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No dia 21 de novembro de 2004 estaremos celebrando 40 anos da promulgação da Constituição dogmática Lumen Gentium (LG), sobre a Igreja, do Concílio Ecumênico Vaticano II. Não podemos deixar passar despercebida essa data tão significativa. De fato, a LG é, sem dúvida alguma, o marco referencial para toda a “revolução” provocada pelo último Concílio.
Voltando à noção bíblica de povo de Deus[1], a LG propôs verdadeira redefinição do conceito e da experiência de Igreja. Até então a eclesiologia era profundamente dominada pelo aspecto jurisdicionista. Essa visão burocrática de Igreja forma-se no âmbito da cultura do século XVIII e torna-se oficial no Concílio Vaticano I. Nessa eclesiologia, a dimensão do mistério desaparece, a conexão da Igreja com o Espírito do Ressuscitado não é colocada em evidência. Cristo e o Espírito não são mais os sujeitos da santificação. A Igreja não é a “ekklesia”, isto é, a assembleia daqueles e daquelas que foram convocados pela Trindade; não é mais a “communio sanctorum”, ou seja, a comunhão dos santos e santas, mas passa a ser identificada exclusivamente com o clero[2].
Retomando a ideia patrística de Igreja, “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4), o Vaticano II lembra que todos os batizados e batizadas têm dignidade, liberdade, formam a comunidade dos filhos e filhas de Deus e são templos do Espírito Santo (cf. LG 9). Todo o povo de Deus, por causa do sacerdócio comum dos fiéis, é chamado à plena participação e a uma vida santa (cf. LG 10). Aliás, não só os católicos, mas também os demais cristãos e toda a humanidade são destinados a ser povo de Deus (cf. LG 13).
Nessa perspectiva, a LG fala de vocação universal à santidade. Todo o capítulo 5 dessa constituição conciliar é dedicado a essa temática. Trata-se de verdadeira reviravolta, uma vez que, em uma eclesiologia que identificava a Igreja com o clero, a santidade tinha sido reduzida a uma “propriedade privada” de bispos e padres e, em alguns casos, de algumas freiras. Ser santo não era coisa para o povo!
Neste artigo, considerando o significativo acontecimento dos 40 anos da LG, queremos refletir sobre essa redescoberta do Vaticano II. Vamos, em primeiro lugar, tentar entender o que é a santidade. Em seguida falaremos da sua universalidade, conforme a proposta lançada pelo Concílio. Num terceiro momento abordaremos o tema da diversidade da santidade e, ligado a essa questão, o da legitimidade dos diversos caminhos que levam à santificação. Por fim, vamos deixar algumas “provocações” para o momento eclesial que estamos vivendo.
1. O que é a santidade?
Convém começar esta reflexão esclarecendo o que é a santidade, uma vez que ainda hoje isso não é tão claro. Na maioria das vezes, a santidade é confundida com atitudes de beatice ou carolice. No linguajar comum, especialmente dos grupos fundamentalistas atuais, das comunidades neoconservadoras que estão surgindo ultimamente no interior da nossa Igreja, a santidade é relacionada com atitudes alienadas e com comportamentos desequilibrados e totalmente distantes do mundo real.
A vocação ou chamado à santidade de que fala a LG tem um fundamento bíblico e, como tal, está profundamente relacionada com o cotidiano e com a prática concreta da vida de cada dia. Para ser santa, a pessoa não precisa fugir do seu estado de vida. Ela se santifica exatamente e somente pelo compromisso com a sua condição humana e cristã. A vocação à santidade consiste na capacidade de responder ao apelo divino por meio da vivência evangélica do próprio estilo de vida (cf. LG 39).
A LG define a santidade com base na Bíblia[3]. Na Sagrada Escritura a santidade tem duas grandes características. Antes de tudo, ela é uma prerrogativa exclusiva de Deus. Só Deus é Santo. Por isso mesmo, ela não é algo adquirido pelos esforços e méritos das pessoas, mas uma dádiva, um dom divino. Deus nos comunica a sua santidade, fazendo-nos participantes da sua vida divina. A segunda característica está relacionada com isso. A comunicação da santidade por parte de Deus não se dá diretamente e particularmente a cada pessoa, mas à comunidade convocada e reunida por ele. Na concepção do Concílio — que é também a visão bíblica — não existe o santo isolado. A pessoa se santifica enquanto é pertencente a uma comunidade.
