O hino do Ofício das Leituras da quarta-feira de cinzas já nos apresenta o sentido desse dia e da caminhada que vamos realizar no período quaresmal até o ápice com a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo, assim diz o texto: “Agora é tempo favorável, divino dom da Providência, para curar o mundo enfermo com um remédio, a penitência. Da salvação refulge o dia, na luz de Cristo a fulgurar. O coração, que o mal feriu, a abstinência vem curar. Em corpo e alma, a abstinência, Deus, ajudai-nos a guardar. Por tal passagem, poderemos à páscoa eterna, enfim, chegar.” Com as Cinzas iniciamos um caminho de transformação e salvação.
O Salmista nos lembra do grande amor que Deus tem para conosco, ele canta “pois ele te perdoa toda culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida e te cerca de carinho e compaixão” (Sl 102). Este é o sentido da Quarta-feira de Cinzas. Dia de esperança em Cristo. A penitência, jejum e esmola levam-nos a viver a alegria de sermos salvos e resgatados para a vida eterna. Trata-se de uma caminhada de transformação e fé. A Quarta-feira de Cinzas é um dia de recolhimento, silêncio e interioridade para adentrarmos no mistério salvífico. É um momento salutar de revisar o nosso seguimento no discipulado de Cristo e nesse caminho permanecer.
A Quarta-feira de Cinzas marca o início da quaresma e como se sabe é precedida pela festa do Carnaval. A palavra Carnaval tem sua origem do latim carne levare (exaltar a carne, a fartura) ou carna vale (afastar-se da carne, dar adeus à carne). Mais do que uma das maiores festas populares do mundo, o Carnaval era a demarcação ou despedida do tempo farto ou mesmo da chamada “terça-gorda” ou dia de fartura que precedia o início do tempo penitencial, tempo de jejum e oração. No passado o jejum e abstinência de carne eram durante todo o período quaresmal, o que hoje permanece como práticas de penitência de muitos cristãos e o sagrado costume de não consumir carnes nas sextas-feiras. Destaca-se que para os carmelitas, de forma especial, essa prática ocorre nas sextas-feiras e também nas quartas-feiras durante todo o ano, só não nas oitavas e dias de solenidades para a Igreja.
A título de curiosidade na Regra de Vida dos Carmelitas, nos números XII e XIII nos diz: “desde a festa da Exaltação da Cruz, até o dia da Ressurreição do Senhor, jejuareis todos os dias, à exceção dos domingos, a menos que doenças, fraquezas ou outra causa justa aconselhe dispensar o jejum, pois a necessidade não tem lei. Abstei-vos de carne, a não ser que se deva usar como remédio para doença e fraqueza. E visto deveis viajar muito para pedir esmolas, fora de casa podereis comer carne, para não incomodar o hospedeiro. Também em viagens por mar é permitido comer carne.” Essas passagens nos mostram a grandeza da Regra de Vida dos Carmelitas de buscar viver a penitência, mas levando em consideração nossa humanidade, pois além de incentivar a prática penitencial em consonância com a vida de mendicância e caridade, observa a importância do nosso mergulho na fé, isto é, na experiência da Paixão e Ressurreição de Cristo. Outro detalhe: a demarcação temporal dessa prática que vai além do período quaresmal, pois a Festa da Exaltação da Cruz é celebrada em setembro e caminha até o momento da Páscoa, que na leitura carmelitana é celebrada também na festa de Cristo Rei ou da Ressurreição, isto é, de Jesus Cristo como rei no reino celeste.
A vivência da oração e penitência deve ser uma constância em nossas vidas. Nessa perspectiva a Igreja nos mostra que a Quarta-feira de Cinzas demarca um processo de transformação. Não são apenas as cinzas que são depositadas em nossa cabeça que demarcam que somos de Cristo ou mesmo nos lembram que do pó viemos e ao pó retornaremos (Gn 3,19). Nesse caminho de purificação do nosso coração recebemos as Cinzas para arrependimento e conversão constante, como bem vemos na oração para benção das Cinzas: “Deus de infinita bondade, que não desejais a morte do pecador mas a sua conversão, ouvi misericordiosamente as nossas súplicas e dignai-Vos abençoar estas cinzas que vamos impor sobre as nossas cabeças, para que, reconhecendo que somos pó da terra e à terra havemos de voltar, alcancemos, pelo fervor da observância quaresmal, o perdão dos pecados e uma vida nova à imagem do vosso Filho ressuscitado.”
