No período obscuro que foi o século X, a Igreja parecia afastar-se sempre mais do Evangelho: o papado estava nas mãos da nobreza local ou do imperador; a eleição dos bispos, transformados já em príncipes temporais, não fugia da mesma práxis e não raramente era contaminada por simonia; o restante do clero era quase sempre ignorante e muitas vezes também moralmente corrupto; e pode-se muito bem imaginar o estado de abandono de um povo que se chamava cristão apenas porque fora batizado.
Não obstante, do seio dessa Igreja tão arruinada germinaram movimentos de reforma de uma vitalidade evangélica surpreendente: o movimento monástico de Cluny, na França, que influiu sobre toda a Europa; o eremítico toscano, na Itália, com São Romualdo, São Pedro Damião e São João Gualberto; o movimento cisterciense, que atingiu o esplendor máximo com São Bernardo de Claraval, também na França; o premonstratense, com São Norberto de Xanten, na Alemanha, e, por fim, o dos cônegos agostinianos; antes ainda, o dos cartuxos de São Bruno.
Uma característica desses movimentos espirituais é a influência que eles exerceram bem além dos confins de seus berços de nascimento, também porque a Europa era então um corpo unitário.
Bruno nasceu em Colônia, atual Alemanha, por volta do ano 1035, da nobre família dos Hartenfaust e, após os primeiros estudos em sua cidade, foi enviado para aquela que era a melhor universidade da região, a escola episcopal de Reims, na França, para depois transferir-se para a de Tours, muitíssimo respeitada, onde se torna mestre de Filosofia. De volta à pátria, estudou Teologia e foi ordenado sacerdote. Não permaneceu aí por muito tempo, porque o bispo de Reims, em 1056, o quis primeiro como professor em sua escola, depois reitor, quando o mestre que igualmente se chamava Bruno, que ocupava aquele posto, retirou-se para a vida monástica.
MESTRE ADMIRADO E SEGUIDO
Durante vinte anos, Bruno manteve alta a fama desse centro acadêmico e nele formou discípulos famosos como Otton de Châtillon, que se tornou o Papa Urbano II; Santo Hugo, bispo de Grenoble; Ruggero, cardeal e bispo de Reggio Calabria; Roberto, bispo em Langres; e outros.
O ensino era-lhe congênito. Sentia-se bem em seu exercício por dois motivos: o estudo não o distraía da união com Deus, ao contrário, fazia-o penetrar a sabedoria e muitas vezes a contemplação; além disso, dava-lhe a oportunidade de formar homens capazes de operar uma verdadeira reforma no mundo eclesiástico e civil. “Reformar”: era essa a palavra de ordem que animava todos aqueles que, como Bruno, aderiram com toda a alma à orientação dada à cristandade ocidental por Gregório VII.
Reims havia tido até aquele momento bispos dignos sob todos os aspectos e quando o piedoso Gervásio morreu todos pensavam que seu sucessor teria sido Bruno. Em vez disso, aconteceu o imprevisto. Devido a um pacto simoníaco estipulado entre o rei da França, Filipe, e um pupilo seu, foi eleito arcebispo certo Manassés.
O recém-chegado, conhecendo a popularidade e a influência de Bruno, num primeiro momento procurou conquistá-lo para sua causa e nomeou-o chanceler. Quando, porém, deu-se conta de que ele se opunha às suas intrigas, exonerou-o de todos os encargos e expulsou-o da diocese. O clero rebelou-se e acusou o bispo no Concílio de Autun, que o destituiu. O bispo não aceitou a condenação e apresentou recurso a Roma. À espera do pronunciamento papal, vingou-se cruelmente dos seus adversários, destruindo até mesmo suas habitações e atentando contra suas vidas.
A ESCOLHA DO EREMITÉRIO
Finalmente, durante o concílio de Lyon, em 1080, o bispo foi deposto e a paz voltou para Reims. Todos queriam que Bruno aceitasse o governo da diocese, mas ele já havia amadurecido outro projeto. Havia voltado a Reims não para receber o anel e o báculo, mas, para recolher os seus amigos mais fiéis, oito doutíssimos homens, e retirar-se com eles para Sèche-Fontaine sob a proteção do abade de Solesmes, São Roberto, e iniciar uma experiência de vida eremítica. No entanto, aí permaneceu pouco tempo, sentindo fortemente o chamado a uma observância ainda mais estrita.