A partir do que foi dito, podemos afirmar que a santidade é um chamado que o Pai, pelo Filho, na ação do Espírito, dirige a toda a humanidade e, de modo particular, a todas as pessoas batizadas. Tal chamado tem três elementos básicos: a pertença, a missão e o testemunho.
O chamado à santidade é, antes de tudo, um convite a pertencer à família divina. Nós somos o povo que pertence a Deus, sua “particular propriedade” (1Pd 2,9). Isso significa que somos aqueles e aquelas que são escolhidos e amados pelo Criador. Não somos o resultado do acaso, do destino, do pecado, mas o fruto do amor ilimitado da Trindade. Nascemos do amor de Deus e somos predestinados ao Amor. Nossa característica principal é amar e gozar a experiência fascinante de ser filho ou filha de Deus (cf. Ef 1,4-5).
Porque amados e amadas por Deus, recebemos a missão de comunicar o seu amor aos demais homens e mulheres. Nesse sentido, a santidade é participação na missão do Filho e do Espírito. A Igreja é “indefectivelmente santa” (LG 39) porque é enviada para ser “sacramento universal de salvação” (AG 1). Deus nos escolhe e nos envia para proclamar as suas “excelências”, as suas maravilhas (cf. 1Pd 2,9). Portanto, ser santo ou santa é acolher com alegria e disposição o chamado para tomar parte ativa na missão evangelizadora da Igreja, para anunciar a todas as pessoas o projeto de vida que a Trindade Santa tem para toda a humanidade.
Enquanto anúncio, convite para proclamar a boa notícia, a santidade é também uma convocação ao testemunho. Aqueles e aquelas que experimentaram a ternura e a misericórdia do Pai são convidados a comunicar essa experiência mediante o próprio modo de viver. Um estilo de vida no qual a experiência do amor seja bem visível e consiga envolver outras pessoas. A santidade seria, então, uma vida vivida como expressão do Mistério, como fascinação e como encanto pela Trindade e pela vida que ela espalha pelo universo.
Precisamos, pois, afirmar com muita clareza que a vocação à santidade, perspectiva bíblica assumida pelo Vaticano II, não tem aquelas conotações moralistas de uma ascese que nasceu de certo espiritualismo de fuga e das colorações maniqueístas que empestaram a Igreja por muito tempo. A ruptura com a mediocridade, com a superficialidade, e a busca da transparência e da perfeição evangélica são apenas o resultado do processo.
Nesse dinamismo que acabamos de apresentar, não se nega a importância do esforço (cf. Mt 7,13-14) e da luta (cf. 1Cor 9,24-27), mas esses são apenas elementos derivantes. O mais importante na santidade é o dom, é a graça. A Igreja, e nela cada pessoa, participa apenas respondendo ao dom recebido de forma totalmente gratuita. A santidade é um presente de Deus! A Igreja é santa porque a Trindade é santa; porque a sua origem e a sua fonte são santas (cf. LG 39). O santo, ou a santa, portanto, é aquela pessoa que fez a experiência de ter sido amada primeiro (cf. 1Jo 4,10) e responde à iniciativa divina amando os demais irmãos e irmãs, tornando-se assim anunciadora dessa maravilhosa dádiva e desse carisma que ultrapassa os demais (cf. 1Cor 12,31).
2. A universalidade da santidade
A santidade, descrita nos termos que acabamos de apresentar, não é “uma vocação reservada a alguns, monopólio de certos estados ou privilégio de uma casta”[4]. O Concílio Vaticano II foi bem explícito: todos na Igreja são chamados à santidade (cf. LG 39). Todas as pessoas, de qualquer condição, de qualquer estado de vida, são vocacionadas à santidade de vida (cf. LG 40).
Hoje, depois de 40 anos, tal afirmação pode parecer tranquila. Mas nem sempre foi assim. Já tivemos ocasião de acenar para um tipo de mentalidade que vigorava até a época do Vaticano II. Tal mentalidade levava a comunidade cristã a delegar a santidade a umas poucas pessoas, como bispos, padres e particularmente monges. O simples cristão deveria se contentar em recolher as migalhas que, a conta-gotas, eram difundidas pelos mosteiros. Os leigos e as leigas podiam aspirar apenas à salvação concedida pela prática sacramental e pela benevolência da hierarquia. Por estarem no mundo, ficavam impedidos de ser santos e santas[5].