Os ramos usados no Domingo da entrada de Jesus em Jerusalém são queimados e se tornam cinzas nos fazem lembrar que como os ramos vistosos que transparecem vida e beleza, com o tempo ressecam e se tornam cinzas, assim também é a vida humana. Devemos compreender que junto com as cinzas devemos queimar e deixar todas nossas fraquezas, ilusões, pecados, autossuficientíssimo, idolatrias, falsas promessas entre tantas outras coisas que quebram nossa aliança com Deus. As cinzas que recebemos nos mostram com a demarcação da Cruz em nossa fronte que somos de Cristo como já escutamos no nosso Batismo: “Nosso sinal é a Cruz de Cristo. Por isso vamos marcar … com o sinal do Cristo Salvador.” Esse sinal que nos salva e marca como rezamos nas Exéquias “E como a fé o associou na terra ao povo fiel, vossa misericórdia o associe no céu aos vossos anjos.”
As Cinzas são a marca do arrependimento dos pecados e do desejo de continuar caminhando com Cristo rumo à vida eterna. Esse rito é realizado desde a Igreja primitiva e marca nossa inteira confiança em Deus. A conversão não se trata apenas de um ato isolado ou mesmo de um rito, mas é a caminhada cristã por inteira. Todos os dias devemos converter e permanecer na presença de Deus. Devemos acolher Cristo como o verdadeiro sinal de salvação. Como lemos no Ofício das Leituras – Da Carta aos Coríntios, de São Clemente I, papa: Percorramos todas as épocas do mundo e verificaremos que em cada geração o Senhor concedeu o tempo favorável da penitência a todos os que a ele quiseram converter-se. Noé proclamou a penitência, e todos que o escutaram foram salvos. Jonas anunciou a ruína aos ninivitas, mas eles, fazendo penitência de seus pecados, reconciliaram-se com Deus por suas súplicas e alcançaram a salvação, apesar de não pertencerem ao povo de Deus. Inspirados pelo Espírito Santo, os ministros da graça de Deus pregaram a penitência. O próprio Senhor de todas as coisas também falou da penitência, com juramento: Pela minha vida, diz o Senhor, não quero a morte do pecador, mas que mude de conduta (cf. Ez 33,11); e acrescentou esta sentença cheia de bondade: Deixa de praticar o mal, ó Casa de Israel! Dize aos filhos do meu povo: ‘Ainda que vossos pecados subam da terra até o céu, ainda que sejam mais vermelhos que o escarlate e mais negros que o cilício, se voltardes para mim de todo o coração e disserdes: ‘Pai’, eu vos tratarei como um povo santo e ouvirei as vossas súplicas’ (cf. Is 1,18; 63,16; 64,7; Jr 3,4; 31,9).Querendo levar à penitência todos aqueles que amava, o Senhor confirmou esta sentença com sua vontade todo-poderosa.”
Devemos apreciar e vivenciar de fato as palavras cantadas no hino das Laudes da Quarta-feira de Cinzas que nos diz: “Dai-nos, no tempo aceitável, um coração penitente, que se converta e acolha o vosso amor paciente. A penitência transforme tudo o que em nós há de mal. É bem maior que o pecado o vosso dom sem igual.” A Igreja é clara ao nos ensinar que devemos confiar na misericórdia divina e que devemos retomar sempre o caminho que nos leva a santidade e a viver conforme a vontade divina. Esse caminho que nos leva a viver a alegria da nossa esperança em Cristo que é cantada no hino das Vésperas: “Para que nós, purificados por esses ritos anuais, nos preparemos, reverentes, para gozar os dons pascais.” Caminhamos certos que em Cristo seremos salvos para viver na eternidade no reino celestial. Cristo nos abre as portas do céu e pela ressureição viveremos no face a face com Deus.
