“Dirijo-me a ti, que vens do povo, da gente comum, mas pertences à fileira das virgens. Em ti o esplendor da alma se irradia sobre a graça exterior da pessoa. Por isso és uma imagem fiel da Igreja”: o grande bispo de Milão exprimia com essas palavras o conceito altíssimo que a comunidade cristã tinha, desde os primeiros séculos, a respeito das virgens, que representavam a beleza e a fecundidade da Igreja. Era, pois, normal voltar a reviver a memória daquelas jovens que, durante as perseguições, tinham dado um duplo testemunho: o da virgindade e o do martírio. Algumas delas eram muito famosas, a ponto de serem recordadas durante a celebração eucarística juntamente com os apóstolos e os mártires.
Naturalmente, a comemoração litúrgica dessas jovens heroicas não comporta necessariamente uma reconstrução da sua vida e do seu martírio segundo nossos critérios historiográficos modernos; a comunidade cristã queria, antes de tudo, admirar aquela virtude heroica com que meninas cristãs tinham sabido desafiar e vencer o ultrapoder corrupto do seu ambiente.
A famosa passio, a narrativa do martírio, frequentemente uma verdadeira obra de arte literária, aproxima-se do nosso romance histórico, em que o autor, servindo-se da liberdade permitida por esse gênero literário, embeleza a verdade histórica com elementos que a tornam mais atraente e bem inserida no contexto da época.
De Luzia sabemos com certeza que viveu em Siracusa, na Sicília, atual Itália, e que foi martirizada aproximadamente em 304, durante a famosa perseguição de Diocleciano. Esses dados foram confirmados por recentes escavações que descobriram uma catacumba a ela dedicada e o lóculo onde tinha sido depositado seu corpo.
Quanto ao mais, precisamos contentar-nos com a sua passio escrita no século V ou VI. Luzia pertencia a uma abastada família de Siracusa. Vivia com a mãe porque, quando tinha 7 anos de idade, perdeu o pai. Ambas eram cristãs e Luzia se havia consagrado a Cristo como virgem, mesmo que quando ainda pequenina seu pai a havia prometido como esposa a um rico concidadão, segundo o costume do tempo.
Não obstante a perseguição, os cristãos da cidade de Catânia celebravam todo ano, com a chegada de muita gente, a festa de Santa Ágata, a virgem cataniense martirizada por volta do ano 250. Luzia foi em peregrinação a Catânia com a mãe e juntas fizeram parte da comemoração durante a qual o diácono leu o Evangelho da hemorroíssa. Pura coincidência ou um sinal do Céu? A mãe de fato sofria desse mesmo mal fazia anos e já sem esperança de cura.
Luzia se dirigiu à mãe: “Mãe, tu deves acreditar em tudo o que foi lido. Ágata padeceu por Cristo e agora reina com Ele no Céu. Toca com fé o seu túmulo e serás curada”. Esperaram que a multidão se retirasse e juntas dirigiram-se ao túmulo da mártir para implorar a cura. Luzia, vencida pelo cansaço, adormeceu e viu em sonho a virgem Ágata circundada pelos anjos e adornada de pérolas, que lhe disse: “Luzia, minha irmã, por que pedes a mim aquilo que tu mesma obtiveste? Eis que, pela tua fé, a tua mãe está curada”. Depois, com grande maravilha de Luzia, acrescentou: “Como Cristo glorificou por meio de mim a cidade de Catânia, assim glorificará por meio de ti a cidade de Siracusa, porque com a tua virgindade preparaste uma agradável morada para Deus”.
Ao acordar, Luzia apercebeu-se de que com a mãe acontecera o milagre e lhe disse: “Agora que estás curada, eu te suplico em nome daquele que te obteve a saúde que não me constrinjas a casar-me com um homem, mas coloca à minha disposição os bens que preparaste para o meu casamento”.
A mãe lhe fez notar: “Desde os 9 anos não só conservei, mas também acrescentei quanto teu pai te deixou. Fecha-me primeiro os olhos e depois poderás fazer dos teus bens o que quiseres”.
Luzia respondeu: “É muito pouco dar a Deus aquilo que não se pode levar consigo para o outro mundo”. A mãe consentiu e assim que voltaram para Siracusa começaram a distribuir seus bens aos pobres, segundo as indicações da comunidade cristã da sua cidade.
Soube disso o noivo que lhe fora prometido, que não era cristão, e fez suas demonstrações na tentativa de não perder nem a futura esposa nem as muitas riquezas dela. Não tendo, porém, conseguido dobrar a vontade das duas mulheres, recorreu ao prefeito da cidade, Pascásio, fazendo-lhe notar que a sua Luzia estava desperdiçando o patrimônio que devia levar-lhe em dote. Também isso foi inútil.
O prefeito ordenou a Luzia que sacrificasse aos deuses segundo a lei imperial. Aqui a passio traz o diálogo entre os dois, que é uma belíssima catequese:
Luzia: – O sacrifício verdadeiro e puro diante de Deus é aquele de visitar os órfãos e as viúvas. De três anos para cá não tenho feito outra coisa. Agora sacrificarei ao Deus vivo também a mim mesma como hóstia viva.
Pascásio: – Tu desperdiçaste o teu patrimônio com os que te corromperam.
Luzia: – Não frequentei corruptores da minha alma e do meu corpo, mas simplesmente coloquei nas mãos certas o meu patrimônio.
Pascásio: – Tapar-te-ei a boca ao som de varas.
Luzia: – Não se pode acorrentar a palavra de Deus.
Pascásio: – Deus talvez acredite em ti?
Luzia: – Quem neste mundo vive na piedade e na pureza é templo do Espírito Santo.
Pascásio: – Far-te-ei conduzir ao lupanar e, quando o teu corpo tiver se transformado em imundo, o Espírito Santo fugirá de ti.
Luzia: – A carne não se suja, se a mente não consente. Assim, se me fizeres violentar contra a minha vontade, a minha castidade ganhará uma coroa dupla.
Pascásio: – Se não sacrificares aos deuses, far-te-ei morrer submersa na luxúria.
Luzia: – Não poderás constranger a minha vontade a aceitar o pecado. Eis, estou pronta a qualquer suplício. Que esperas tu?
O prefeito ordenou que fosse levada para o lupanar para que quem quisesse pudesse abusar do seu corpo. Ninguém, porém, conseguiu arrastá-la, porque uma força misteriosa a tornou inamovível. Acenderam ao seu redor uma fogueira, mas as chamas não a lamberam. Pascásio atribuiu tudo isso a poderes de feitiçaria e mandou apunhalá-la no pescoço.
A sua ordem mal tinha sido cumprida e à comunidade cristã presente ao processo foi permitido apertar-se ao redor da virgem agonizante, quando um grupo de guardas aprisionava Pascásio, réu por ter usado sua autoridade para se apropriar dos bens do povo siracusano. Transferido para Roma, foi condenado à decapitação.
Para Luzia moribunda, o bispo pôde dar os últimos sacramentos, enquanto a comunidade respondia o Amém, e a celebração do processo se concluía assim na celebração litúrgica.
Bem cedo, o culto à virgem atravessou os confins da Sicília e se difundiu em todo o Ocidente. São Gregório Magno, em uma de suas cartas, fala de dois mosteiros em homenagem a santa Luzia, um em Roma e outro em Siracusa. Pelo seu nome, que recorda a luz, tornou-se protetora da vista e, por ter distribuído os seus bens aos pobres, em vários lugares sua festa é acompanhada pelo uso de dar presentes às crianças.
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