Em nossos dias isso ainda não é considerado uma coisa normal. Para constatar isso, basta seguir todo o processo burocrático mediante o qual a hierarquia da Igreja costuma canonizar os seus santos e santas. Acompanhando a referida prática, fica a impressão de que a santidade ainda é monopólio de algumas castas. Normalmente são canonizadas pessoas que pertenceram ao clero ou à vida religiosa. Para fazer alguém chegar à “honra dos altares” é necessário muito dinheiro e pelo menos dois milagres! A canonização de um cristão leigo ou cristã leiga é raridade! Se for uma pessoa casada, ainda mais raro — mesmo que os leigos e leigas sejam a quase totalidade da Igreja!
Essas constatações nos mostram como é urgente tomarmos consciência “da importância da consagração batismal e da exigência de santidade do povo de Deus”[6]. De fato, o que ainda causa problema é a dificuldade que temos em aceitar o valor e a beleza da vocação batismal. Para muitas pessoas, o batismo não passa de um puro ritual revestido de muita mágica e sem nenhum significado para a vida concreta dos cristãos e cristãs[7].
A superação dessa mentalidade redutiva da vocação à santidade comporta a tomada de consciência de alguns elementos fundamentais. Antes de tudo, a certeza de que o Espírito do Senhor foi enviado a todos os batizados e batizadas. “A vida espiritual de todo o Povo de Deus pode beber do mesmo espírito que não discrimina suas maravilhas segundo as categorias jurídicas, derramando-as com total prodigalidade e generosidade sobre todos aqueles e aquelas que, pelo batismo, foram enxertados no mistério de Cristo e passaram a encontrar nele o mais profundo e verdadeiro de sua identidade”[8]. Consequentemente, a santidade não é propriedade privada de nenhuma pessoa e de nenhum grupo.
O segundo elemento refere-se à convicção de que a justificação realizada por Cristo não exclui ninguém, uma vez que todos pecaram e todos são justificados gratuitamente (cf. Rm 3,21-26). Além disso, todos os cristãos e cristãs, pelo batismo, “foram feitos verdadeiros filhos de Deus e participantes da natureza divina, e por isso mesmo verdadeiramente santos” (LG 40).
A ideia de que a santidade é uma exclusividade de determinadas pessoas ou de certos grupos não tem fundamento. Do mesmo modo, não podemos pensar a santidade como uma categoria do futuro. Embora tenha existido sempre na comunidade cristã a concepção de que “todos pecaram e estão privados da glória de Deus” (Rm 3,23), o Concílio Vaticano II “atribui o predicado da santidade não apenas à Igreja escatológica, mas também à Igreja terrena”[9].
3. Diversas formas de santidade
Reconhecendo que a santidade é dom da Trindade para todas as pessoas, a LG põe em evidência outro aspecto muito significativo. O Concílio afirma que cada pessoa cultiva de forma diferente a mesma e única santidade, de acordo com os carismas recebidos do Espírito (cf. LG 41). Isso é bastante significativo. Não só se afirma a universalidade da santidade, mas também a legitimidade da diversidade dessa mesma santidade[10]. De fato, “a santidade é, em cada um, uma vocação que não pode ser senão pessoal, e cuja resposta é também pessoal. Deus não fabrica santos em série”[11].
Tendo presente esse dinamismo, a LG insiste em dizer que existe não só uma diversidade da santidade relacionada com os três grandes grupos de vocação específica (cristãos leigos e leigas, vida consagrada, ministério ordenado), mas também de pessoa para pessoa. Dessa maneira, é totalmente legítimo que alguém viva o chamado à santidade de forma única, sem precisar copiar nada de outra, sem ser a fotocópia de outro santo ou santa.
