Deus, desde sempre, chama o ser humano a reconhecer os seus pecados, fazer penitência para que possa ser capaz de acolher o Reino dos Céus que está cada vez mais próximo de nós. Mas para falar da penitência na Quaresma é necessário fazer-nos uma pergunta fundamental: De que penitência falamos? Não é a mesma coisa tratar da penitência sacramento.
Esta é a confissão dos nossos pecados através da mediação do sacerdote que, em nome de Deus, nos dá o perdão, nos reconcilia conosco e com os outros, nos lava no sangue de Cristo e nos permite ter uma vida nova, cheia de amor e boas obras. O sacramento da penitência é sem dúvida o mais belo dom que Deus dá a cada um de nós através da sua Igreja. Nada de mais profundo, belo e pacificador que ouvir sobre nós “eu te absolvo de teus pecados”, as palavras que aquele que age na “pessoa de Cristo” nos diz:
“Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Amém.”
Estas palavras são como que uma chuva que fecunda o nosso deserto, uma ponte que se reata a um caminho novo. Não devemos ter medo do amor de Deus, mas como dizem os santos, temamos “ofendê-lo” através da nossa maldade.
Neste artigo, porém, não queremos falar do sacramento da penitência ou confissão, mas sim da virtude da penitência. Uma virtude que é necessário adquirir para podermos carregar com “alegria e aceitação” a cruz de Cristo que nos é oferecida no nosso dia-a-dia. O mesmo Jesus, no início de sua pregação nos diz: “aquele que quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me!”
Vamos, portanto, tentar compreender esta virtude que é autodomínio, controle de si mesmo, ascese e purificação de tudo o que não é Deus. Implica em afastar de nós todas as coisas que não nos permitem viver o mistério do amor infinito do Senhor.
É uma virtude cristã fundamental para o crescimento interior e que integra toda a nossa vida espiritual, nos oferece sem dúvida elementos para podermos compreender melhor a superação do pecado, a nossa aliança com Deus, a nossa fidelidade e amor ao Senhor e ao próximo. Consiste na renúncia consciente em vista de um bem, por isso a penitência e o sacrifício em si mesmos não têm sentido, seria puro masoquismo ou renúncia de “besta”, como diz São João da Cruz, que era penitente e entendia de pessoas penitentes, mas também entendia de pessoas desequilibradas que faziam penitências para mostrar o que não eram.
A penitência cristã não consiste na privação por alguns momentos para em seguida “recuperar os tempos perdidos”, como me contava uma mulher santa e sábia: “Durante a quaresma eu faço penitência de não comer chocolate, mas, no dia da páscoa, eu recupero e como até me saciar…” A que serve esta maneira de pensar e de agir? A nada. Ou aquele distinto senhor que era capaz de ficar um mês inteiro sem beber nada alcoólico, mas depois esvaziava garrafas inteiras. Não é esta a penitência que o Senhor deseja.
“Atraídos pelo gosto experimentado em suas devoções, alguns se matam de penitências; outros se enfraquecem com jejuns, indo além do que a sua debilidade natural pode suportar. Agem sem ordem nem conselho do outrem; furtam o corpo à obediência, à qual se devem sujeitar; chegam até o ponto de agir contrariamente ao que lhes foi mandado.
Tais almas são imperfeitíssimas, e parecem ter perdido a razão. Colocam a sujeição e a obediência, isto é, a penitência racional e discreta, aceita por Deus como o melhor e mais agradável sacrifício, abaixo da penitência física, que, separada da primeira, é apenas sacrifício animal a que, como animais, se movem, pelo apetite e gosto ali oferecido.” (1N 6,1- 2)
A penitência deve ser vista como atitude interior de todo o nosso ser para nos converter e assumir com verdade o evangelho de Jesus como norma de vida. O Papa Paulo VI, em 1966, nos deu uma Constituição Apostólica chamada “Paenitemini”. Nesta carta o Papa tenta reapresentar a virtude da penitência como algo de fundamental para vivenciar com maior coerência o evangelho.
Reafirma os valores bíblicos, teológicos e místicos da penitência. Todo o sentido da penitência é alcançar melhor a vivência do Cristo em nossa vida. O mundo de hoje rejeita tudo o que tem sabor de dor, sofrimento, renúncia. É um mundo marcado pelo prazer, pelo hedonismo e não quer conhecer que não se pode gozar das cosias eternas sem renunciar às coisas da terra.