Se os eremitas dos primeiros séculos, para salvar a autenticidade da vida cristã, haviam fugido para o deserto, também então – pensava Bruno –, para realizar uma verdadeira reforma na Igreja, era preciso dar sinais fortes. Com seis companheiros, transferiu-se para Grenoble, onde o esperava o santo bispo Hugo, já seu aluno em Reims. Ele havia abandonado o episcopado e havia se retirado para a vida eremítica, porém depois, por vontade do Papa Gregório VII, teve de retomar o governo da diocese. Sentiu-se naturalmente bem feliz por oferecer no seu território um vale solitário chamado Cartusia – de onde provém o nome de cartuxa e cartuxos – dado a esse grupo de homens instruídos e corajosos, guiados por seu muitíssimo amado mestre. Entre eles estavam Landuíno de Lucca, Estêvão de Bourg, Estêvão de Die e certo Hugo, chamado de o capelão. Estava lançada a primeira semente daquela que depois se tornou a famosa Cartuxa de Grenoble.
Durante seis anos, Bruno e seus companheiros puseram em ação o seu ideal em perfeita harmonia entre si e tendo no coração a certeza de não mais ter de se intrometer nos assuntos da política do mundo. Não o pensava do mesmo modo outro discípulo de Bruno, Otton de Châtillon, chamado não à paz do eremitério, mas à cátedra de Pedro, onde, naquele período, de paz nem sequer se podia falar. Urbano II levava adiante, com decisão, a reforma iniciada por Gregório VII, mas tinha contra si, a dois passos, na cidade de Ravena, o antipapa Guiberto, apoiado militarmente por Henrique IV, sem contar as oposições surdas que serpenteavam entre o clero.
AO LADO DO PAPA, MAS POR POUCO TEMPO
Urbano quis próximo de si o antigo mestre, que veio a Roma com um grupo de companheiros. Foi-lhes concedida uma localidade junto às Termas de Diocleciano com a Igreja de São Ciríaco. Seu exemplo – pensava o Papa – teria sido precioso para o clero e para o povo romano, sem falar em quanto ele contava com a colaboração pessoal de Bruno.
A passagem da bem-aventurada e rústica solidão da Cartuxa de Grenoble para a rumorosa e inquieta metrópole romana revelou-se demasiado brusca para os cartuxos, que, depois de pouco tempo, pediram para retornar à França. O Papa consentiu, porém, reteve Bruno junto de si.
Entrementes, o antipapa conquistava Roma com força e Urbano II e seu amigo foram forçados a fugir para a Calábria. Aí o Papa tentou nomeá-lo arcebispo de Reggio Calabria, porém, Bruno não aceitou e propôs em seu lugar um antigo discípulo seu, Ruggero, que era abade de Cava no Salernitano.
A FUNDAÇÃO CALABRESA
Para si, conseguiu fundar um eremitério num lugar muito rústico denominado La Torre, perto de Catanzaro, onde imediatamente o seguiram os primeiros discípulos que, crescendo rapidamente em número, forçaram-no a abrir um segundo eremitério não muito distante do primeiro.
Foi essa a sua última faina, especialmente abençoada por Deus, apoiada pelo Papa e pelos bispos vizinhos e confortada pela ajuda concreta dos príncipes normandos que governavam a região.
Aí foi visitá-lo seu fidelíssimo discípulo que dirigia a Cartuxa de Grenoble, Landuíno, que quis se assegurar de que conduzia os cartuxos segundo o espírito genuíno do mestre. Nessa ocasião, Bruno, homem muito douto, em carta a todos os seus filhos dirigiu um pensamento especial aos numerosos monges iletrados, dizendo-lhes “É com as obras que vós mostrais o que amais ou o que sabeis, uma vez que, enquanto com toda a atenção e empenho pondes em prática a verdadeira obediência, é evidente que sabeis ler o fruto suavíssimo e vital da Divina Escritura. Deus mesmo pode escrever com o seu dedo nos vossos corações não só o amor, mas também o conhecimento da sua santa lei”.
Bruno morreu a 6 de outubro de 1101, no eremitério de La Torre. Antes de morrer, quis pronunciar a profissão de fé e reafirmar de maneira especial sua fé na presença real de Cristo na Eucaristia.
Ainda que seus filhos nunca tenham sido muito numerosos, a vida cartuxa teve uma grande influência sobre todas as formas de vida monástica que se seguiram. Um monge famoso, Guilherme de Saint-Thierry, em sua carta aos irmãos de Mont-Dieu, chamada de Carta de ouro, dizia aos cartuxos: “Aos outros compete servir a Deus; a vós, unir-vos a Ele. A obra dos outros é a de crer, de saber, de amar, de venerar; a vossa é de saborear, de compreender, de conhecer e exultar”.
Se o amor à sabedoria e à contemplação permaneceu vivo na comunidade cristã e se em nossos dias ainda apaixona não somente os monges, mas muitos leigos imersos no mundo, muito se deve aos filhos de São Bruno.
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