A afirmação da legítima diversificação do jeito de ser santo supõe outro aspecto muito importante. A santidade não se dá “nas nuvens”, em “outro planeta”, fora da realidade, mas no cotidiano da vida. Todas as pessoas, sem distinção alguma, são chamadas a ser santas nas condições normais de sua vida, com base naquilo que são e naquilo que fazem. A santidade é um dom que deve ser acolhido e cultivado no tempo, no espaço, nas ocupações e nas circunstâncias em que nos situamos (cf. LG 41). O cristão, a cristã, “não se santifica apesar dos deveres de sua posição”, mas, “antes e principalmente, em e por estes deveres”[12].
Uma vez salvaguardada a possibilidade e a legitimidade da diversidade da santidade, a LG indica algumas características típicas da santidade de cada uma das vocações específicas. Trata-se, é claro, de indicações genéricas e bem abertas, uma vez que, como dissemos, cada pessoa viverá esse chamado de forma única, segundo os dons recebidos do Espírito de Deus.
No tocante à santidade dos cristãos leigos e leigas, o Vaticano II destaca o significado do trabalho, da participação na construção do bem comum e da cidadania, do labor cotidiano, com suas alegrias e também com suas cruzes. A vida matrimonial ganha especial destaque, uma vez que é considerada um exemplo para a construção da fraternidade. Já a vida consagrada é chamada a santificar-se no seu carisma de ser paradigma do seguimento de Cristo casto, pobre e obediente. Os ministros ordenados vivem a vocação universal à santidade por meio do desempenho do seu ministério, o qual deve ter como característica principal a caridade pastoral, ou seja, o serviço aos demais membros do povo de Deus. Desta forma a LG, embora afirmando os pontos comuns da santidade, válidos para todos os cristãos e cristãs, quis destacar também o específico, aquilo que brota da diversidade, da diferença gerada pelo próprio Espírito de Deus (cf. lCor 12,7).
Não podemos, porém, deixar de salientar um dado particular. Referindo-se ao multiforme exercício da única santidade, a LG quis dar um lugar privilegiado aos pobres, ou seja, àqueles “que vivem oprimidos na pobreza, na fraqueza, na doença e noutras tribulações, ou os que sofrem perseguições por amor da justiça” (LG 41f). Embora deixasse claro que a santidade não é exclusividade de nenhuma casta, o Concílio, seguindo a tradição bíblica[13], não hesita em afirmar que há uma santidade especial que pertence aos excluídos e excluídas.
A LG deixou bem clara a convicção de que a Igreja deve seguir o exemplo de Cristo, o qual, além de se fazer pobre, quis ser o evangelizador dos pobres. Assim sendo, a santidade, dom de Deus para toda a humanidade, tem o seu referencial no mundo dos pobres. Sem opção verdadeira e preferencial pelos excluídos e excluídas não existe caminho para a santidade. Todo aquele e aquela que realmente deseja viver a experiência da santidade terá necessariamente de ser sensível aos gritos dos deserdados deste mundo[14]. A santidade cristã só pode ser vivida na prática concreta da “religião da estrada”, daquela experiência de Deus que passa pela atenção aos que estão jogados e caídos à margem da nossa sociedade[15].
4. Caminhos de santidade
Além de apontar as diversas formas de santidade, a LG indica os caminhos, isto é, os meios pelos quais a comunidade dos batizados e batizadas pode viver esse chamado universal. O caminho principal é, sem dúvida alguma, aquele da prática do amor, da caridade. O Vaticano II é muito enfático quando se refere a esse fato: “O dom principal e mais necessário é a caridade, pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo por causa dele” (LG 42).
É bastante significativo que o Concílio fale de dom do amor, deixando entender que não se trata apenas de um esforço para praticar a caridade. O amor é uma dádiva divina, uma iniciativa do Pai, que a pessoa humana é chamada a acolher. A Trindade gratuitamente nos oferece o seu amor e propõe que gratuitamente o aceitemos. Não se trata de uma troca, como, aliás, dão a entender certas devoções espalhadas por aí e baseadas na questão do mérito. A visão conciliar, fundamentada biblicamente, elimina aquela “concepção bancária” de santidade, segundo a qual a pessoa vai acumulando “créditos” para a sua salvação, sempre a partir daquilo que faz.