Ainda o nosso mestre João da Cruz coloca bem em realce quando, com algumas frases secas, mas eficazes diz: “Inclinar-se sempre não ao mais fácil, mas sim ao mais difícil; não ao mais saboroso, mas ao mais insípido, não ao mais gostoso, mas ao que não dá gosto; não se inclinar ao que é descanso, mas ao mais trabalhoso… não andar buscando o melhor das coisas, mas o pior; e por Jesus Cristo ter, para com todas as coisas do mundo, desnudez, vazio e pobreza.” (Ditos 159). Quando, portanto, falamos da penitência, entendemos um conjunto de atitudes e de ações que manifestam no dia a dia nossa vontade de renunciar a tudo o que não é Deus.
Jesus inicia a pregação convidando a todos à conversão, que não é outra coisa senão viver em penitência, com atitude de renúncia ao passado e presente para um novo estilo de vida, marcado pelo anúncio do Reino. “Completou-se o tempo, e o reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho.” (Mc 1, 15) O evangelho é boa nova, é dom, nunca Jesus obriga alguém a viver a palavra dele, mas convida com amor, com insistência, deixando a liberdade que fica sempre ao homem que pode dizer o seu sim ou o seu não. A liberdade é oferta de Deus e resposta do homem. Mas toda conversão vai exigindo uma decisão forte e corajosa por parte de cada um de nós. Converter-se é romper com o que não está certo e fazer um caminho de volta, de retorno.
Esta penitência tem um nome um pouco difícil em grego “metanoia”. Esta palavra significa mudança de pensamento, do modo de contemplar as coisas, revestir-se de um pensamento novo que é o pensamento de Cristo. Não pensar mais como o mundo, mas sim com a palavra de Deus. O evangelista Lucas apresenta com solenidade a entrada da mensagem de Cristo na história, e o faz para que todos se convençam que a missão de Jesus não é de poder nem de morte, mas sim de serviço e de vida.
“Não vim chamar para a conversão os justos, mas os pecadores” (Lc 5,32). Ele sabe que veio e está no nosso meio para salvar os “pecadores”, mas afinal quem são os pecadores e o que é o pecado? É curioso que a Igreja no Catecismo da Igreja Católica dê uma definição de pecado, mas não de pecadores. Todos temos medo de assumir a nossa atitude, a nossa profissão de “pecadores”. Na verdade pecador é quem “erra o centro de sua missão, se afasta do projeto inicial, e toma um caminho que o leva longe do seu destino”.
Jesus não pede muitas coisas aos pecadores para voltarem ao caminho certo, somente duas que são fundamentais para qualquer pessoa que queira ser sinal vivo do Senhor.
Penitência: Isto é, atos concretos de despojamento, de morte ao mal. Uma determinada determinação de assumir uma vida nova. Toda mudança exige esforço e treino.
Às vezes eu me pergunto quantos sacrifícios e renúncias em vista de um prêmio fazem os atletas? O apóstolo Paulo lembra muito bem isso quando diz: “Não sabeis que os que correm no estádio correm todos, mas só um alcança o prêmio? Correi, pois, de modo que o alcanceis.” (1Cor 9, 24) Ascese, sacrifício, renúncia… são meios para se chegar à meta que é Cristo.
O perdão é gratuito mas tem um preço para que seja eficaz, não pecar mais. É o que Jesus sempre pede depois que ele perdoa, como no caso da mulher adúltera: “os teus pecados estão perdoados, vá em paz e não peques mais.” É exigência fundamental da vida. Davi relembra: “Ensinarei os teus caminhos aos pecadores”. O apostolado dos pecadores convertidos é ensinar e educar para que outros não cometam o mesmo erro. Não devemos ter medo do nosso passado, mas sim do nosso futuro. É o que Jesus nos recorda: “Não peques mais para que não te aconteçam coisas ainda piores”. É advertência e não maldição.
Uma das mais belas descrições da virtude da penitência me parece que continua a ser aquela dada pelo concilio de Trento quando diz: “É dor interior, aborrecimento do pecado cometido, com o propósito de não voltar a pecar”. É algo fundamental que deve ser ensinado às pessoas que convivem conosco. É necessário perceber dentro de nós a “dor” pelos erros cometidos. Às vezes nos santos esta dor era algo físico, mas em nós deve ser pelo menos um arrependimento interior que nos leve a fugir de todas as ocasiões de pecado. Superamos o erro quando nos sentimos profundamente conscientes dele. Não porque os outros nos dizem, mas sim porque nos convencemos que o mais prejudicado pelo pecado somos nós mesmos que perdemos, por uma alegria passageira e efêmera, a paz interior.
