“São Jerônimo penetrou tão profundamente as Divinas Escrituras que deste tesouro pôde dispensar a antiga sabedoria e a nova, incitando-nos com o seu exemplo a buscar sem fim nas páginas sagradas Cristo, Palavra viva.”
Este texto litúrgico testemunha o reconhecimento da Igreja por Jerônimo, que, com sua tradução da Bíblia (uma tradução nobre na forma e fiel no conteúdo), favoreceu na cristandade ocidental o acesso à Palavra de Deus. Tal era sua intenção, visto que escrevia: “Nós dizemos homem espiritual, porque tudo julga e por ninguém é julgado, aquele que, conhecendo todos os segredos da Escritura, os compreende de maneira sublime; e vê Cristo nos livros divinos”. E no prólogo ao comentário do profeta Isaías acrescentava: “Ignorar as Escrituras é ignorar Cristo, porque aquele que não conhece as Escrituras não conhece o poder de Deus e a sua sabedoria”.
OS INÍCIOS DA VIDA ASCÉTICA
Terminados os estudos, transferiu-se para Treviri para aí iniciar sua carreira, onde Deus o esperava no vau. Se em Roma havia contemplado as catacumbas, lamentando, por vezes, por não ter vivido no tempo dos mártires, em Treviri descobria a experiência do monaquismo em toda sua grandeza e compreendeu que também o asceta é um verdadeiro mártir não por um único momento, mas por toda a vida: “O mérito do martírio não se atribui exclusivamente à efusão do sangue; o serviço realizado sem mácula por uma alma que se entregou a Deus é, também este, um martírio cotidiano”.
Jerônimo sentiu-se fascinado; passional e decidido como era, abandonou a incipiente carreira e, de volta à Dalmácia, contra a vontade dos seus familiares, começou em Aquileia a vida monástica com seu amigo Rufino. Não foi vida fácil, seja por seu caráter, seja pelas dificuldades cada vez maiores que os parentes lhe criavam.
Tomou então sua parte de herança e sua biblioteca e partiu para o Oriente, o berço do monaquismo, em busca da paz e da comunhão com Deus que foram a aspiração de toda a sua vida. Devido à sua saúde abalada, teve de deter-se em Antioquia junto do Padre Evágrio, que se tornou seu amigo e mecenas, e aproveitou para aprofundar os conhecimentos da língua grega.
Sua inteligência havia sido conquistada pelos autores latinos e não se cansava de ler e reler, por exemplo, as obras de Cícero, enquanto a vocação de asceta exigia que mergulhasse na leitura assídua da Bíblia, deixando de lado a vã sabedoria dos pagãos.
A luta foi duríssima. Desapegado da vida mundana, havia abandonado os parentes e a pátria, mas “Da minha biblioteca, levada comigo para Roma com tanto amor e tanto trabalho, dela não soube exatamente me desapegar. Pobre de mim! Jejuava e depois ia ler Cícero… Se às vezes, ao retornar em mim mesmo, abria os livros dos profetas, seu estilo simples me provocava náusea”.
Na Quaresma do ano 375, uma doença o reduziu ao fim da vida e aconteceu-lhe um fato imprevisto. “De repente, tenho como um êxtase espiritual. Sinto-me arrastado ao tribunal do juiz e venho a me encontrar envolto em tal fulgor de luz que se irradia de toda parte que eu, arremessado por terra, não ouso levantar o olhar para o alto. Perguntam-me quem sou: ‘Um cristão!’, respondo. O juiz, porém, de seu trono, exclama: ‘Mentiroso! Tu és ciceroniano, não cristão! Onde está o teu tesouro, lá está o teu coração!’. Permaneço de improviso, sem palavras. Sob as vergastadas (o juiz, de fato, havia dado ordem para me bater), sinto-me lacerar ainda mais pelo remorso da consciência e dentro de mim vou repetindo: ‘No inferno, quem cantará os teus louvores?’”.
SECRETÁRIO DO PAPA
Quando o Papa Dâmaso I chamou os bispos a Roma no ano 382 para um concílio, Paulino fez-se acompanhar do seu douto presbítero. Após haver contribuído brilhantemente com os trabalhos conciliares, Jerônimo foi requisitado como secretário pessoal do Papa.
A permanência em Roma durou até 385, mas foi especialmente fecunda. Entre os outros trabalhos, o Papa, que estava fazendo uma profunda reforma litúrgica, encarregou-o de traduzir dos textos originais a Sagrada Escritura, de modo a tornar sua leitura acessível aos fiéis nas assembleias litúrgicas. O trabalho durou cerca de 25 anos, porque Jerônimo não se limitou somente aos textos litúrgicos, mas quis abranger toda a Escritura. Derramou nela todo o seu talento, doando à Igreja do Ocidente um tesouro impagável. Sua Bíblia, denominada Vulgata, impôs-se de fato até os nossos dias como o texto oficial, garantido pela autoridade da Igreja.
Também em Roma, onde gozava de grande prestígio por sua proximidade com o Papa, Jerônimo não se esqueceu nunca de que era monge e não se deixou atrair pela febre do carreirismo. Com sua vida límpida e pobre, com seu ensinamento lúcido e ocasionalmente mordaz, conquistou grandes amigos e numerosos inimigos.
À parte Dâmaso I, que o estimava muitíssimo e o consultava continuamente, algumas damas nobres o convidavam à sua casa para instruir-se na Palavra de Deus. Nasceu assim, no Aventino, uma espécie de cenáculo na casa de Marcela. Além dela, tomava parte a mãe Albina, a virgem Asela, a viúva Paula e as suas duas filhas, Blesila e Eustóquio. Todas elas almas eleitas, que não só escutavam com inteligência e com interesse as lições bíblicas, mas, além disso, empenhavam-se em fazê-las tornar-se vida com a prática cotidiana da ascese.
A vida desse grupo deu na vista, não tanto porque se tratava de pessoas nobres, mas porque contrastava com a de muitos cristãos de Roma. No clima de reforma da Igreja que Dâmaso levava adiante, o exemplo decidido dessas mulheres e a palavra mordaz de Jerônimo incomodavam muitos, principalmente aqueles monges, virgens e padres que haviam reduzido o Evangelho a simples celebração litúrgica. Começaram a circular até mesmo calúnias injuriosas acerca das relações de Jerônimo com as damas nobres do Aventino.
Enquanto Dâmaso viveu, os sussurros contra o monge eram contidos, mas, depois da morte do Papa, tornaram-se gritos ameaçadores e forçaram Jerônimo a ir embora. Juntamente com seu irmão Pauliniano, com Eusébio de Cremona, com o padre romano Vicente, transferiu-se para Belém, depois de haver efetuado uma longa peregrinação, visitando Alexandria do Egito, os monges da Nítria e, portanto, todos os lugares santos da Palestina. Ele desejava encarnar uma vida monástica séria e ao mesmo tempo sonhava levar adiante seu trabalho de tradução de todos os livros da Bíblia. Para fazer isso, qual o melhor lugar senão a Terra Santa?
Comments0