A vocação de toda pessoa humana é um convite a amar. Nós somos criados “no amor e para o amor”[16]. Esse chamamento tem o seu fundamento na iniciativa da Trindade, que nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,10). Desse gesto estupendo de Deus brota a proposta para todo aquele e toda aquela que querem seguir Jesus: “Se Deus nos amou a tal ponto, também nós devemos amar-nos uns aos outros” (1Jo 4,11). Dessa forma o amor passa a ser o distintivo da vida cristã (cf. Jo 13,35) e a santidade, um apelo para sermos “sem defeito no amor” (Ef 1,4). “Não será por demais sublinhar a importância desta valorização da caridade.” Em relação a ela tudo é meio, tudo se mede por ela”[17].
A LG afirma ainda que a prática do amor leva necessariamente a outras atitudes que podem ser sintetizadas, como o cultivo dos “mesmos sentimentos que havia em Cristo Jesus” (LG 42), em clara alusão à Carta aos Filipenses. Isso significa que a santidade, enquanto prática do amor e de um estilo de vida semelhante ao de Jesus, tem a sua dimensão ética. O dom recebido no batismo torna-se resposta humana, um modo concreto de viver a graça recebida ao longo da vida, da existência[18]. Responder ao chamado à santidade é assumir um “solene compromisso”[19] de ser presença que ajuda na transformação do mundo. A santidade é um convite a “fazer a diferença” num mundo onde existe a tendência a fazer tudo como propõe o mercado neoliberal. Falando simbolicamente, a santidade é o apelo a sermos sal, luz e fermento (cf. Mt 5,13-16; 13,33).
Todavia, lembra ainda a LG, a santidade não cresce e não frutifica se não for alimentada. Por isso os cristãos e cristãs são convidados a ouvir a Palavra, participar dos sacramentos, cultivar a vida de oração, viver de modo abnegado e pôr-se a serviço dos irmãos e das irmãs. Talvez a novidade mais significativa seja a referência à escuta da Palavra de Deus, uma vez que até então se propunha um estilo de vida cristã sem praticamente nenhuma relação com a Bíblia[20]. Muitos eram os atos de piedade, as devoções, as penitências, enquanto a meditação da Sagrada Escritura era pouco cultivada. Palavra e sacramentos estavam dissociados. Os textos sagrados tinham sido tirados das mãos do povo. A própria hierarquia da Igreja, numa interpretação exagerada dos decretos do Concílio de Trento, condenou como herética a afirmação de que o estudo e o conhecimento da Escritura eram úteis e necessários para a vida cristã. Chegou-se ao cúmulo de afirmar que a leitura da Bíblia não era para todas as pessoas[21].
Além desses caminhos já mencionados, a LG lembra ainda o significado do martírio, dos “muitos conselhos evangélicos” e da pobreza evangélica. A referência aos conselhos evangélicos, destacando-se a virgindade ou celibato, parece não ter escapado do ranço pré-conciliar que atribuía a perfeição à vida monacal. Hoje soa como muito estranha a afirmação da “singular estima” da Igreja pela “continência perfeita”, considerada “sinal da caridade” e “fonte peculiar de fecundidade espiritual” (LG 42c).
A pergunta legítima a ser feita é a seguinte: o matrimônio não deve ser também estimado? Também ele não é sinal de caridade e de fecundidade espiritual (cf. Gn 1,26-27)? Por isso esse parágrafo, para ser completo e entendido corretamente, precisa ser lido à luz de outros textos conciliares em que se afirma a positividade e a beleza do casamento (cf. GS 47-52). Sem essa leitura o texto em análise pode perder a sua força renovadora. A espiritualidade dos cristãos leigos e leigas teria um caráter monástico e ficaria desprovida de seus elementos específicos, o que certamente não estaria na mente da maioria dos padres conciliares.
Por fim a LG recorda que o caminho da santidade passa pela renúncia à riqueza e pela acolhida do espírito de pobreza evangélica (LG 42e). No seu retorno às fontes bíblicas, o Vaticano II quis lembrar a todos os cristãos e cristãs que é impossível conciliar riqueza e seguimento de Cristo (cf. Mt 19,23-26). Não se podem abraçar as duas coisas ao mesmo tempo. Quem quiser amar uma coisa terá de abandonar a outra (cf. Mt 6,24)! O Concílio não propõe uma santidade que se afaste do mundo e da humanidade. Sugere apenas que ela seja cultivada a partir da consciência da relatividade de determinadas coisas, de tal forma que isso possibilite a comunhão, a fraternidade e a partilha.