A virtude da penitência deve ser adquirida com muito esforço e persistência. Todos sabemos disto, embora nem sempre queiramos nos convencer desta realidade.
“Naturalmente, não seria razoável que uma pessoa fraca e doente se pusesse a fazer muitos jejuns e penitências, fosse para um deserto — onde não pudesse dormir nem tivesse comida — ou coisas semelhantes. Temos de pensar que, com o favor de Deus, podemos esforçar-nos para atingir um grande desprezo pelo mundo e pelas suas honras, desapegando-nos dos bens terrenos. É tão fraco o nosso coração que achamos que o chão vai faltar se nos descuidarmos um pouco do corpo para dar mais ao espírito. Logo pensamos que a fartura facilita o recolhimento, porque a preocupação perturba a oração” (Santa Teresa de Ávila, Vida 13,4).
Brevemente, porque este não é um tratado sobre a virtude da penitência mas são simplesmente idéias e luzes que vão iluminando a vida de cada um de nós e cabe a nós sabermos assumir as atitudes mais necessárias e mais adequadas para nossa vida concreta.
A oração vista como forma de penitência. Nem sempre é fácil rezar, é necessário uma renúncia constante de outros valores e atividades, às vezes muito mais agradáveis. É um momento de encontro com o invisível que nos chama à intimidade com Ele. Exige uma força de vontade não indiferente para sermos fiéis à nossa oração pessoal, comunitária e litúrgica. Todos os dias participar da Eucaristia, rezar o terço… são formas de fidelidade que revelam um caráter que se formou na escola dos profetas e dos santos. Santa Teresa de Ávila e São João da Cruz sobre este aspecto apresentam um caminho de esvaziamento, de renúncia sem o qual não será possível chegar à plenitude de Deus.
“Os que começam a ter oração apanham a água do poço, o que é muito trabalhoso…” (Santa Teresa, V 11,7-9).
“Amado meu, todo o áspero e trabalhoso quero para mim, e, para ti, tudo quanto é suave e saboroso” (São João da Cruz, D 129).
A verdadeira esmola não é o “supérfluo, o inútil”. Quem faz limpeza na época da Campanha da Fraternidade em sua casa, dando aos pobres tudo o que é inservível, não faz caridade alguma, simplesmente desrespeita o irmão e faz dele “o cesto do lixo”. É necessário na caridade dar o que está “dentro do nosso prato”, o que é bom e não o descartável. Até os grandes supermercados acham que fazem caridade dando os produtos um dia antes de terem a validade vencida. Precisamos rever a nossa atitude de vida de caridade e de esmola como virtude da “penitência”. Todos sabemos como é difícil se privar de algo que gostamos para fazer alguém feliz.
O jejum é a forma mais tradicional da “penitência”. Atualmente na Igreja os jejuns são “reduzidíssimos”, são dois e se a Igreja tirar também estes dois não tem problema nenhum… Mas jamais a Igreja poderá tirar do evangelho e da práxis o espírito penitencial do jejum, que é participar da paixão de Cristo, sermos solidários com os que sofrem, dividir o que temos. São atitudes necessárias no seguimento de Jesus. Não é permitido o “luxo” que fere a dignidade dos pobres. O evangelho é algo de muito austero e simples, sem negar a alegria em nada. Tudo é santo quando os nossos olhos forem santos e puros.
A maneira de se vestir sempre manifestou atitudes interiores. Já os Padres da Igreja, Agostinho e Jerônimo são muito duros com aqueles que se vestem ricamente para se mostrar, para aparentar uma beleza passageira. A beleza não está nem nos vestidos nem nas jóias, mas sim nas “virtudes que adornam nossa alma”. A forma como nos vestimos revela o que buscamos, a essencialidade de Deus. Mas o desleixo não revela o devido respeito ao corpo, “sacramento” do amor infinito de Deus, mas sim puro descuido, e isto não vem do Senhor. Pode-se vestir pobremente, mas com dignidade e profundo amor.
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