas que podem ajudar a mudar o cenário atual no país. Para ele, é necessária uma agência reguladora da alimentação no Brasil.
Outro convidado para o primeiro dia de Seminário foi o presidente da Ação da Cidadania, Daniel de Souza. Ele partilhou a atuação da entidade nos últimos anos, destacando que, desde março de 2020, a campanha de arrecadação de alimentos antes realizada pontualmente no período do Natal precisou se tornar mensal.
“O que a gente faz é muito mais para evidenciar e trabalhar a solidariedade, que é força motriz da humanidade, do que propriamente para resolver o problema da fome”, destacou.
O seminário continua na terça e na quarta-feira. As reflexões serão apresentadas aos bispos para encaminhamento da elaboração do texto-base da CF 2023.
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