5. Algumas “provocações” para a Igreja do nosso tempo
A leitura e o estudo do capítulo 5 da LG certamente trazem alguns questionamentos para a Igreja dos nossos dias. A distância que nos separa do Vaticano II já permitiu a criação de muitos vazios e lacunas. Para muita gente, o último Concílio não diz mais nada. Em muitos lugares estamos assistindo a fenômenos que parecem ignorar completamente esse evento eclesial. Nem parece que ele, como afirmou João Paulo II, foi “a grande graça de que se beneficiou a Igreja no século XX” ou constitui a “bússola segura” que vai orientar o nosso caminhar neste novo século (cf. NMI 57). Por essa e outras razões convém agora apresentar algumas “provocações” que o texto sobre a vocação universal à santidade faz ao nosso atual jeito de ser Igreja.
Um primeiro questionamento diz respeito ao conceito de santidade. Não seria ele ainda muito arcaico e ultrapassado? Parece-nos que, na mentalidade da maioria das pessoas, a santidade ainda tem um sabor “angelical”. Ela é considerada como algo pouco humano. A visão que se tem de santidade é bastante igrejeira e sem muita relação com a vida concreta, especialmente com a luta pela sobrevivência. Tem-se a impressão de que a santidade pregada nos púlpitos eletrônicos modernos tem cheiro de mofo e de muita alienação. Não é fascinação pela vida, não é resgate da beleza da criação e de tudo aquilo que Deus, ao criar, viu que era “muito bom” (Gn 1,31). Sente-se no ar um odor muito forte de maniqueísmo e de dualismo — especialmente proveniente de grupos fundamentalistas e neoconservadores. Está na hora de não mais confundir o santo, a santa, com o beato, o carola e o sujeito “barata-de-igreja”. A santidade dos cristãos e cristãs deve produzir um “mundo esplêndido”, bonito, sadio. Onde está escrito que o santo e a santa devem ser confundidos com neuróticos e alienados?
Essa inquietação suscita outra. Por que ainda continuamos a privilegiar algumas castas, como se a santidade não fosse universal? Não estaria na hora de revolucionar a prática da canonização de santos? Por que os cristãos leigos e leigas — que são maioria absoluta na Igreja — não são canonizados em igual número? Por que continuam sendo exceção? Por que não canonizar mais casais? Por que continuar privilegiando padres, frades e freiras?
Além disso, parece estar na hora de mexer na “máquina burocrática” de “fazer santos”. Não é possível afirmar a universalidade da santidade quando ainda se exige muito dinheiro para “fazer” um santo! Desse jeito os pobres, especialmente os leigos e leigas, nunca vão ter oportunidade. Do mesmo modo, não é possível afirmar a normalidade da santidade quando ainda se exigem dois milagres extraordinários para se chegar a uma canonização. Não é suficiente o testemunho de vida? Por que pretender “milagres” quando o cotidiano da pessoa já foi um milagre?
Disso se pode deduzir outro questionamento. Por que adiar a santidade para depois da morte? Não é possível reconhecer e apontar os santos e as santas que estão vivendo no meio de nós? Por que, como faziam as primeiras comunidades[22], não nos reconhecemos todos santos e santas, ou seja, gente que foi escolhida pelo Pai desde toda a eternidade (cf. Ef 1,4), pessoas chamadas à santidade (cf. Rm 1,7)? Não deveríamos propagar mais claramente a certeza de que já fomos santificados em Cristo Jesus e, portanto, já podemos ser considerados santos e santas (cf. 1Cor 1,2)? A solenidade de todos os santos e santas, celebrada pela Igreja no dia 1º de novembro, não deveria ser a festa de todos nós, discípulos e discípulas de Jesus? Somos ou não somos “um sacerdócio real, uma nação santa”, o povo que é “propriedade” do Senhor? (cf. 1Pd 2,9). Por que, então, ficar com medo de ser reconhecido como santo ou santa?