Temos a compreensão que estamos numa caminhada rumo à eternidade. Buscamos constantemente está na presença de Deus. Como nos diz profeta Joel que possamos nos colocar na presença de Deus por jejuns e orações, que possamos rasgar os nosso coração e não apenas as vestes, mas de fato viver uma experiência profunda de permanecer na presença de Deus que nos enche de sua graça e perdão (Jl 2,12-18). O dia em que recebemos as Cinzas é um dia favorável para reconhecer o amor que Deus tem para conosco (sempre se é dia favorável), é tempo de reconciliação e tempo de suplicar e ser escutado, ou seja, tempo de viver a salvação (2 Cor 5, 20-6,2). O tempo que se inicia é chamado para viver a nossa entrega aos ensinamentos de Cristo, de viver conforme a justiça divina e de viver conforme os ensinamentos de Jesus (Mt 6,1-6.16-18). É tempo de viver a alegria de ser salvo pela Cruz. É um convite de aprofundar na oração, nas práticas de penitenciais e na vivência das obras de caridade e misericórdia.
Esse tempo favorável de viver o Evangelho, de seguir os ensinamentos de Cristo e de amar e servir. “Senhor, sondai-me, conhecei meu coração, examinai-me e provai meus pensamentos! Vede bem se não estou no mau caminho, e conduzi-me no caminho para a vida!” (Sl 138). Devemos ter amor sincero a Deus, que fortalece a viver uma fé consistente e consciente. Como o salmista devemos ser humildes e nos colocarmos na presença do Senhor para que Ele nos conduza e oriente. A Liturgia da Quarta-feira de Cinza como de toda a Quaresma nos ensina a reconhecer nossos pecados e limitações, mas também nos mostra o caminho da transformação e da vida renovada em Cristo. Não se trata de menosprezar o humano ou mesmo de destruir a nossa humanidade, mas ao contrário de restaurar nossa humanidade sofrida e machucada para viver a alegria da salvação e a integração com o Criador.
Santa Maria Madalena de Pazzi muito nos ensina que devemos buscar a Eucaristia e a vida em Cristo, pois o que mais importa não são as coisas do mundo, essas são consideradas passageiras, o que importa é a salvação das almas. Ensinava-nos que não devemos abandonar o sofrimento, mas vivê-lo e integrá-lo com os sofrimentos do Salvador. Compreender que devemos negar o mal e a tentação, pois devemos buscar viver na graça de Deus. Essa mística carmelita dizia “Ó amor! Ó amor! Não deixarei nunca de vos amar! … Ó amor! Quão pouco se Vos conhece! Ah! Vinde, vinde ó almas e amai a vosso Deus!” O que deseja é que toda a humanidade escutasse “Amai a Deus!”. A nossa irmã no Carmelo nos ensina que devemos confiar na graça e perdão, mas também devemos nos despojar para que o amor divino nos inflame e nos torne novas criaturas.
Há uma canção muito conhecida que nos diz sobre esse tempo de oração, penitência e caridade: “Vitória, tu reinarás. Ó cruz, tu nos salvarás. Vocês não são do mundo, do mundo os escolhi. Se o mundo os odeia primeiro odiou a Mim. Vocês vão ter no mundo tristezas e aflição. Mas Eu venci o mundo, coragem e vencerão. Pois era necessário um só sofrer por todos.” Tenhamos coragem de viver essa transformação e de confiar na Cruz de Cristo que é sinal de salvação. Que possamos rezar e viver como a oração do dia nos propõe: “Concedei-nos, Senhor, a graça de começar com santo jejum este tempo da Quaresma, para que, no combate contra o espírito do mal, sejamos fortalecidos com o auxílio da temperança. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo. Amém.”
ARTIGO POR FREI RENÊ VILELA, O.CARM
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