E se isso tudo é verdadeiro, por que ainda temos medo de canonizar os santos e as santas que viveram no nosso tempo? Por que a escolha das pessoas a ser canonizadas ainda é marcada por certa ideologia de direita? Por que, com frequência, canonizam-se pessoas martirizadas pelas ditaduras de esquerda e não se faz o mesmo com os heróis brutalmente assassinados pelos regimes de direita? Por que, por exemplo, negar a nós, latino-americanos e caribenhos, o direito de termos reconhecidos oficialmente estes nossos mártires: São Romero, São Josimo, Santo Eugênio Lyra, Santo Dias da Silva e tantos outros? A lista desses mártires é bastante longa[23]. No entanto, reina o mais absoluto silêncio. Nenhum deles foi canonizado.
6. Conclusão: “Sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 19,2)
A vocação universal à santidade, tão bem resgatada pela LG, tem uma fundamentação bíblica. Pertence ao maravilhoso patrimônio que os cristãos e cristãs herdaram do judaísmo. A primeira carta de Pedro atesta isso com toda a clareza (cf. 1Pd 1,15-16). Os escritos paulinos também são unânimes em afirmar que todos os homens e todas as mulheres são chamados a ser santos e santas (cf. 1Cor 1,2). Portanto, a ausência desse universalismo em nossa prática evangelizadora nega profundamente a proposta do Livro Sagrado.
A celebração dos 40 anos da LG deveria nos ajudar a avaliar o caminho que temos feito até agora. Seria muito bom que ela nos ajudasse a ousar e a acreditar muito mais na possibilidade da santidade para todos os batizados e batizadas. Aliás, quanto a isso, a LG foi muito mais corajosa. Ela estendeu a universalidade da vocação à santidade a todos os homens e a todas as mulheres da terra. De fato, como afirma o capítulo sobre o povo de Deus, a divina providência não nega essa possibilidade a ninguém, nem mesmo àqueles e àquelas que, sem culpa, ainda não chegaram ao conhecimento explícito da mensagem do evangelho (cf. LG 13-16). A santidade é dom do Espírito Santo (cf. LG 39) acolhido mediante a prática da caridade. Por isso mesmo, o risco de não chegar à santidade só se verifica quando falta o amor (cf. LG 42). Nesse sentido, o Vaticano II foi audacioso ao afirmar categoricamente que a pertença à Igreja não é garantia de santidade. Alguém pode ser batizado, crismado, frequentador habitual das igrejas, “católico de carteirinha”, mas, se “não persevera na caridade”, corre o risco de não acolher e de não cultivar a santidade (cf. LG 14).
Temos, pois, grande tarefa pela frente: resgatar o verdadeiro significado e a verdadeira vivência da vocação universal à santidade. Infelizmente os nossos horizontes são ainda muito estreitos. Mas podemos aprender essa tarefa com aqueles e aquelas que prepararam, fizeram e viveram o Concílio Vaticano II. Essas pessoas acreditaram na possibilidade da universalidade da santidade. Uma dessas pessoas foi o Pe. Justino Russolillo, fundador da Sociedade das Divinas Vocações (vocacionistas), que, ao lado de tantos outros, pode ser considerado um precursor do Vaticano II. Já no início do século passado ele afirmava: “De um modo geral tudo é divina vocação no mundo. Vocação à vida, vocação à fé, vocação à santidade. Cada ser e cada estado digno do ser corresponde a uma divina vocação”[24].
Somos chamados e chamadas a ir além, a perceber a santidade como “utopia da vocação cristã”[25]. Precisamos vê-la de forma ampla, irrestrita, ecumênica, num dinamismo que englobe toda a humanidade, todas as religiões, todos os homens e todas as mulheres de boa vontade. Somos convidados e convidadas a retomar o verdadeiro espírito da LG, deixando de lado a pretensão de querer pôr limites na ação e na bondade de Deus. Se realmente queremos viver num cristianismo mais fiel à Palavra, temos de romper os confins de nossa família, de nossa Igreja, abrindo-nos para todos os lados, para todos os povos, para a universalidade da santidade. Toda atitude que procura restringir o conceito, a ideia, a experiência de santidade a um pequeno grupo, a uma parte da Igreja, não é certamente atitude divina[26]. Também aqui o Senhor nos diz: “Avancem para águas mais profundas” (Lc 5,4).
Fonte: Revista Vida Pastoral
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